2 de julho de 2011

Nemesis. Mark Millar e Steven McNiven (Icon)

A re-leitura de alguns textos de Fernando Guerreiro, nomeadamente a reelaboração de textos sobre as relações entre o papel eventual daquilo que passa pela vanguarda das artes nos nossos dias, o terrorismo, e o fantasmático no acto literário (e, por extensão, artístico), no recente Teoria do Fantasma (Mariposa Azual: 2011), fez emergir toda uma série de ideias e imagens - com precisão, aquelas que o crítico e teórico desenvolve em torno do conceito de terrorismo como último bastião da ideia de “vanguarda” - que por sua vez nos remeteram ou fizeram retornar a um texto lido: Nemesis, de Mark Millar e Steve McNiven. Este texto será um conjunto pouco coeso de notas em torno dessa obra, e não uma apreciação crítica linear da mesma.
Os super-heróis são, a um só tempo, um dos mais afortunados géneros de banda desenhada do mainstream norte-americano, que ocupam um tal espaço no imaginário que muitas vezes se fazem confundir com todo o território, e a produção mais problemática em termos de apreciação, por suscitar paixões contrárias e muitas vezes incapacitantes. Talvez parte dessa fortuna se prenda com o facto de ser o único género cuja origem se encontra exclusivamente no meio da banda desenhada, e mais exclusivamente ainda no formato dos comic books, numa relação a que Peter Coogan, autor de Superhero: The Secret Origin of a Genre, talvez a monografia mais completa de estudo desta parcela da banda desenhada, chama de “simbiose”. A fortuna passa também pelas suas transformações intermediáticas (cinema de animação e cinema de imagem real, programas de rádio e televisão, jogos de computador, incursões em artes plásticas, moda e mesmo literatura) e, no que diz respeito à circulação comercial, por aquele modelo a que Marco Pellitteri, no seu estudo da mangá e animé, apelida de “binário”, em que o merchandising mais vasto explora esses textos originais nos mais diversos bens (veja-se o documentário Look, Up in the Sky: The Amazing Story of Superman, para aprender parte dessa fortuna no seu caso mais paradigmático).
As paixões a que nos referimos expressam-se ora pela mais fanática das defesas, que cria uma cegueira quase total aos problemas ideológicos que esse género faz implicar, e por vezes à protelação de uma adolescência insuportável, por outro, a ataques desmedidos e desinformados, que arrola toda a produção genérica e a reduz a um denominador comum que não existe.
No entanto, não deverá existir género que tenha sofrido mais transformações internas, inclusive daquela espécie a que se viria a chamar “desconstrução”, e estamos em crer que não foi preciso chegar a Watchmen de Moore e Gibbons para encontrarmos esses exercícios (ainda que esse título seja o seu mais completo e inultrapassado gesto; repetimos, como noutras ocasiões, que a leitura do livro de Geoff Klock é fundamental para essa história de sucessivos desvios: How to Read Superhero Comics and Why). Essas desconstruções continuariam sucessivamente, e uma das linhas que estenderiam a pesquisa de Watchmen é aquela que diz respeito à ambiguidade dos super-heróis face às realidades humanas e à esfera do político. Aí temos projectos tão diversos quanto os de Warren Ellis (The Authority), Mark Waid (Irredeemable) e Mark Millar (desde The Ultimates ao seu “run“ em The Auhority, passando por Wanted e Superman: Red Son). Outra das linhas é aquela a que se pode dar o nome de “versões”, em que uma conhecida história atravessa uma qualquer alteração, e o seu desenvolvimento, também conhecido, se pauta sob a luz dessa diferença: na Marvel é o “What if?”, na DC “Elseworlds” (ou outras nomenclaturas). Nemesis é como que a confluência dessas linhas, como veremos.
Mas antes de irmos ao cerne da questão, e sem nos podermos aprofundar (estas considerações querem apontar sempre numa direcção que é difícil cumprir na totalidade sem tempo e argumentação sustentada), há algo de intrinsecamente malévolo na própria natureza dos super-heróis. Fredric Wertham, o detractor incompreendido dos anos 1950 dos comic books, não teria razão ao apontar ao latente fascismo do Super-Homem? É fácil hoje desconsiderar essas afirmações como um disparate. Pois como é possível dizer tal coisa de uma personagem que é a própria encarnação dos grandes princípios da democracia e da liberdade e da justiça? (suspendamos “a via americana”, adição bem posterior). Mas a verdade é que é de facto possível, pois a fascização da sociedade não tem apenas caminhos mais claros (hoje seriam mais claros), mas bem insidiosos nos papéis que os super-heróis fazem crer ser o mais correcto (brawn over brain, vendetta pessoal versus justiça processual e distributiva, etc.; poder-se-ia imaginar algo sob a dimensão de “terrorismo de Estado”). Nemesis é uma das formas de levar ao extremo a ideia de que “com grande poder, vem uma corrupção imensa”.
Nemesis, o protagonista desta série de quatro comic books (o que se conhece por mini-série, ou série limitada, que pretende criar um universo diegético fechado e controlado pelos seus autores, e não faz parte da economia de marcas registadas das maiores editoras comerciais), é, para todos os efeitos, um homem que se preparou da melhor forma para ser o mais fantástico vilão da sua realidade. Inteligência, dinheiro e salero espectacular são os seus elementos formativos. A vingança é o seu mote. Depois de ir preparando o terreno matando vários polícias-estrela à volta do mundo, ele regressa à sua terra natal para se vingar do melhor polícia do mundo, o inspector Blake Morrow, razão última da sua origem. A forma teatral como se faz anunciar e as medidas de dimensões fantásticas que toma para o fazer tornam-no num super-vilão, um super-terrorista.
É aqui que a ideia de terrorismo parece fazer sentido numa sua acepção - controversa, sem dúvida - de espectacularidade da experiência. Todas as experiências da nossa sociedade são re-integradas, incorporadas, absorvidas, normalizadas no seu funcionamento. Não há quebra, choque, ou desvio que não ganhe rapidamente espaço na circulação dos signos, seja essa circulação directamente comercial (Mondrian como fundo da Garnier, Vivaldi como banda sonora de anúncios de televisão, o body-piercing ou as tatuagens como must das estrelas mais comerciais) seja nos comportamentos sociais (o louco na rua não incomoda, o sem-abrigo é parte da mobília urbana). Por vezes há até a mistura dos dois: o despropósito de Futre torna-se anúncio publicitário, expressão popular, palco de reabilitação de atenção mediática.
Onde se encontram então experiências que ainda tenham um valor de realidade, isto é, que não sejam assimiláveis? A “crise dos sistemas de representação e simbolização” leva a que as lutas sígnicas, pela des-simbolização, remotivação e refundição dos signos não opere somente nos espaços classicamente circunscritos (museus e galerias, artes), mas antes em toda a sorte de espaços, palcos e termos: “Um novo look ou modo de vestir, a ficção imaginante de um filme ou o gadget do momento, podem ser mais significativos do que o que se passa nas galerias, bibliotecas ou centros de cultura” (pg. 11 da plaquette Teatro Dubrowka, que vem com o livro de Guerreiro). Citando Don DeLillo, Guerreiro escreve, “enquanto figura imaginária e simbólica de referência, o terrorista ocupa hoje o lugar do escritor, ao mesmo tempo que, no quadro da perda de valores do simbólico e do sagrado na civilização ocidental, o terror tende a aparecer como o único acto com significado: não só porque intervém, produz real, mas também por lidar com proto-formas (sacrificiais) do sagrado” (pg. 14). Estando essa discussão integrada num contraste entre a produção (vanguardista) das artes, é muito curioso que Nemesis seja na verdade (spoiler alert!) revelado não como um mero vilão individual - o homem da máscara - mas antes todo um projecto articulado por uma espécie de vilão intelectual, actuando nos bastidores e em tempos alargados, que apenas descobrimos no fim e de esguelha (preparando a sequela, claro), com a capacidade financeira e recursos logísticos para colocar em funcionamento tal operação extremamente complicada. Ele planeia e produz, ao passo que o papel físico e teatral de Nemesis é cumprido por actores (os “ricos e aborrecidos” que contratam os serviços desse manipulador que prepara “os “super vilões do próximo ano”). Misto de jogo de xadrez, performance, instalação/destruição. Nemesis (o manipulador) é uma mescla de Blofeld, de Selznick, de Duchamp (artista e jogador de xadrez) e de anarquista.
Um romance de Tom McCarthy, Remainder (traduzido em português pela Estampa como Remanescente), tem como protagonista um homem que sofreu um acidente que fica por explicar, um trauma que lhe oblitera grande parte da memória, mas lhe coloca uma fortuna enorme nas mãos. Com esse dinheiro, a personagem, nunca nomeada, dará início a operações extremamente complexas de performances que o tem apenas a ele como público, uma vez que visam reconstruir aquilo que ele sente como memórias que deseja recuperar. Mas é mais do que isso. Ele quer recuperar os momentos em que ele se sentia totalmente uno com os seus movimentos, tal como os actores dos filmes - a imagem é dele -, que observa depois do acidente, executavam cada movimento com a maior das naturalidades e sem o atrito da gravidade da realidade. Poderíamos imaginar que o vilão último de Nemesis seria uma possível consequência do protagonista de McCarthy (cujos elos à banda desenhada foram revelados em Tintin and The Secret of Literature). (Guerreiro ainda fala de Glamorama, de Bret Easton Ellis, e talvez houvesse aí outro paralelo explorável, já que em muitos momentos, Nemesis tem afirmações tão vulgares, pouco profundas e insensíveis como as personagens de Ellis, mas isso seria outra dimensão).
“A quem levamos a sério?”, pergunta DeLillo em Mao II, “Apenas o doente letal, a pessoa que mata e morre pela fé. Tudo o mais é absorvido. (…) Apenas o terrorista se mantém à parte. A cultura não descobriu como assimilá-lo. Confundem-nos quando matam o inocente. Mas é essa precisamente a linguagem que se faz notar, a única linguagem que o Ocidente compreende” (apud. Guerreiro, 14).
Claro está que o terrorismo real que nos rodeia no mundo neste momento opera no interior de uma ideologia (política, radical, transcendente), num conjunto de interesses específicos. Os terroristas ficcionais - os negativos, os positivos e os ambíguos - quase sempre têm também propósitos explícitos - Fu Manchu usa o seu intelecto para conquistar o mundo, Ozymandias (Watchmen) quer a paz mundial pelo choque, V (V for Vendetta) quer o regresso de um sistema político mais justo. Muitas vezes os vilões surgem representados de uma forma de “mal absoluto”, em que não há dúvida dessa maldade - são tão capazes de assaltar um banco como empurrar uma velhinha na estrada, ou atirar os caixotes dos vendedores de laranjas à rua… uma forma básica de operar na economia das emoções da ficção. Ozymandias e V têm um papel menos primário, Nemesis parece querer levar - na ficção, repitamos - a ausência ideológica ao máximo, de forma a fazer uma emergência de um super-terrorismo, absolutamente esvaziado de ideologia, de fito.
Essa dimensão pode, ainda e novamente, remeter à história particular dos super-heróis enquanto género com especificidades formais e semânticas. A comercialização de Nemesis partiu, numa primeira fase logo depois corrigida (até por represálias legais eventuais da DC Comics), com uma frase e uma imagem bombásticas: “E se o Batman fosse o Joker?”. A associação era clara. Por um lado tínhamos uma personagem similar a Bruce Wayne, um playboy com uma fortuna imensa e tempo nas mãos, mas cuja missão, em vez de ser combater o crime, seria abraçar a psicopatia total idêntica àquela do maior inimigo do guardião de Gotham. O Joker é uma personagem curiosa no sentido em que, logo na sua primeira vida, com Bob Kane e Bill Finger, em 1940, surgia como um criminoso com propósitos estranhos, idiossincráticos e um modus operandi bizarro. Nesse sentido, estava imediatamente uns pontos afastado da também visualmente fabulosa galeria dos inimigos de Dick Tracy (em larga medida, um dos modelos centrais para a saga de Batman), pois esses estavam subsumidos à economia do género a que pertenciam - a tira policial -, logo, a uma criminalidade com uma teleologia mais simples e linear. Joker não, os seus propósitos eram mais caóticos, sem programa (“sem esquemas”, repetiria o Joker de Ledger na última versão cinematográfica, que influenciaria a tal imagem censurada, aqui reproduzida).
Outro paralelo diegético, simples, é a forma como Nemesis faz anunciar as suas acções futuras, através de cartões de visita, recordando assim um outro acto do Joker. Mas também o poderíamos aproximar de outro inimigo de Batman, a saber, o Riddler/Enigma, mais directamente citado no segundo episódio.
Porém, pensamos que essa estratégia comercial faz apenas sentido num sentido imediato e superficial. Em primeiro lugar, porque inscreve Nemesis numa linha de trabalhos (de género) que é o território sobre o qual Mark Millar deseja trabalhar. Um dos prazeres de ler histórias de super-heróis é ver repetidas as fórmulas e clichés, mas procurar as pequenas diferenças, os desvios significantes, o maneirismo (no seu sentido mais estrito vasariano). Se Millar experimenta parte do prazer dessa leitura no escapismo e fantasia adolescente de nos podermos tornar super-heróis em Marvel 1985, Kick-Ass e mais recentemente, Superior, ele explora um maneirismo que tinta os super-heróis pela “maldade” em The Ultimates e Wanted e Nemesis. É nesta última obra, porém, que ele exacerba esses princípios. Muitas pessoas julgaram Nemesis uma mera e crassa e hedonista orgia de violência sem sentido (com o vilão a explodir prédios inteiros, descarrilando comboios cheios de passageiros, assaltando à mão armada e sozinho o Air Force One e matando uma centena de polícias dentro de uma prisão à mão desarmada, etc.), mas é precisamente essa a razão pela qual Millar sublinha essa tal entrega do seu protagonista a um prazer quase totalizante do absurdo e mais esvaziado terrorismo.
A estratégia comercial do anúncio serve, portanto, para, por um lado, associar Nemesis a um imaginário reconhecível pelos seus leitores, mas por outro, para eventualmente disfarçar as outras tradições a que mais deve. E essas tradições estão ainda no campeonato da cultural popular, mas com contornos mais politizados: terrorismo e anarquia. Pensamos em Diabolik. Não é de todo original esta associação entre estas duas personagens, outros críticos notaram nas semelhanças (nas acções, no uniforme, na “caverna-esconderijo” state of the art). Diabolik é um dos casos-charneira dos fumetti neri, e sobre o qual já havíamos discorrido a propósito de Démoniak (e não resistimos a mostrar esta imagem de Paul Pope de algumas dessas personagens). Estamos sempre em círculos aqui, pois se a banda desenhada deve mais a toda uma tradição de vilões-heróis (os filmes de Feuillade), a adaptação cinematográfica de Diabolik por Mario Bava (1968) bebe substancialmente da série televisiva Batman com Adam West. A inflexão está no grau de violência (semi-séria, semi-camp) e nos contornos anarquistas das acções do protagonista, sobretudo a cena de destruir o edifício e arquivos das Finanças e o ataque com gás hilariante numa conferência de imprensa da polícia… Batman+Joker, novamente.
Nemesis não tem qualquer dimensão romântica, porém. Não há interesses românticos, não há justiça poética propriamente dita, não há sequer uma exploração de uma razão que nos levaria a “compreender”… Há um recontar de uma origem, uma desculpa por uma vingança, mas descobriremos no fim que se trata talvez de um engodo, de uma saída fácil (e falsa). Nemesis é um programa que apenas pretende ser, encaixar-se nos movimentos das suas acções e no presente dessas mesmas acções.
Quem experiencia a experiência Nemesis? O policial atacado? O vilão que mexe os cordelinhos? Os homens que preenchem o papel de Nemesis? Talvez todos. Em cada um deles, dá-se essa experiência real.
Poderá o terrorismo de Nemesis ser assimilado? Claro que sim. Não cremos, aprendendo a lição de Guerreiro e DeLillo, que o acto poético - aqui no seu sentido de “feitura”, não de valorização estética, de língua outra no interior de uma língua-mesmidade, pois como vimos o território dos super-heróis é como a caligrafia chinesa, em que a beleza nasce das infinitesimais variações, não do brusco diferenciamento - proporcione uma experiência do real inassimilável como o verdadeiro terrorismo histórico. Nem sequer estamos num terreno do simulacro: estamos na ilusão ficcional. Mais, se a versão cinematográfica se confirmar, com estrelas do maior calibre, os efeitos desta pequena obra podem até ser mais minorados ainda (como o foram no caso de V for Vendetta, de Wanted, etc.). Todavia, durante a sua leitura, a sua fruição - fugaz - e mesmo que encerrado apenas naquelas páginas coloridas, há um momento em que esse terrorismo produz um real.

Sem comentários: