21 de fevereiro de 2011

Vá para fora cá dentro: três livros sobre banda desenhada romena, sueca e russa.

Existirão várias formas de conhecer num ápice uma dada tradição nacional de banda desenhada. Estas introduções por atacado só farão sentido junto a países cuja produção de banda desenhada nos seja desconhecida como um contínuo, que não constitua um pólo de produção suficientemente forte que garanta a sua presença inegável no diálogo internacional (pois esses vamos lendo, muitas vezes por causa dos autores e não tanto pela sua nacionalidade). Assim sendo, qualquer livro monográfico sobre a banda desenhada norte-americana ou francesa e/ou belga será sempre necessariamente incompleto de um modo claro, daí que sejam mais interessantes se forem moldados por uma qualquer perspectiva mais específica, disciplinar, concentrada num tema. Mas se falarmos de países com os quais temos contactos menores ou até mesmo nenhum contacto, estas introduções fazem todo o sentido e são bem-vindas. Uma dessas formas é a sua exposição, como ocorre nos festivais, mas se não nos for dada a oportunidade da sua fruição através da leitura, qual é o escopo e a força desse contacto? E nós estamos em crer que a banda desenhada é uma arte que deve implicar forçosamente o acto de leitura (daí que qualquer exposição, mesmo a Tinta nos Nervos, seja sempre um gesto que exercita uma violência e uma incompletude face ao objecto original e final que mais importa).
Outros modos dessa apresentação num simples conjunto é aquela que é conseguida com estes três livros, de naturezas totalmente diversas. Uma antologia de histórias curtas, propositadamente criada em torno de um tema e personagem, com autores de um mesmo país (a Roménia), um pequeno texto de apresentação sumária da história de uma tradição de banda desenhada, profusamente ilustrado com exemplos de um outro (a Suécia) e um volume académico que procura estudar e dar a ver as especificidades culturais da banda desenhada de um terceiro país (a Rússia). Todos eles conseguem um propósito diferente, conseguido, todos eles impedem-nos de ver essas mesmas (tradições de) bandas desenhadas de um modo mais íntimo...
Compendium of Romanian Comic Art. The Book of George. AAVV (Hard Comics)
O conceito por detrás deste projecto é extremamente interessante e produtivo. Criou-se a ideia de uma personagem, chamada George, e faz-se a pergunta mais simples: “Quem é George?” depois convida-se um número significativo (vinte) de autores contemporâneos de banda desenhada de um país – neste caso a Roménia – e procura-se que eles respondam através de histórias curtas, abordando da sua “infância” à sua “morte”, passando pelos seus problemas, vícios, pequenas aventuras, amores, segredos, animais de estimação... Os resultados são necessariamente diferentes, encontrando desde abordagens mais familiares, genéricas, de uma legibilidade total, a experimentalismos relativamente desconfortantes, mesclando colagens e ilustração, deslocações narrativas e ecos mais ou menos reconhecíveis de trabalhos anteriores. Este retrato permite-nos perceber uma amplitude saudável na produção de banda desenhada romena, e o projecto tem informação suficiente para nos ajudar a continuar essa pesquisa, começando com o seu próprio site (com alguns problemas de navegação) e depois os links que nos levam às páginas de cada autor. No entanto, ficaremos sempre com a ideia de que poderá ser uma imagem relativamente distorcida do verdadeiro perfil da banda desenhada romena contemporânea, não correspondendo aos seus exemplos mais comerciais e representativos, o que nos leva ao mesmo tempo a levantar questões se seria essa a melhor forma de fazer esse retrato. Bastar-nos-ia pensar no exemplo português para enfrentar problemas muito idênticos, questionamentos profundos sobre quais os objectivos desejados, enigmas sobre esse rosto a desenhar e devolver.
Enquanto projecto, parece um excelente ponto de partida, moldando assim um ar familiar entre os trabalhos dos artistas convidados. Mas a pulsão da criação que impera o trabalho de cada um desses mesmos autores, em termos individuais e autónomos, poderá estar sacrificada aqui em nome do projecto. De facto, é como uma embaixada: formalmente criada de propósito para vogar fora do seu país, compondo uma imagem planeada, necessariamente artificial.
Swedish Comics History. Fredrik Strömberg (Association)
Este é um daqueles autores que têm contribuído com pequenas monografias visuais dedicadas a um tema específico afecto à banda desenhada e, ainda que não apresente uma investigação revestida por instrumentos verdadeiramente académicos, ou sequer intelectuais consolidados que possa ser vista como a perseguição de uma ideia, é capaz de dar a ver uma lista pertinente sobre esse mesmo tema. Neste espaço tivemos a oportunidade de falar de um desses projectos, The Comics Goes to Hell, sobre as imagens do Diabo nesta arte, mas Strömberg fez também volumes sobre a representação dos negros na banda desenhada (Black Images in the Comics) e ainda o excelente Comic Art Propaganda. Este livro baseia-se num texto panorâmico sobre a história da banda desenhada sueca que o autor já havia publicado (inclusive no IJOCA), mas que aqui se torna profusamente ilustrado nos seus exemplos julgados mais importantes. Os fãs de Max Andersson e Lars Sjunnesson, os leitores das duas antologias, co-editadas e distribuídas pela Top Shelf, From the Shadow of the Northern Lights, dos magníficos trabalhos de Anneli Furmark, publicados na Drawn & Quarterly Showcase, ou os que se recordam do belíssimo projecto de Joanna Hellgren, encontrarão esses mesmos autores contemporâneos suecos, quiçá os mais representativos de um ponto de vista crítico, neste breve mas bem estruturado estudo, colocados num contexto muito alargado. Partindo das raízes suecas daquilo que pode contribuir para a “pré-história” da banda desenhada (as estelas cobertas de imagens e runas), Strömberg atravessa pioneiros da banda desenhada moderna europeia como Pehr Nordquist e Frederik Von Dardel, expõe o modo como autores tais como Oskar Anderrsson, Albert Engström e Oscar Jacobsson moldaram os seus respectivos personagens-chave de “anarquistas bem educados” no início do século XX, que influenciariam a personalidade da banda desenhada sueca, e depois apresenta os autores mais importantes a partir de géneros ou territórios da banda desenhada: banda desenhada infantil, de humor, dos jornais, de revistas para toda a família, de aventuras, autobiografia, feminina, abordando também aspectos como os organismos locais, os festivais, as publicações existentes nos nossos dias, os formatos mais usuais naquele país, e até mesmo a “diáspora” dos autores suecos, ou pelo menos das suas obras, fora do país.
Apesar de ser um texto relativamente pequeno (é um livro que se lê numa só tarde), a experiência e capacidade de síntese do autor permite-lhe um equilíbrio excelente entre informação pura e dura (datas, nomes, curtas biografias, números) e uma verdadeira assinatura cultural, sublinhando ou enfatizando características que se têm mantido na produção de banda desenhada neste país, o que lhe garante uma curiosa personalidade. No entanto, esse discurso está delimitado à banda desenhada, sem quaisquer cruzamentos intermediáticos ou interartísticos. Há diversos casos que estimulam o desejo de querermos saber mais, ou de fantasiar por uma tradução numa língua mais acessível, ou mesmo supor que num contexto comercial mais feliz a Suécia poderia ser um campo de colheita de trabalhos a divulgar junto a leitores interessados.
Komiks. Comic Art in Russia. José Alaniz (University Press of Mississippi)
A última forma de dar a conhecer uma tradição nacional (nesta nossa abordagem circunscrita) é a de um volume académico. Isto é, a um grau superior da mera apresentação de nomes, datas, factos, etc., há uma procura activa pela consolidação desses mesmos factos num estrato substancialmente sedimentado, através da consulta, comparação, cotejamento com outros estudos, autores, artes e discussões com anos, senão mesmo décadas, de desenvolvimento e acuidade. Alaniz, tal como Strömberg, baseia-se em alguns dos seus escritos anteriores, se bem que no caso do especialista de banda desenhada russa, essa produção seja mais alargada e transversal e - também importante - externa. Alaniz não é russo, logo a paixão dele não se pautará por qualquer zelo nacionalista, que poderá sempre ocorrer, de modo natural e em vários graus, em qualquer um de nós na defesa da banda desenhada do seu próprio país.
A apresentação da matéria é sobretudo cronológica, se bem que seja seguida por uma parte de “close readings” que aborda os temas das relações com exposições museológicas e as artes visuais, o tratamento nesta arte dessa nova classe social a que se dá o nome de “Novos Russos”, um estudo sobre os poucos exemplos da banda desenhada autobiográfica (é o caso de Nikolai Maslov, com o seu Siberia, publicado em inglês pela Soft Skull, que está no centro deste capítulo) e sobre as mulheres na banda desenhada (idêntico ao capítulo de Strömberg). Há, porém, um problema, mais ou menos ultrapassado por toda esta obra. Mesmo após a leitura do livro, a ideia com que ficamos é que a Rússia não tem uma verdadeira tradição de banda desenhada.
Aquele movimento nacionalista natural nas pessoas, aliado à ainda e talvez sempre necessidade em reiterar a legitimação cultural da banda desenhada leva estes movimentos: buscar-se no conhecimento da cultura de um dado país os exemplos mais recuados possíveis para estabelecer uma superioridade cronológica e artística neste território, ou por outras palavras, encontrar os “primeiros” da banda desenhada. Strömberg havia falado das pedras vikings, os portugueses poderiam vasculhar pelas nossas escolas de iluminação, o ciclo do Senhor Roubado, e muitos outros exemplos… Alaniz encontra nas gravuras populares conhecidas como lubok, ou lubki uma das suas raízes mais recuadas, nos pequenos espectáculos conhecidos como rayok, nos trabalhos de ilustradores como Ivan Bilibin e Vladimir Lebedev grandes exemplos de linguagens diversas e agregadoras, e, junto a toda uma série de experiências de comunicação visual associada às vanguardas russas e a comunicabilidade da propaganda soviética - as ditas “janelas ROSTA“ e as “TASS” - passando pelas ilustrações infantis e poéticas de El Lissistsky e Mayakovsky, inflexões dessas mesmas características. É apenas depois do fim da União Soviética que esta linguagem, tal como entendida no mundo ocidental, começa a encontrar alguns pontos de entrada e desenvolvimento, mas sempre de um modo relativamente pobre em termos de criatividade e de mercado.
É como se existissem duas linhas evolutivas de criação da banda desenhada. Uma mais “russa”, autóctone, quer do ponto de vista formal - o esforço contra a desconfiança das imagens por uma cultura profundamente verbal (independentemente da alargada iliteracia no país antes da Revolução Soviética), a procura por um estilo propositadamente rústico, menos dinâmico do que simbólico e alegórico - quer do ponto de vista temático - bebendo de um grupo relativamente coeso de assuntos, repetindo leit motivs, personagens-tipo, ou até mesmo posicionamentos nem sempre aceitáveis (um humor brejeiríssimo, uma misoginia inveterada, não muito diferente dos nossos próprios portugueses) e outra composta por estes exemplos mais contemporâneos, influenciados por várias tradições estrangeiras (outros dos factores que Alaniz aponta como sendo um obstáculo à aceitação da banda desenhada como um meio digno de atenção naquele país), e que acabam por se revestir como meras imitações, superficialmente adaptados. Uma destas questões - a ausência de uma respeitabilidade pela banda desenhada devido à forte componente verbal, e até mesmo literária (o ensaísta aborda a característica da literaturnost, da literariedade dos Formalistas) - é relativamente estranha no sentido em que esbarra com uma outra gigantesca e magnífica tradição de um meio de narrativa visual na Rússia/União Soviética, que é o cinema de animação. No entanto, o autor jamais aborda quaisquer relações entre essas duas linguagens de um modo sistemático, e esse mesmo silêncio cria um desacerto que apenas nos deixa dúvidas e questões.
Mais, a forma como se procuram muitos - demasiados, poderíamos dizer? - exemplos afectos às artes plásticas para compor o retrato da banda desenhada naquele país (fala-se do grupo PG, de Georgy “Zhora” Litichevsky, de Ilya [e Emilia] Kabakov, de Georgy “Gosha” Ostretsov, entre outros) parece fazer um desvio que permite uma legitimização mais consolidada desta linguagem artística, mas que não tem força suficiente no seio do seu próprio território mais específico (claro que isto aponta para um certo conservadorismo definicional). Esse desequilíbrio é sublinhado pelo gesto do autor em procurar fundar uma palavra específica para a banda desenhada russa, com a corruptela do inglês “komiks”, tal como já na língua inglesa se emprega mangá, bande dessinée, comix, etc. para apontar algum grupo específico de produção. Ele fá-lo até certo ponto em tom de brincadeira, mas é algo que não se sustenta pelo panorama moldado pelo livro. No entanto, na entrevista ao autor (ver abaixo) descobrir-se-ão pistas que poderão alterar esta perspectiva conservadora da nossa parte.
Outro aspecto menos feliz tem a ver com as imagens do livro. Quer as imagens a preto-e-branco espalhadas ao longo do texto quer aquelas a cores numa separata especial são demasiado pequenas, raramente são traduzidas e acabam por - dada a escolha particular do autor em relação aos seus objectos de estudo - não contribuir de um modo decisivo para o despertar de um desejo de maior acesso e leitura (o que não ocorre no caso sueco, por exemplo). O autor criou um blog, no qual disse que apresentaria “actualizações, correcções, e ilustrações suplementares”, mas apesar de ter algumas informações sobre banda desenhada russa, infelizmente essa descrição não é exacta. Logo, fica por satisfazer essa curiosidade natural em ver/ler mais, que esperamos venha a ser resolvida através de mais traduções, antologias ou outros gestos.
Pois é lendo a(s) própria(s) banda(s) desenhada(s) em primeiro lugar que nos podemos aproximar de um conhecimento mais directo, ainda que estes desvios nos ajudem a ler melhor ou a saber como procurar ler.
Parcialmente, como dissemos, temos alguns desenvolvimentos nesta curta entrevista com Alaniz.
Nota final: Agradecimentos a Marcos Farrajota pela oferta de The Book of George; a cópia do livro Swedish Comics History pertence à Bedeteca de Lisboa.

1 comentário:

komiksoved disse...

Muito obrigado, Pedro!