3 de julho de 2011

O Espírito da Colmeia e Eu não reino. Luís Henriques e Pedro Nora, respectivamente (Ao Norte)

Todos estes livros da colecção “O filme da minha vida” partem de um projecto muito curioso de intermedialidade complexa. Não se tratam de adaptações que pretendam moldar a narrativa original de um filme para um outro meio, veículo ou contentor, nem tampouco a procura de uma versão, mas sim de uma transformação da matéria original na formação, criação, fundação de um novo texto. Logo à partida, a ideia de associação directa que existe pelas referências directas ao filme (uma breve descrição, o título, a sinopse) cria um quadro de contextualização narrativa, mas ao mesmo tempo isso faz operar nas nossas cabeças de leitores-espectadores a eventual fantasia transmediática de que estamos a observar frames singulares retirados ao filme, os quais, ainda que perdendo a sua qualidade de texto contínuo e estruturado, ganham em termos de autonomia e estruturação na sequencialidade permitida pelo objecto total. A separação das imagens (quer no interior de cada página quer entre cada página) torna visível aquelas elipses que são invisíveis na projecção de um filme, tornando o mais claramente possível a diferença não de grau mas de natureza entre um meio e outro.
Há também graus diversos de (re)introduzir uma abordagem não-narrativa ou anti-narrativa em relação ao texto original, mais sentida, nestes dois casos em particular, em Pedro Nora, uma vez que Luís Henriques pretende ainda manter alguma naturalidade entre as conexões das imagens, repetindo as personagens de vinheta a vinheta, seguindo movimentos do eixo espácio-temporal, “imitando” algumas das estratégias de enquadramento e figuração.
A questão da autenticidade pode-se tornar operante nesta discussão. Quer o cinema quer a banda desenhada são artes que vivem numa natureza bem diversa daquela de outras artes que vivem na necessidade de um original. Sendo ambas artes determinadas pela sua reprodutibilidade mecânica, não faz sentido (desde Benjamin) procurar pelo original. Mas estas obrinhas remetem-nos sempre, de forma imediata, à consideração que são posteriores aos filmes, em dois sentidos. Temporal: o livro vem depois do filme. Físico-processual: houve um decalque sobre a matéria do filme para criar o livro. Esse decalque recai, a uma primeira ideia, sobre a camada da narrativa, da história, da diegese, da fábula (estes termos têm, cada um, especificidades teóricas importantes, mas tratemo-los aqui como sinónimos de uma ideia mais corrente). Henriques e Nora recontam as histórias dos filmes eleitos nas suas páginas. O comentário que deve seguir essa leitura é… nim. Isto é, é óbvio que se ganha na leitura se se conhecerem os filmes transmutados, ligando ponto por ponto, imagem por imagem, entre o filme original e o texto final da banda desenhada. Mas por outro lado, ganha-se também olhá-los como obras autónomas, singulares e auto-sustentadas, sem qualquer tipo de obsessão nessa associação transmediática. Estamos muito , muito longe, daquelas versões desenxabidas em banda desenhada de uma história contada num filme.
O Espírito da Colmeia. Luís Henriques. Há uma cena no filme Satantango (1994), de Béla Tarr, em que uma menina tortura e mata um gato. Apesar de ser um dos mais belos filmes que vimos, a nossa lamechice pessoal por gatos tornou essa cena quase insuportável. Quando vimos o filme de Victor Erice (1973), posteriormente, uma das irmãs (pensamos ser Isabel) brinca com o gato e aproxima-se da cena protagonizada pela menina de Tarr. O enquadramento, o longo tempo da acção, a estranha relação ecológica entre criança e gato misturando, da parte humana, curiosidade natural, maldade, exploração moral, e do gato, sujeição total, fraqueza. Mas no caso d’O Espírito da Colmeia, o desfecho dessa morte (que julgámos anunciada) é interrompido. Era só a brincar… A comparação de um filme com outro para falarmos de um livro de banda desenhada que apenas se relaciona com um deles não é de todo despropositado, se tivermos em conta que temática e formalmente, todos esses três textos podem ser vistos como uma reformulação das caixas chinesas ou das matrioskas. Passagens, casas abandonadas ou em ruínas, espaços que se transformam em funções variadas (inclusive a sala de cinema que é casa de velório, mesclando o acto cinematográfico com o da morte, que abriria a uma exploração conceptual riquíssima), cinema dentro do cinema, portas que abrem para outras portas, reflexos que se transformam noutros.
Luís Henriques opta por uma paginação regular de duas vinhetas por página e utilizando uma sua técnica recorrente, “ruidosa”, que parece imitar um grão denso de película antiga, uma trama desarmónica que envolve um fumo ou um pó visual reminiscente ora da passagem do tempo ora da impossibilidade da tradução clara. Em ambos os casos, opera-se um distanciamento crítico, de humildade, da parte do autor. Com a excepção da primeira e última pranchas, isoladas pela paginação, e que estão mais próximas do design dos créditos do que do texto fílmico e de banda desenhada, todas as outras páginas são do texto central.
Estas unidades de duplas páginas ou de quatro vinhetas surgem então como unidades de sentido, unidades sucessivas que vão tirando partido das estruturas basilares do livro. Cada quatro páginas parece mimar uma cena específica do filme, mas ao mesmo tempo cria como que um enunciado particular, que pode ser lido por si mesmo e criando uma linha encaixada de sentidos: vemos imagens a emergir do grão gráfico de Luís Henriques, personagens a surgirem dessas sombras, manchas a adensarem-se, talvez buscado as formas figurativas a que almejam mas ao mesmo tempo sendo sugadas de novo para o informe. O Espírito da Colmeia explora o fascínio do cinema numa pequena aldeia da Espanha franquista sobre o imaginário de uma pequena menina, Ana, cujas experiências - sobretudo a de se cruzar com um soldado republicano em fuga - são transmutadas à luz dessa outra luz projectada. O filme dentro do filme, Frankenstein, traz uma camada adicional a esse fascínio e à projecção secundária de Ana. O filme é todo composto de passagens, mal-entendidos, expectativas, segredos, transformações, e talvez a cena mais emblemática destas passagens seja aquela em que Ana vê o seu reflexo transformado no do monstro de Frankenstein, introdução ao gesto de aproximação que se segue. Luís Henriques tira partido da própria paginação e formato do livro para mostrar essa transformação de um modo bem diferente, e mais efectivo na transformação que deseja.
Regressar a um texto e a um significado, alterando esses elementos de um modo subtil, garantir a sobrevivência de algum grau de narratividade. Humildade e variação.
Eu não reino. Pedro Nora. Pedro Nora, pelo contrário, elege uma colecção heteróclita de imagens singulares, todas sem elos imediatos entre si, raríssimas vezes repetindo elementos comuns (visuais, contextuais, temáticos, ou figurativos), sendo os únicos elos elegíveis então a sua co-existência num mesmo objecto - o texto - e a partida de um substrato fílmico. O regresso deste autor à criação de banda desenhada e ilustração, de que esteve afastado durante algum tempo, é pautada, a nosso ver, por um regresso duplicado, uma vez que mergulha novamente nas suas pesquisas gráficas idiossincráticas para responder aos desafios específicos da circunstância.
Cada imagem destas páginas oscila em termos de grau de figuração - de composições abstractas geometrizantes a figurações mais ou menos claras -, de estilo - desde o que parecem ser impressões a carimbo ou stencil a desenho a traço a densas manchas a pincel (supomos) - , de organização diegética - da representação de personagens num episódio narrativo (apenas um caso com texto, o caso mais declaradamente narrativo) e pequenos pormenores dos seus corpos ou acções -, de centralidade de sentido - do que podem parecer símbolos diagramáticos ou sintéticos a pequenos retratos/traduções de cenas do filme. É como se esta opção por concentrar num mesmo espaço (o livro) todas estas estratégias diferentes quisesse apontar para um paradoxo, uma impossibilidade. Talvez mesmo aquela impossibilidade de regressar ao “mundos dos anões” que o realizador apontou numa entrevista, isto é, um mundo em que ainda se poderia crer em organizações lineares da fantasia, da imaginação e do significado das coisas.
A propósito de Where the wild things are, encontrámos uma forma de explorar a língua portuguesa em que “reinar” era um verbo que tanto servia para o acto do comando de um território específico, o reino, como o de brincar, aberto a territórios mais alargados (de novo encontramos a possibilidade de encontrar espaços encaixados uns nos outros neste livro, se bem que Nora complique mais do que Luís a teleologia desses encaixes). Eu não reino parece assim ser uma afirmação paradoxal - considerada apenas enquanto título da obra de Nora - uma vez que o autor reina sim, neste seu pequeno reino. Todavia, ao mesmo tempo, pelo ataque que faz às estruturas clássicas de significado, Nora abdica a esse reino e regras da brincadeira (que razão se poderá ler com uma coroa caída no chão, ao lado de uma bicicleta?).
Sendo este o último filme de João César Monteiro, há muitos aspectos em que se o poderia ler como testamento (mas isso é disparatado por duas razões: primeiro pois ninguém tem as chaves da sua própria morte, e raramente executa gestos artísticos com a intenção inegável de uma herança nítida; depois, porque toda a obra de um artista se pode considerar sua herança, e no caso de Monteiro, os seus filmes-diários ficcionais estão ainda mais próximos desse diálogo). A passos tantos, o protagonista, João Vuvu, no centro de uma diatribe contra o Cristianismo e as suas farsas, afirma que “Só o problema é interessante, nunca a solução”. São assim os filmes de Monteiro. É preciso dizer que Nora constrói um problema e não uma solução?
Nota: agradecimentos à editora pela oferta dos livros.

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