6 de janeiro de 2010

Publicações na Feira Laica, Laica de Prata



O cognome “Laica de Prata” deveu-se à circunstância deste certame ter sido organizado no recinto do espaço cultural na Lisboa Oriental Fábrica Braço de Prata, na qual ocorrem toda uma série de eventos culturais heterogéneos, em torno da música, do livro, da performance, das artes visuais, da discussão filosófica, da cidadania contemporânea... No entanto, revestir-se-ia de uma possível interpretação mais elaborada, a meu ver, por ter agregado a si uma das melhores exposições, se não mesmo a melhor até à data (por uma razão de quantidade, disposição, serialização, coordenação, coesão, pertinência, seleccionados, e a qualidade intrínseca dos trabalhos incluídos), de desenhos que usualmente lhe está associada, e que desta vez teve o baptismo de Sacudiram-nos bem forte lá no campo de batalha. Em rigor, esta exposição está associada ao colectivo sem centro da Laica, mas também ao convite directo feito pelos Espaços do Desenho, o qual se integra no edifício do Braço de Prata, e que conta com a coordenação autónoma de Teresa Carneiro.
Ficou agendada, e foi cumprida, uma breve conversa no Domingo, dia 20 de Dezembro, entre a coordenadora do espaço, alguns dos autores presentes na exposição (Daniel Lima, Filipe Abranches, Ana Menezes, Luís Henriques, Cátia Serrão, José Feitor, entre outros, e André Lemos, o comissário desta exposição), e eu próprio. Uma vez que não estava presente muito público “novo” (no sentido de não conhecerem antes este projecto), a conversa acabou por ganhar um contorno ainda maior de informalidade do que estava logo à partida previsto, mas levou a alguns comentários e discussões interessantes, que não me cabe nem conseguiria aqui resumir e reapresentar. Em todo o caso, incidiram sobretudo sobre a falta de carácter programático e manifesto de uma coesão entre estes artistas, sublinhando-se antes a forma como as redes de amizade e interesses relativamente comuns (a acção criativa do desenho, a pugnação por uma liberdade intempestiva dessa mesma acção, uma inclinação para a pesquisa do objecto gráfico impresso e reprodutível, linhas de força e temáticas que se entrosam e divergem, projectos de cruzamento editorial, carreiras profissionais mais ou menos coincidentes – o ensino, a ilustração – ou escolhas paralelas igualmente coincidentes – a música –, leituras e gostos que se tocam) levam à emergência de um espaço de partilha feliz e muito interessante, em que a anomia do projecto e a natureza heteróclita do grupo (formações e percursos diferentes, técnicas e estratégias diferentes, direcções diferentes) não impedem o conseguirmos identificar certos ecos, rimas, retornos, coesões. A relação destas exposições com os seus espaços, os diálogos que estabelecem com um espaço libertário da arte, e com o mais (a meu ver) entrosado círculo mediatizado das artes oficiais, os erros de interpretação e fechamentos a que muitas vezes se recorrem para tentar explicar estas ideias em soltura total, foram outras das matérias da conversa. Aliás, em relação a estes últimos, eu próprio não me coíbo de poder neles incorrer, já que a própria necessidade de verbalizar, generalizar e discursar sobre a exposição, os seus objectos específicos e os seus autores levará imediatamente a um encurralamento que não se desejaria nem ocorre quando se experiencia o próprio projecto.
Recuperando uma brevíssima passagem de Cortázar, diria que este colectivo de artistas, que de colectivo tem apenas a circunstancialidade da amizade e da vontade de fazer, e não um qualquer princípio programático e esteticamente organizado, é capaz de abdicar do magistério para manter o mistério.
Dito isto, passemos à outra dimensão da Feira Laica, que terá mais a ver com o primeiro termo. Como é usual nestes encontros, há toda uma série de autores, criadores e editores que aproveitam o momento para fazerem o seu lançamento das suas publicações. Por outro lado, é também neste certame (idêntico a outros, ainda que poucos) que somos capazes de encontrar à mão publicações a que de outra forma jamais acederíamos, ou por virem de países estrangeiros fora de mão (Rússia), ou por não se poderem comprar em livrarias locais (Dernier Cri), ou qualquer outra razão impeditiva. Ainda não estamos bem servidos. Como é também já usual, trago de lá uma mão-cheia de projectos que desejo aqui partilhar, após a sua leitura. Infelizmente, por razões mais ou menos claras, não me foi possível poder trazer tudo aquilo que desejava ou que mereceria a nossa atenção, pelo que me cingirei às que a seguir se indicam.
Satanic Holidays/ Days of celebration. José Cardoso (Imprensa Canalha). Uma colecção de imagens heteróclitas, a maioria aparentemente roubadas de postais do Hawai, com belas raparigas, locais e da middle America, nos seus trajes sensuais e rodeadas das luxuriantes paisagens tropicais. Cenas de oferenda, alohas, festas, surf e camisas estampadas. Aqui ali, o decote generoso faz promessas de prazeres mais íntimos, aproxima-se de outros tons. Cada imagem mínima e digitalmente retocada, retorcendo, distorcendo obscurecendo e embrutecendo os rostos das raparigas. Ao ponto em que se parecem com monstros, ou daqueles espíritos mal capturados por fotografias de longa exposição. Misturadas por entre estes retratos, objectos vários, de canecas a ídolos, estátuas e totems, a maioria deles de uma família mais ou menos coesa de culturas antigas, violentas, ritualistas e sangrentas. Aos poucos, o sentido geral da publicação forma-se. Quase todas as imagens têm ainda uma outra camada de intervenção, sob a forma de pequenas estruturas gráficas, manchas, símbolos e elementos coloridos, alguns deles como rostos de criaturas queridas, típicas de um certo merchandising. Uns poucos parecem gatos, mas os outros são fantasmas, monstros, sóis e chamas. Numa imagem vemos um double whopper sorrindo, noutra um casal de storm troopers do Star Wars, de camisas floridas. A última imagem, um símbolo satânico, por sobre uma cena idílica na ilha vulcânica. O vulcão. Agora é que nos apercebemos que sob o solo desta paragem aparentemente paradisíaca existe uma história da violência da terra. Que se expressa nestas imagens como se José Cardoso tivesse tido acesso ou tivesse inventado uma câmara à la Nikola Tesla, e capturasse os demónios que se escondem na dobra dos raios de sol. Esta é uma brochura que se distribui numa agência de viagens que leva a sério a ideia do “Culto ao sol”.
Medieval Spectres Soaked in Syrup. André Lemos (pipeandhorse). Este fanzine feito em papéis vários, com desenhos de Lemos, teve uma edição de apenas 15 exemplares, e é produto russo, pelo que se torna um objecto raríssimo e de difícil acesso. Para os cultores e seguidores deste autor, as inflexões e diferenças estão na sua dimensão táctil e de jogo de esforço visual: alguns desenhos são feitos a negro sobre um papel dúctil e negro, trazendo ainda mais à tona o “lado negro” da tinta. Ainda se incluem algumas das colagens que faz, apresentando figuras e estruturas que tanto nos poderão recordar os mecanismos de Rube Goldberg como os monstros de fantasia e fancaria de Svankmajer. As geometrias que se criam com estas imagens é de algum denso enigma que jamais se resolverá.
ITO. Yann Taillefer (Dernier Cri). Uma mesa cheia de publicações da Dernier Cri é como a entrada numa pastelaria requintada: todos e quaisquer dos seus produtos são tentadores e deliciosos, mas há que seguir uma dieta restrita, neste caso, monetária. Depois de ter perdido a oportunidade de ter adquirido as publicações de Stu Mead e Mat Brinkman, o consolo ficou-se por este jovem, Taillefer. Este artista apresenta uma espécie de enciclopédia de um estranho e violento mundo, revelando parte da sua fauna, ou mesmo dos habitantes (poderíamos dizer inteligentes, mas parecem servir apenas uma função de se procriarem mecanicamente apenas com o intuito de alimentarem o ciclo sem qualquer princípio ou fito ontológico que transcenda essa condição), mas sobretudo dos estranhos ciclos fechados apoiados por máquinas bio-mecânicas. Encontramos aqui ecos de Luigi Serafini, de Dave Cooper, de Rube Goldberg, e de um rol de outros autores que, de uma forma ou outra, exploram o absurdo, a comicidade prevista na violência atroz sobre os limites do corpo humano, e ainda a aparente criação de um sentido através figurações e até uma escrita que é desprovida dele, pelo menos de um modo mais imediato. Ao mesmo tempo, e apesar do seu humor (mas quem nos impede de pensar em coisas sérias de uma forma risonha?), é como se ITO fosse uma espécie de ensaio visual sobre questões do pós-humano, do corpo ciborgue, da clonização militar, e outros perigos que cada vez fazem menos parte da esfera da ficção científica. Como sempre em relação às publicações da DC, é uma experiência óptica intensa, mas igualmente perturbadora noutros domínios.
Summer. Sleep City #4. AAVV (Sleep City Records). Este projecto de um jovem editor português contou, para este quarto número da sua antologia de desenho livre, pequenos textos, intervenções gráficas, com (roubo a lista do blog): Ben Cook, Daniel Abensour, Steve Larder, Hiro Tanaka, Dan TheTesko, Vera Marmelo, Emma Kelly, Mirena Ossorno, Moira Cassidy, Raquel Fialho, HAZ, Matthew Walkerdine Armitage, Holly Maguire, Fernando Serrano, Danielle Nemet, Manuel Donada, Miguel Meruje, Mihail Mihaylov, John Reyes, Rudi De Wet, Bosque Estudio, Himi Kozue, Afonso Ferreira, Manuel Simões, Ryan Gavel, Ivan Minsloff, Jucifer, Pedro Prata, Thursday Friday, Pedro Lourenço, Matthias Lehmann, Brandon Jan Blommaert, 3501, Ricardo Martins, Gabriel Graham, Tom Edwards, Emmanuel Hourquet, Luis Nove Segundos, Bert Scholten e King Dif. Quase todos os autores, pelo menos aqueles que conheceremos melhor (julgamos nós), contribuem com trabalhos relativamente sem surpresas em relação aos anteriores. Não que não haja pequenos prazeres na descoberta desta publicação, até pelo seu formato de cadernos colados em capa, objecto intempestivo, desenhos bruscos, textos curiosos, mas ao mesmo tempo não podemos confessar um entusiasmo desmedido onde ele não existe. Objecto de liberdade, de consistência e competência precisas, não se reveste porém de uma glória que o “Verão” – o tema que é cumprido por todos os participantes, de modos diversos – pareceria prometer (o que mostro aqui é a contra-capa, não a capa, que poderão consultar no blog). É, porém, uma daquelas antologias cuja acumulação faz prometer um panorama internacional pertinente do desenho contemporâneo, independente a todos os níveis de outros circuitos de interesses.
Canções usadas. AAVV (Oficina do Cego). Esta é, talvez, a maior surpresa e notícia do evento, e merecerá outra consideração mais elaborada, se houver oportunidade. A Oficina do Cego é, numa apresentação sumária, uma associação sem fins lucrativos cujos objectivos centrais é a formação e facilitação, junto aos interessados (associados) as ferramentas, conhecimentos e disponibilidades de trabalho para a criação de objectos gráficos. Devo indicar também, desde logo, que sou um dos membros fundadores, mas uma vez que é “sem fins lucrativos”, a publicidade é de tom institucional. Almejamos conseguir reunir não apenas aquelas pessoas que já criam os seus próprios objectos gráficos, edições de autor e de artista, edições limitadas e cuidadas, encontros felizes ou fortuitos entre imagens e texto, explorações de desenho e devaneios de ilustração, fronteiras encontradas e quebradas, mas também todos aqueles que sempre o quiseram fazer mas não sabiam como. A Oficina do Cego será uma forma de, apesar do nome, ajudar a ver e dar a ver. Este primeiro objecto saído dos esforços colectivos (há histórias de bastidores, mas ficam reservadas) reúne nove poemas de José Miguel Silva, Manuel de Freitas e Rui Pires Cabral. Em torno de um tema comum, precisamente as “canções” do título, para mais “usadas”, tecem-se poemas narrativos, de nostalgia por uma juventude violenta, perdida, drogada, ternurenta, sempre entrosando essa experiência na imagem desencadeada por um nome de uma canção ou de uma banda para chegar a um qualquer súbito descobrimento, em todos os sentidos da palavra. E, para mais, surgem outras imagens, estas reais, tangíveis, partilháveis, criadas por 10 ilustradores, num diálogo tanto individual entre cada imagem e poema como entre todos os elementos da publicação. Há outras questões suscitadas, naturalmente, mas ficarão suspensas por agora.
Como disse ao início, muitas outras coisas deliciosas ficaram pelas mesas da Feira Laica. Os próprios desenhos da exposição ficaram por saborear com mais tempo e nitidez. Seja como for, esperemos que estas sucintas notas sobre os livros despertem o interesse desejado.
Notas: agradecimentos a Miguel Carneiro, por servir de correio; André Lemos, por ter reservado uma cópia; a Teresa Carneiro pelo convite e por ser uma excelente anfitriã; e à Laica em geral, porque sim.

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