Quando mencionámos a série de webcomics Thunderpaw, da
mesma autora, tecemos uma série de considerações em torno do estilo “furry” (ou
“semi-furry”) a que esse trabalho pertenceria, assim como a que territórios
deveria algumas das suas características formais e estilísticas. Remetemos a essas
breves notas para complementar esta outra breve nota, a um pequeno comic book publicado no programa da
Nobrow em providenciar um espaço de expressão, circulação e experimentação a
novos e jovens autores, uma experiência que havíamos debatido com Fish, de B. Bagnarelli. (Mais)
Em muitos aspectos, Vacancy
partilhará a mesma contextualização diegética de Thunderpaw. Apesar de não termos acesso a qualquer tipo de
exposição decidida, este é um mundo que parece ter sofrido igualmente um
cataclismo absoluto, destruindo as cidades em torno. Existem porém algumas pistas,
extratextuais e visuais (o nome do protagonista na casota, a corda roída, a
distribuição dos papéis e inscrição social por espécie animal), que permitem
imaginar que terão existido humanos neste mundo, com as mesmas relações para
com os restantes animais, simplesmente estes são antropomorfizados, com roupa e
tudo.
A personagem principal é Simon, um cãozinho jovem, particularmente
vulnerável, não apenas física mas psicologicamente. Encontrando-se sozinho,
talvez mesmo abandonado na sua casa sozinha, cai em erros de percepção por
viver numa esfera até então protegida, a passa a imaginar o “lá fora”,
sobretudo a floresta, como um espaço ideal. A sua clausura não é jamais
resolvida, bem pelo contrário, ele protela sempre a fuga para um amanhã. Não é
de surpreender, então, que tenham de ser causas externas – a pressão de um
encontro com duas outras criaturas, uma raposa e um cervo – a colocá-lo nessa
senda de exploração.
Podemos dizer que Vacancy
explora questões de identidade, de pertença, de inscrição e de negociação
social. Existem pelo menos três espaços sociais a serem explorados no pequeno
livro: os animais que vivem domesticados, os animais que vivem na selva mas que
não são predadores, e os predadores. Simon acredita que tem propriedades que
lhe permitiriam aceder imediatamente ao terceiro papel, mas isso revelar-se-á
como uma ilusão tremenda.
Se o livrinho pode ser lido, por um lado, como uma simples narrativa, ou uma alegoria simples, com algum esforço podem descobrir-se outros níveis de interpretação. Este é um estudo sobre os ecossistemas e como eles se complementam ou anexam ou repelem.
Se o livrinho pode ser lido, por um lado, como uma simples narrativa, ou uma alegoria simples, com algum esforço podem descobrir-se outros níveis de interpretação. Este é um estudo sobre os ecossistemas e como eles se complementam ou anexam ou repelem.
A única diferença é que os ecossistemas aqui são também
construídos por factores sociais, de distribuição de papéis em relação ao mundo
dos humanos, estando-se ou fora ou dentro dele. No mundo “real”, o nosso, essas
relações são mais complexas, pois existem animais dentro do mundo dos humanos
que são usados (para alimentação ou outros trabalhos), e os de fora podem ter
vários pontos de entrada ou interacção, que cria uma hierarquia (entre animais “fofinhos”
e “bestas perigosas”), mas se em Vacancy
essa distribuição é mais simples, metonimicamente oferece elementos relativos a
essa experiência.
A autora domina aqui todos aqueles instrumentos de que
necessita.a expressividade das personagens é simples, mas efectiva, as mais das
vezes numa contenção subtil e eficaz. O trabalho dos pormenores, dos cenários
abandonados, da natureza assaltada, dos resquícios de uma civilização
desaparecida, e o trabalho igualmente contido das cores, cria um ambiente
perfeito à tensão permanente das personagens, sobretudo de Simon que vai
descobrindo um mundo bem maior do que o que conhecia e imaginava). O dinamismo
da composição é clássico, legível e cinematográfico, o que não admira para uma
autora que é devedora de forma particular a um certo mundo da animação (toda
esta nova geração de séries da Cartoon Network, de Adventure Time a Regular Show,
Steven Universe, etc.) onde se
misturam distribuições simples de papéis, altos níveis de inventabilidade
conceptual e estilística, e temas duros, mas passados pela mó da fantasia.
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