1 de dezembro de 2009

Onde vivem os Monstros. Maurice Sendak (Kalandraka)

Onde vivem os monstros. 1. Livro. (Filme) A literatura ilustrada infantil produz centenas, se não milhares, de livros relativamente importantes para a sua própria história. Desde o Struwwelpeter a Os piolhos do miúdo e os miúdos do piolho, estes objectos de histórias conduzidas por imagens (e não meramente com algumas imagens ilustrando um texto) exercem um fascínio particular sobre os seus primeiros interlocutores, as crianças, mas ao mesmo tempo criam laços com os adultos, quer os que emergem dessas crianças leitoras quer aqueles que os descobrem mais tarde. É num contexto de memória garantida, de força editorial, de redes de referência cultural que uma determinada obra sobrevive, se torna um “clássico” e, depois, parte integrante da cultura. Os Estados Unidos, assim como o Reino Unido ou a França ou a Alemanha, têm uma história riquíssima, mas mais importantemente ainda, uma história que sobrevive. Livros com 100 anos continuam a ser lidos e, por vezes, sabidos de cor. O mesmo, infelizmente, não se pode dizer de Portugal, pois vivemos num país que se tradição tem, é a da pobreza, das vistas curtas, da debilidade do comércio e da recordação e da manutenção de um imaginário que pudesse alguma vez vir a ser comum. Falar de Dona Redonda, de El-Rei Camelo, da Arca de Noé de Quim (com desenhos de António Jacobetty) é um exercício obscuro de investigador e bibliotecário, ou de octagenário nostálgico, não de leitores comuns... O mesmo não ocorre com os leitores de Where the Wild Things Are, que desde 1963 é repetidamente lido e amado (ou evitado e detestado).
É nesse quadro de produção imensa e contínua, mas da possibilidade de manter activa a memória de alguns livros – tal como ocorre na área da “literatura de crescidos” – que o primeiro livro criado sozinho por Sendak surge. Outros se seguiriam, ora com variações mínimas ora com grandes diferenciações dessa experiência, mas é aquele primeiro que mais memória deixaria. E que, agora com a versão cinematográfica de Spike Jonze, se reforçará. O momento da sua tradução em português é bem escolhido, e é feliz que a existência do filme tenha forçado a sua aparição. Num primeiro momento, neste post, falarei do livro, passando depois noutro ao filme, o qual desdobra e aumenta alguns dos temas do livro.

Onde vivem os Monstros é um livro exemplarmente construído, e a Kalandraka, naturalmente, respeita-o em todos os aspectos: nas cores pouco garridas, ou pouco histéricas, no formato, na composição de página, no ritmo do texto. Muitos estudos lhe foram dedicados, mas é a leitura repetida do livro que fará descobrir os seus segredos por vir, a cada leitor. Descobrir a forma como o pequeno Max vai fazendo expandir o seu espaço (imitado na composição da página, a qual, ainda que simples em relação a outros géneros onde a ilustração está presente ou toma conta de toda a organização narrativa, conta com uma estratégia precisa e equilibrada) com a força da sua fantasia, e depois, calmo, regressa ao seu mundo “real”. Como a “justiça” pode revestir-se de formas menos esperadas, e está prevista na solidão que se segue à entrega total aos prazeres mais egoístas. E como as “coisas selvagens”, os “monstros”, são seres compósitos feitos disto e daquilo, de patos e cabras, bois e pessoas, e que têm tanto de asustador como de pateta... e é aí que reside o seu charme.
Este livro não é de fantasia pura e dura. As acções estão ancoradas numa existência real e plausível – o mau comportamento de Max e o seu castigo imediato – a partir da qual surgirá a premisa da fuga, ou do “escape”, se preferirem, ainda que esta seja momentânea e em nenhum momento possamos estar seguros se se tratará da imaginação de Max ou se de acontecimentos reais. Claro está que, se por um lado isso não é importante, tratando-se de ficção, por outro, é óbvio que aconteceu, quer porque se trata de fantasia e do maravilhoso, no qual há lugar para os acontecimentos extraordinários quer porque se trata de algo vivido por uma pessoa do número das crianças, para as quais as brincadeiras são experiências tão reais como aquelas que não pertecem a esse círculo.
O livro não conseguiu ganhar o consenso no seu país. Não querendo generalizar os Estados Unidos de um modo que seria desonesto e palerma, e tendo em conta que esse assunto não é somente complexo como tem presença em todos os países, inclusive em Portugal, os agentes de educação infantil daquele país viram no livro vários factores negativos: a presença de monstros aterradores, a violência de Max contra a mãe e a aparente condescendência dela no fim, a ausência de justiça moral em relação ao comportamento do miúdo. Mas, tal como ocorreria no ano seguinte ao do livro de Sendak com The Giving Tree/A árvore generosa, de Shel Silverstein (editado em português pela Bruaá), a aparente ausência de “castigo” ou “redenção”, e o unívoco triunfo do egoísmo das personagens, abre-se a toda uma variedade de interpretações, desde as mais simples aproximações narratológicas, às costumeiras reduções pelos esquemas da psicanálise, a um escavar profundo das linhas políticas e filosóficas que qualquer obra humana contém. Outros livros posteriores de Sendak causariam celeumas idênticas, primeiro com o Pierre que “não se importa” com nada (de The Nutshell Library, 1962), parecido com Max em termos de comportamento, e depois com a banda desenhada In the Night Kitchen (1970), com a viagem de Mickey num universo de inúmeras referências e memórias do autor cruzadas por acontecimentos abertos às mais violentas das interpretações (a nudez do protagonista provocou graves ódios, a sua cozedura num forno aproximou-o de uma metáfora à Shoah, mas na verdade nem sequer é definitiva como a morte de Max und Moritz). Seja como for, Sendak permitiria a emergência de todo um rol de livros com novos e modernos monstros, enormes e horríveis, mas que se tornam companheiros inseparáveis dos meninos que tentam assombrar. Logo em 1968 saíria uma pequena imitação, de Mercer Mayer, There’s a Nightmare in my closet/Um pesadelo no meu armário (também na Kalandraka, por cá; e outros livros do autor foram publicados nos anos 1980), e daí derivariam tantos outros títulos. Este tema é exemplarmente estudado num artigo de Ana Margarida Ramos.
Há um outro estudo, desta obra de Sendak em particular, e cujo título aponta desde logo para a interpretação que dela faz: “Max’s Colonial Fantasy”, de John Clement Ball (também disponível online). Como se depreenderá, essa fantasia colonial, ou mesmo colonialista, não deixa de estar associada a todo um imaginário fundando nas raízes da literatura dita infantil, sobretudo dirigida aos rapazes, e que serviu de fundamento a tantos dos romances de Verne como às fantasias ideologicamente insustentáveis de personagens clássicas como Tarzan ou o Fantasma. Uma leitura dessa natureza parece ser errónea, por trazer à tona interpretações negativas a algo que tanta maravilha causa, mas creio que nos é possível apreciar todas as contradições presentes (como as luas do livro!) em Onde vivem os Monstros, e abraçar o seu paradoxo, ressalvando que o seu fascínio não deixa de existir, malgré tout. De resto, contradições e paradoxos próprios de qualquer verdadeira obra de arte.
A imagem mais emblemática de todo o livro é, julgo eu, aquela em que Max encabeça a procissão dos monstros no seu momento de absoluto poder e prazer. Essa imagem, no filme, é transformada numa cena frenética, bela, no momento em que todas as criaturas da ilha e Max encontram um equilíbrio perfeito de entendimento mútuo e coincidência de expressão (os uivos, música dissonante, mas música).
São inúmeras as associações que se tornam possíveis em relação a essa imagem processional, quase podendo entendê-la como uma “forma retornada”, como os “engramas” de Aby Warburg: isto é, formas ou imagens que retornam em vários momentos e circunstâncias da história humana, mesmo que se revestindo de forças e significados diferentes, mas que estabelecem entre si a ideia de continuidade de uma memória silenciosa. O autor indica que veio a descobrir mais tarde imagens do filme King Kong, e como algumas das suas ilustrações quase mimavam a cena mais famosa, no alto do Empire State Building, afirmando: “[a imagem] talvez se tivesse impresso na minha cabeça trinta anos antes” (meu sublinhado). A noção está presente, mas poderá mesmo recuar de um modo que ultrapasse a experiência pessoal do autor. A meu ver, as primeiras imagens que se podem procurar como uma espécie de origem e conseuquência imediata a Where the Wild Things are é, quanto à primeira, a capa e trama de um outro livro, também recipiente da medalha Caldecott (Honor Book de 1944), In the forest, de Marie Halls Ets, e, para exemplo da segunda, a simples capa do The Incredible Hulk no. 49 (sem qualquer relação com o interior do comic book). Contudo, penso que esta ideia de procissão, de hierarquia, de uma espécie de alegria nímia no facto de se estar vivo mas expressá-lo através de signos terríficos (monstros) tem a sua mais antiga raiz iconográfica nas Danças Macabras medievais. É uma subtil e quase imperceptível ligação, decerto, mas há nessa expressão uma mesma contradição, um mesmo paradoxo, entre vida e morte, terror e alegria, o transitório e o perene. De novo, esse reequilíbrio.
Nessa senda de interpretação, não poderíamos ler a viagem de Max como uma descida aos infernos (idêntica à de Eneias, à de Cristo, ... à de Dante), ao desespero, a uma regressão total (o quarto não se transforma simplesmente numa floresta, são os móveis regredindo à sua natureza originária), atravessando o rio que separa o mundo dos vivos do dos mortos numa barca (de Caronte, dos Autos), para se encontrar com aqueles monstros que são uma imagem distorcida dele mesmo (como Calibão ou um pai, de resto, ausente e sublimado nos monstros)? Talvez pareça um abuso querer ler nesta “aventura” uma catábase, mas no momento em que a elegemos, encontramos na própria estrutura das frases e da composição de páginas uma possível aplicação do termo retórico. E, mitologicamente, o encontro do herói literário com as almas dos mortos, muitas vezes heróis, de tantos livros, parece ser retomada por Max: os monstros são outros Max, já perdidos, já tombados, junto aos quais procura conselho e consolação, descobrindo que é à terra dos vivos que deve retornar, e é lá que encontrará a verdadeira e possível, parcial consolação (volta a uma sopa quente, um copo de leite e uma fatia de bolo, mas não o vemos jamais junto à mãe).
O valor do livro não é imediato, nem simples, e essa é razão pela qual os polícias da educação do controle social, os depuradores da moral, os crentes da perfeição asséptica, e os propugnadores da suposta inocência das crianças (isto é, aqueles que querem criar uma bolha em seu torno apenas com fantasia açucarada, ilusões desirmanadas da existência, e teorias de papel) dele desconfiam. E essa é razão pela qual os seus bons leitores – de que Eggers e Jonze são um excelente exemplo – o manterão para sempre perto, e vivo, para o poderem desdobrar vezes sem conta, descobrindo sempre cantos novos.
O autor, no seu discurso de aceitação do prémio Caldecott, afirmou o seguinte: “É evidente que desejamos proteger as nossas crianças de experiências novas e dolorosas que estão para além da sua compreensão emocional e que aumentarão a sua angústia. E até certo ponto conseguimos evitar que se exponham prematuramente a essas experiências. Isso é evidente. Mas aquilo que é igualmente evidente, e que muitas vezes passamos por cima, é que desde a sua mais tenra idade os miúdos estão muito bem familiarizados com emoções perturbantes, com o facto de que o medo e a angústia fazem parte integrante das suas vidas quotidianas, e que têm de lidar constantemente com frustrações, da melhor maneira que conseguirem. E é através da fantasia que as crianças conseguem atingir a catarse. É o melhor método que têm para domar os Monstros”.
Cabe agora aos leitores portugueses que não conhecem este livro perceber essas razões e conquistar este método.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Algumas notas e informações foram coligidas de The Art of Maurice Sendak, de Selma G. Lanes (Abradele/Abrams: 1980).

3 comentários:

Ana C. Nunes disse...

Li este livro esta semana e gostei muito. Acho que, assim como outros excelentes livros infantis, diz muito em muito pouco e as ilustrações estão em armonia com os textos.

luisa disse...

Nunca tinha lido uma referência à Arca de Noé do Quim. Ou encontrado alguém que conhecesse o livro. Aprendi a ler com ele. Tenho dois exemplares, um dedicado pelo Quim e o António. O Quim veio a ser meu avô, e o António meu pai, já depois de terem editado a Arca. O outro exemplar encontrei por acaso num alfarrabista. Engraçado.

Pedro Moura disse...

Olá, Luísa.
Pois é, por isso mesmo é que falo do livro como não sendo -infelizmente - parte de uma tradição mais contínua e comum em Portugal, apesar de se dizer, da boca para fora, que somos um "país de tradições". Folgo em saber da sua existência e, para mais, sendo um tesouro familiar.
Obrigado!
Pedro Moura