17 de outubro de 2011

Four Color Fear. Greg Sadowski, ed. (Fantagraphics)

O fascínio pelo terror é algo de muito antigo na experiência humana, presente até mesmo na necessidade da criação de figuras aterradoras, existentes no folclore de todas as culturas, e desde logo nas descrições literárias mais recuadas da Antiguidade, com as suas qualificações específicas. Mas a sua manipulação criativa num género literário, que depois se verteria noutros modos narrativos, como o cinema e a banda desenhada (o teatro não seria excepção, pense-se no Grand Guignol), tem as suas raízes imediatas no Gótico do século XVIII. Esse género ganharia contornos específicos a cada um dos seus momentos de desenvolvimento histórico, e - aproximamo-nos do material da antologia que nos traz aqui - nos anos 1950, nos Estados Unidos, ganharia especificidades que bebiam das circunstâncias político-culturais em que se inseria. Recordemos algumas: a esperança versus o medo do nuclear, o conforto materialista e caseiro do pós-guerra e a ameaça “invisível” dos Comunistas no interior do país, novas formas de violência presentes sobretudo na delinquência juvenil, um entendimento dos limites da ciência e dos terrores que dela poderiam nascer… mas não são apenas esses os temas que encontraremos nas histórias de Four Color Fear. Forgotten Horror Comics of the 1950s. Encontraremos aqui também outros princípios que revelarão princípios de xenofobia (literalmente “medo do estrangeiro”), de superioridade moral e civilizacional perante uma outra cultura, machismo, desconfiança do génio artístico e de modos de expressão diferentes, etc. Até o LSD tem um papel numa das histórias, desenhada por Basil Wolverton. (Mais) 

É nas lições do filósofo Noël Carroll, autor, entre outros livros, de The Philosophy of Horror: Or Paradoxes of the Heart, que dispensa a abordagem psicanalista que minou durante décadas a apreciação de determinados géneros, que explica esse fascínio. De uma maneira simples (aqui), porque é que as pessoas “têm medo” destas ficções, apesar de saberem que são ficções? Se não soubessem, largavam a correr das salas de cinema, ou lançariam os livros para o outro canto da sala… Segundo Carroll, que parte de uma perspectiva cognitivista, é possível acedermos a estados emocionais se imaginarmos determinadas coisas, isto é, sem necessariamente as experienciarmos. Isto permite que podemos reflectir sobre determinadas proposições de uma forma não-assertiva, isto é, submetendo-nos a essa proposição no plano da imaginação. Numa entrevista, Carroll dá o exemplo de quando nos encontramos num ponto muito alto e olhamos para baixo, e sentimos medo ao imaginarmos cair. Por vezes, até forçamos essa fantasia, e sentiremos medo, apesar de não fazermos nada para cair na verdade… E é isso também o que nos leva a procurar ler, ver, experienciar as ficções do horror. Podemos então ver o horror (mas outros géneros transmediáticos também) uma espécie de máquina de projecção onde se tentam sensações e ideias que não passam necessariamente pela experiência. É essa, no fundo, a função da faculdade da imaginação.

O livro de Carroll encerra demasiadas lições complexas que possam ser transformadas numa sebenta de aplicação sobre esta antologia, mas bastará apontar o facto de que as histórias em FCF incluem muitas das categorias possíveis dessa taxonomia, desde a violação das leis da natureza pelo “impuro” e do “nojo” à forma como o terror serve como plataforma de crítica ora a outros géneros ora a realidades históricas da experiência dos leitores. O sobrenatural e a ciência, a exploração dos mundos internos psicológicos ou do sonho, o crime e humor (bastará ver estas duas Nursery Crimes desenhadas por Howard Nostrand), são algumas dessas esferas cruzadas, variações de géneros, etc., nestas histórias.

Quando se pensa na banda desenhada norte-americana de terror da década de 1950, quase sempre virá à tona aquela produzida pela E.C. Comics. Quer pelo seu nível de produção (desde a escrita, os temas, a relação com Ray Bradbury), quer pela excelência artística que pugnava por uma bitola superior à esmagadora maioria do que circulava no mercado (com um grupo impressionante de artistas freelance, hoje vistos como artistas maiores desse seu território), quer ainda pela personalidade e papel do seu editor, Bill Gaines (que se tornaria famoso por ter participado no Sub-Comité da Delinquência Juvenil de 1954, uma das consequências da caça a alguma banda desenhada vista como nociva, sobretudo a de terror, instigada por várias associações de pais e que ganharia uma inflexão muscular com o arregimentar da obra de Wertham, Seduction of the Innocent), são as capas, as histórias e os nomes associados à E.C. Comics que parecem ocupar um lugar central. Para isso ajudam algumas das obras que têm mantido acesa essa presença no imaginário, tal qual Tales of Terror! The EC Companion ou Foul Play!, e a presença em vários documentários sobre esse episódio da história da banda desenhada (por vezes quase tornando-a numa novela de oposição entre a E.C. e os censores), já para não falar das próprias antologias E.C. Archives. Acima de tudo, porém, estão também as características repetidas e imitadas do trabalho conjunto de Gaines, Kurtzman e Feldstein: narração externa envolvendo sempre a segunda pessoa, descrevendo a acção no presente, o uso de focalizações fixas e exploração de movimentos nas vinhetas sucessivas de uma só tira, as estruturações de página, algumas estratégias de cor, etc.

Mas como explica John Benson na introdução a esta antologia alternativa a essa história, a produção da E.C. compunha apenas 7% do que se incluirá nessa categoria de “terror”. Isto significa que o brilho e importância que se tem dado à E.C. obfusca a própria possibilidade de revisitar outros pólos de produção do mesmo género. Four Color Fear (que dá continuidade a títulos bombásticos em torno deste capítulo da história, como Ten-Cent Plague, de David Hadju) quer repor essa atenção através desta antologia de 40 histórias de variadíssimas outras editoras (a Atlas, a Fawcett, a Ajax/Farrell, a Trojan, trabalhos saídos do atelier Eisner-Iger, e até mesmo da Harvey). O trabalho de Greg Sadowski enquanto historiador e editor (cujos frutos já deram nas antologias Supermen! The First Wave of Comic Book Heroes e os magníficos 2 volumes da obra de Bernie Krigstein) é feito num quadro específico de outras publicações, não apenas aquelas indicadas acima, mas igualmente o acesso a edições de alguns artistas, tais como Steve Ditko ou Bernie Kriegstein (aliás, as chamadas para essas mesmas edições, da Fantagraphics, torna essa rede editorial e financeiramente coerente). Este livro tenta, a nosso ver, dar uma ideia do que seria a produção “média” do horror nesse momento único, já que a emergência das editoras e das histórias ronda a década de 1950 (se bem que existissem exemplos anteriores, simplesmente não de forma sistematizada) e encontraria o seu fim na segunda metade dessa década, por duas razões. A primeira foi o aparecimento rápido da televisão como a entendemos modernamente. A sua invasão dos lares burgueses norte-americanos funcionou como uma nova plataforma de criação e lançamento de uma rede cultural, de referências, de modos de fruição e até de imaginários para todo o público. A segunda, que data de 1954, foi o aparecimento do Comics Code, cuja história é tão complexa como debatida noutros círculos, e cujo alvo principal foram precisamente os comic books de terror. Sadowski escreve como em 1956 “a maior parte das companhias de banda desenhada tinham fechado” e que até mesmo “a indústria havia perdido a sua relevância até ao ressurgimento dos/pelos super-heróis na década de 1960” (pg. 315). Estamos mesmo a falar de um período claro e denso em termos de produção.

O resultado geral da leitura de todas estas histórias, como dizíamos, “médias” (salvo excepções) não é muito diferente de algumas ideias preconcebidas. As personagens são menos desenvolvidas psicológica ou moralmente do que integradas numa economia de significados rápidos; a lógica das histórias, mesmo no interior da fantasia e do terror, nem sempre avança por necessidade e é quase sempre coroada com um “fim-choque”; há algum desequilíbrio entre a matéria visual e a verbal, esta última vergando com o peso de legendas narrativas algo dispensáveis e redundantes; e a própria proficiência visual funciona no interior dos espartilhos da banda desenhada dos comic books, com as suas grelhas apertadas, as soluções de figuração e composição algo limitadas (temos uma história de Joe Kubert, soberba, as maravilhas de Wolverton, mas o que não faltam são prestações risíveis da anatomia ou do estilo), representações o mais melodramáticas possíveis, e incongruências internas a cada peça que apenas se justificam pelos seus trâmites “industriais”. É possível que algumas destas descrições sejam subjectificadas através de um gosto pessoal que não inclui a entrega ao horror… A predisposição é muito importante para a suspension of disbelief, sem a qual apenas se notarão os mecanismos estruturais e fictivos, e logo a um derrubar total da ilusão pretendida.

Sadowski apresenta no final das histórias umas breves apresentações de cada história, procurando ora linhas de interpretação, contextualizando-a histórica e artisticamente (citando uma possível fonte de influência, recordando uma tendência contemporânea, um qualquer elemento recorrente no género, etc.), ora pequenos dados significativos ou interessantes em torno das biografias dos seus autores e editores, que revelam não apenas opções artísticas como sobretudo facetas societais e políticas. Através da citação de muitas entrevistas da Alter Ego, e de um manancial de outros livros em que os profissionais veteranos partilharam as suas memórias (todos indicados na breve bibliografia), há pequenas pérolas sobre a forma de trabalhar, de criar e de editar destas revistas, o que demonstram, pela enésima vez, que nãos e tratava de forma alguma de um mundo róseo de criadores livres e despreocupados, mas sim de empresas muitas vezes sem escrúpulos e aproveitadoras das energias dos artistas e escritores, como ao mesmo tempo mostram - malgré tout - que o Sub-Comité que levaria ao Comics Code não deixava de ter alguma razão sobre a falta geral de qualidade dos trabalhos…

Há ainda uma espécie de extras, com uma colecção de capas de várias revistas deste campo específico (não necessariamente as mesmas que conteriam as histórias apresentadas), também alvo de uma apresentação sumária, e que aumentam o grau de informação pertinente de todo o volume. Surpreendente episódio está na inclusão de duas capas feitas por um pintor sueco de nome William Ekgren, cujas telas foram compradas pelo editor Archer St. John, na feira de Greenwich Village, usadas nas capas de três comic books, e logo de seguida devolvidas ao autor. Um caso raro e estranho para a época, parece-nos. No cômputo final, estão aqui trabalhos - histórias ou capas - de Jack Cole, Joe Simon e Jack Kirby, Norman Saunders, Reed Crandall, Frank Frazetta, Wallace Wood (antes da EC) e Basil Wolverton.

Aquela abordagem relativamente negativa, ou que sublinha a qualidade genérica dos trabalhos reunidos não quer apenas significar que não existam histórias surpreendentes ou com um qualquer grau de qualidade. Uma funciona pela negativa: “Servants of the Tomb”, de Bob Powell, de 1951 (veja-se a arte original aqui ao lado), mostra um país na “Ásia ocidental”, supostamente num momento histórico antigo, em que um grupo de criaturas horrendas, diminutas, envelhecidas e de traços fisionómicos mais ou menos idênticos entre si vivem nas catacumbas pelos “crimes horrendos cometidos quando estavam livres” (mas nunca saberemos que crimes seriam); eles procuram vingar-se chamando poderes sobrenaturais que acordam um gigante (atrevemo-nos a dizer "golem"?) que os tira das profundezas e matam tudo o que encontram. Mas eis que as pessoas rezam e surge dos céus o “Deus Branco da Paz”, musculado, louro e vestido de branco, que depois de derrotar o monstro, impede mesmo que os tais homens sejam mortos pela multidão em fúria, mas sim sejam colocados nas catacumbas de novo… Nem é necessário um grande exercício de hermenêutica, parece-nos.

As duas outras histórias mais surpreendentes já foram na verdade alvo de publicação noutros locais (ainda que a memória nos falhe numa delas). Essas histórias são “Colorama”, também de Bob Powell (de 1953, e que foi republicada no The Comics Journal, em 2008), e “What’s happening at… 8:30 pm”, possivelmente escrita por Nat Barnett e desenhada por Howard Nostrand (de 1954). “Colorama” é uma das raras histórias que tenta manter a perspectiva ocular na primeira pessoa, levando aos seus estranhos e confusos planos. Buscando imitar os princípios de qualidade da E.C. e em apenas cinco páginas, esta é uma história cujo terror não se apoia de forma alguma em ameaças nem externas nem sobrenaturais, mas uma mescla de ciência, fisionomia humana e o absurdo (de duas maneiras, já lá iremos). Um homem começa a ter problemas de visão que moldam a realidade à volta dele em formas inusitadas e coloridas [ver prancha do segundo parágrafo]; ele encontra um oftalmologista que tem a solução num par de óculos mas que ainda têm um problema, e não os pode dispensar. Mas como o problema persiste, o homem mata o oftalmologista e rouba-lhe os óculos. Aos poucos, olhando para uma esquina, as cores começam a desaparecer até tudo ficar negro. Se bem que adoraríamos dizer que o absurdo literário desta história é uma jóia da criação, a verdade é que o absurdo num sentido mais banal é inultrapassável: porque é que as crianças estão paradas apesar do homem continuar a mover-se? E que raio de doença é esta? E o comportamento das cores em nada mima a física dos olhos, mas antes a da quadricromia! (o preto só tem todas as outras cores quando se falam de tintas e impressão, não quando nos referimos à luz). Bem vistas as coisas (pun intended) é provável que seja esse mesmo mecanismo final que a torna uma história memorável da banda desenhada, e não transportável como tal para outro meio expressivo… [é curioso que esta última página que mostramos, tirada da internet, é “censurada” pelo texto acrescentado, e não presente na edição consultada, na vinheta a negro, assegurando que o fim da história não o é e que se retornaria a uma condição normal… para que serve o terror catártico assim?].

“What’s happening at… 8:30 pm” é também uma história de 5 páginas, e tanto devedora à E.C. como aos establishing shots de Eisner, que o próprio Nostrand confessa numa entrevista (se bem que essa mesma estratégia de Eisner, famosíssima e intitulada de “logotectura” por Alan Moore, também tenha as suas fontes directas e influências). A história encaixa-se na perfeição no tipo de horror da Harvey, que nunca era no fundo um horror verdadeiro, já que os acontecimentos não eram passíveis de serem identificados nas experiências dos seus leitores. Neste caso, a personagem principal é um germe, e o que acontece às 8:30 é uma “chuva de raios X” que os eliminam. Mas a própria premissa, os mecanismos de hard boiled fiction, o quase subtil arranjo das cores (“quase” pois na quadricromia pobre destas revistas, poderia passar perfeitamente ora por erro ora por inclusão consciente das limitações), torna-a igualmente uma história memorável. Mas talvez a própria antologia procure que essa memória se alargue substancialmente, ao ofertar-nos uma escolha para além do usual, concorrendo assim sempre para uma cada vez mais latas e consolidadas aprendizagem e acesso.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. As imagens foram todas colhidas na internet.

1 comentário:

Isabelinho disse...

Olá Pedro:

"Colorama" foi publicada em _Art Out of Time_ de Dan Nadel.