7 de fevereiro de 2011

AX. AAVV (Top Shelf)

Depois de um soberbo livro de estudos e a magnífica oportunidade em termos acesso facilitado a dois dos títulos mais populares da banda desenhada japonesa, uma outra forma de nos aproximarmos dessa esfera de criatividade (encapsulada por um princípio de nacionalidade cuja pertinência, no fundo, é limitada) é aquela que se consolida em antologias especiais que apresentam uma mão-cheia de autores. Neste caso, trata-se de um título colectivo no qual não estão representados aqueles nomes conhecidos pelo circuito mais habitual de publicação (as apostas mais comerciais das grandes editoras, aquelas obras que ganham notoriedade e distribuição global comercial pela existência sob a forma de animés, etc.). (Mais)
Estas antologias parecem surgir de tantos em tantos anos, e a AX encontra-se na sua esteira, que poderá ser desenhada, no que diz respeito aos Estados Unidos, pelos seguintes títulos: Sake Jock (Fantagraphics 1995), Comics Underground Japan (Blast Books 1996), Secret Comics Japan (Viz/Pulp 2000) e The Ganzfeld # 5, Japanada! (Gingko Press 2007). Mas também da RAW (primeira edição) à Dark Horse (Manga Surprise!, 1995) se encontrarão várias publicações que abriram espaço a autores menos imediatos ao mainstream da banda desenhada japonesa. Já na Europa, sobretudo graças às editoras francesas, o panorama é totalmente outro, uma vez que tem havido oportunidades de publicar com consistência a obra de alguns destes outros autores (a colecção Sakka da Casterman, que começara com Frédéric Boilet como editor, mas também a ego comme x, a Le Lézard Noir, IMHO, Tonkam, etc.). Isto significa que o grau de novidade destes autores apenas pode ser confirmado conforme a navegação dos leitores por estas publicações, tornando AX ora num excelente volume de introdução e expansão da ideia da banda desenhada japonesa, dando a conhecer não apenas autores como géneros, atitudes, estilos e direcções, ora numa antologia de nomes já familiares mas dando acesso a pequenas peças que até agora não haviam sido traduzidas para qualquer língua ocidental.

Esta antologia tem a particularidade de se centrar numa só publicação, a AX, uma revista bimensal iniciada em 1998, cujo editor é Mitsuhiro Asakawa, que havia trabalhado na mítica Garo. Ou seja, esta revista é, parcialmente, uma das herdeiras da tradição da gekigá, ou por outras palavras, da banda desenhada alternativa japonesa. Se repararem na capa, verão que para além desse epíteto inicial, ainda se incluem as palavras “independente”, “aberto” e “experimental”. Asakawa e Sean Michael Wilson trabalharam os dois para proporcionar, através da Top Shelf, uma montra de alguns dos autores que passaram por esse título. Como explica a o introdução de Paul Gravett, para além de considerações históricas importantes, os editores trabalharam sobre setenta números da revista, cada uma com cerca de trezentas páginas, o que dá mais ou menos dezoito mil páginas que atravessam dez anos para resultar neste “florilégio”.

Alguns autores já foram discutidos por nós noutras ocasiões, o que demonstra desde logo alguma acessibilidade a estes autores por aquelas plataformas que também indicámos atrás: Kazuichi Hanawa (aqui ao lado, com uma das suas histórias que misturam o período Heian e a fantasia popular), Shin’ichi Abe (possivelmente um retrato do seu próprio quotidiano), Imiri Sakabashira (a última imagem, em baixo, com mais um passeio estranhíssimo), Shiriagari Kotobuki (uma quase abjecta relação entre dois homens que abrem a filosofias profundas), Yoshihiro Tatsumi (com um conto sublinhando até onde as portas do desespero humano podem conduzir), Takashi Nemoto (mais uma vez com personagens horrendas e histéricas), Akino Kondoh (mais um jogo do quotidiano das adolescentes).
Para além destes, encontramos nomes novos para os leitores ocidentais, como nós, e, dessa forma, apresenta-se perante a nossa leitura toda uma oferta diversa de formas e humores. A esmagadora maioria dos trabalhos não se pautam, obviamente, por preocupações que tenham a ver com o respeito por expectativas convencionais de beleza - não se encontrarão aqui os estilos mais clássicos da mangá comercial - e, ainda que não se mergulhem aqui nos círculos mais abjectos ora da pornografia ora da violência extrema, ora ainda de outros desvios de expectativas (que, no contexto japonês, como explica Frederick L. Schodt, corresponde mais a totais fantasias escapistas do que a projecções de desejo), temos aqui sedução que baste para os amantes da excentricidade, começando com Shigehiro Okada, com uma história que poderá ser um brevíssimo retrato de todos as estranhas personagens de modas-em-formato-único de Shinjuku.

De entre os vários autores presentes (são trinta e três, a antologia tem quase quatrocentas páginas), poderemos diferenciar Nishioka Briosis, Katsuo Kawai, Ayuko Akiyama, Takato Yamamoto, Hiroji Tani, Mitsuhiko Yoshida e Shinya Komatsu, pois são autores que apresentam estilos mais suaves, até mesmo belos, e as suas histórias compõem-se de contornos que poderíamos chamar de poéticos. Briosis e Kawai exploram ainda assim o absurdo nas relações humanas. Akiyama parece beber mesmo de contos tradicionais. Yamamoto e Tani devem ser discípulos de Suehiro Maruo, mas sem as mesmas arestas cortantes: o terror serve para sublinhar outras belezas. Yoshida apresenta uma versão curiosa da lenda da lebre e da tartaruga. Komatsu, numa espécie de estilo infantil cheio, tem uma bela parábola sobre os desejos cambiantes das crianças.

Depois temos ainda Yusaka Hanakuma, Hideyasu Moto, Saito Yunasuke e Yuka Goto, com um desenho mais cru, naïf, mas que servem bem o propósito terrivelmente cómico e horrível das suas histórias (um casal a ter cachorrinhos, duas vizinhas num combate por causa de um cão, uma miúda a fugir de uma chuva de urina de um gigante, a morte de um pai extremoso e os seus cinquenta filhos fantasmáticos). E Einosuke (aqui ao lado), que num estilo concentradíssimo, mostra apenas uma família a comer massa, mas isso transforma-se numa epopeia de sensações exacerbadas.
Seguramente que, com a abertura progressiva do mercado, a multiplicação dos públicos variados, o aparecimento de editores decididos a projectos diferenciados (mas também apoios institucionais, pois tal como a antologia sueca From the Shadow of Northern Lights, este livro foi publicado com fundos de institutos culturais associados aos países respectivos pela editora independente norte-americana) o leque de oferta vai abrindo, sobretudo na direcção destes territórios menos habituais. No centro da nossa ignorância, imaginamos que existiriam muitas outras revistas possíveis desta atenção. Conhecendo, por exemplo, as revistas Error (muito cool, visual, com ecos europeus), a Comics H (antologia diversa em torno do género “slice of life”), a Aries (sobretudo dedicada ao ero-goru conemporâneo), e vendo nela uma grande diversidade, imaginamos essa situação, nada mais.

Tal como Frédéric Boilet queria diferenciar “le manga” de “la manga” no seu Manifesto, estas obras e estes autores utilizam esta linguagem artística para a exploração de expressividades pessoais, fantasias intransmissíveis, caminhos específicos do desenho, poemas de grande densidade, ou humores atrozes, derrotando aquela suavidade mais acessível de outro tipo de banda desenhada (que não significa necessariamente falta de mestria e de interesse). A antologia não indica quais os anos ou os números da AX em que as histórias seleccionadas foram publicadas, o que poderia ajudar nalguma arqueologia, mas as pequenas biografias finais acrescentam mais alguma informação sobre os autores e, tais como aquelas antologias indicadas no princípio, este volume abre o apetite para mais pratos alternativos… se a promessa for cumprida, o segundo volume virá em breve.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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