4 de maio de 2012

12/La Douce. François Schuiten (Casterman)

François Schuiten é um autor cuja obra parece nutrir-se de um veio nostálgico muito específico, que cria um imaginário coerente nele mesmo, parecendo emergir quase directamente de uma visão do mundo desenvolvida no século XIX, por via da literatura fantástica da época com as suas ilustrações em edições de luxo. E, para mais, mesmo que muitas vezes sob um filtro semi-irónico, tudo passado por uma espécie de saudade por sistemas tecnológicos obsoletos. O comboio em vapor é em si mesmo alvo de prazeres nostálgicos de muitas formas, até mesmo no interior da obra do autor, associando ao livro Le Rail, de 1982, com Claude Renard (entre nós surgindo no Jornal da BD). Para todos os efeitos, 12/La Douce é um álbum dedicado a um comboio, a uma locomotiva, mas também a um certo estado do mundo, a uma profissão romântica, a um entendimento da relação entre o homem, a máquina e a natureza, e, como não podia deixar de ser, a uma oclusão de algumas facetas relativas a tudo isso, precisamente com o intuito da romanticização que está em curso no livro. (Mais) 

Não há qualquer indício editorial que este álbum pertença ao ciclo, com Peeters, das Cidades Obscuras, mas todos os seus elementos - visuais, narrativos, composicionais, imaginativos - permitem uma sua integração “emprestada” no mesmo, ao contrário do ciclo muito diferente de Les Terres Creuses, com o irmão Luc Schuiten. Seja como for, a forma de percepção lúdica à qual se associam certas produções de banda desenhada, e a de Schuiten não é alheia a elas, permitirá precisamente essa mesma integração.

O universo diegético é feito de um patchwork de referências que tanto serve para confundir como para mistificar. O comboio em si aponta para a década de 1930, mas a forma como vemos a rede de comboios ao longo da terra não-nomeada (e que faz emergir a Mitteleuropa que é habitual ao autor) e o surgimento de um novo teleférico aproveita elementos da passagem do século XIX para o XX; a dado momento, um cemitério de automóveis parece ocupado exclusivamente de modelos dos anos 1950 e 1960; as modas - das vestes, dos cortes de cabelos, dos bigodes, dos uniformes, etc. - das personagens que vemos tanto oscilam entre os anos 1880 e 2000... A narrativa é feita - fórmula clássica - in media res, com o protagonista, o mecânico (responsável pela condução da locomotiva) Léon Van Bel, a relatar em retrospectiva a sua carreira profissional a uma jovem mulher, Elya. O relato chegará a esse mesmo momento, em que a “missão” do protagonista está exposta, e permite-nos avançar para a recta final e a resolução.

O modelo que ocupa o lugar central de estrela no livro é uma locomotiva real, chamada de 12.004, apesar das suas linhas modernas poderem dar a ideia de uma dimensão fantástica e irreal (não falta documentação visual, inclusive videográfica, desta máquina na internet). É como se se encontrasse um encontro entre as interpretações gráficas de Cassandre dos objectos da sua época no design dos transportes que viriam. Anexos à banda desenhada partilham informação vária, desde a situação dos caminhos de ferro franceses e belgas na década de 1930, as invenções de André Huet e Raoul Notesse que levariam à “locomotiva Atlantic de Tipo 12”, fotografias da época e da sua recuperação às mãos do futuro Museu dos Caminhos de Ferro de Bruxelas (patrocinador deste projecto), secções e descrições técnicas, sublinhando, a seu modo, o carácter fetichista que todo o álbum envolve. Mais, as páginas de guarda mostram uma quantidade de fotografias (desenhadas por Schuiten) que mostram alguns dos espaços e objectos do álbum, recordando aquelas dos álbuns clássicos de aventuras franco-belgas: isto é, as guardas enquanto espaço liminar e de exposição objectificada dos “troféus” dessas mesmas aventuras - neste caso, apenas uma -, mais uma vez resquício dos géneros da literatura popular do século XIX. Gabinete de curiosidades, parede de troféus, galeria de aquisições, caderneta de cromos. Ora, é significativo, e aproximemo-nos de um dos temas que nos interessa explorar, que algumas dessas imagens mostram a jovem Elya. Mas já lá iremos. O que importa para já é apercebermo-nos então desta dimensão de reificação, muito típica de um certo tipo de leitor activo de banda desenhada, que é também coleccionista de figuras, de cromos, de modelos, de miniaturas dos objectos das suas leituras. Não será por acaso que uma segunda linha narrativa  no álbum é a busca, da parte de uma personagem secundária, Edgard, da última estatueta da mítica (na ficção) bailarina Isabella (com a qual Elya é parecida, construindo uma pequena rede de desejos).

Mais, essa mescla de ludicidade, reificação, e domínio tem uma outra dimensão acrescida pela “realidade aumentada” que é permitida com as guardas do livro, na interacção digital com um programa (veja-se o site). Seria tentador empregar alguns dos instrumentos psicanalíticos tentados por alguns analistas - recordemo-nos da forma como Melanie Klein trabalhava com o pequeno Dick para operar a passagem da identidade para a semelhança,  chamando o comboio de “pai” e a estação de “mãe” - mas isso levar-nos-ia a um território demasiado simplista e insustentável. Et pourtant
A feminização em língua francesa de certas formas de transporte, como os navios e os comboios, sublinha uma certa subalternização da mulher, por relação ao homem que domina, comanda, conduz e trata da máquina: é a sua responsabilidade e é o seu poder, numa hierarquia clara. Essa feminização pode assumir vários tratamentos, sendo a comparação com a docilidade expectável/projectada da mulher parte desse processo, e claríssimo no trocadilho entre “doze” e “doce” patente neste livro e na consequente relação paternalista de Van Bel com a locomotiva). Repare-se como o arranjo tipográfico do título, com o número e a  palavra sobrepostos, acentua essa fusão, esclarecida desde o início, e uma constante deste livro.

Mas essa dimensão ganha ainda outros contornos. Van Bel e os seus colegas travam uma batalha contra o tempo, uma vez que as locomotivas a vapor (a dimensão poluente nunca é observada pelos nostálgicos dos comboios a vapor, se bem que Schuiten mostre uma lenta doença a apoderar-se de Van Bel, que o enfraquece mas, assim, o torna mais heróico na sua missão salvífica) serão todas substituídas por teleféricos eléctricos, os quais vão construindo uma rede cada vez mais fora do alcance dos mortais - demonstrado pelas estratégias visuais e narrativas de distância em relação ao mesmo - e que transforma profundamente a paisagem (devido às cheias provocadas pelas barragens eléctricas relacionadas), o tecido social e técnico (profissões que mudam, deslocação de populações, de economia, tecnologias substituídas e abandonadas, etc.) e mesmo urbana (centros que se alteram, cidades que se abandonam). Além do terem de lutar contra os novos planos da Empresa de Transportes Públicos, e o desmantelamento sucessivo das locomotivas pelo seu metal - salvar a “12” é portanto a missão de Van Bel, entrosando com a realidade histórica da sobrevivência de uma das seis locomotivas construídas em 1939 -, têm de combater os ladrões de metal. Uma dessas ladras é Elya que, capturada pelos condutores, é quase violada, se não fosse a intervenção de Van Bel. Mas enquanto salvador, mais tarde encontrar-se-á novamente com Elya, a qual se torna coadjuvante dele, e em muitas ocasiões salvadora, instalando-se uma relação mista entre paternalismo, projectado da parte de Van Bel da “12” para a jovem mulher, e uma tensão sexual jamais realizada, mas que serve os propósitos da titilação dos próprios leitores.

Schuiten pertence, de uma forma cabal, a todos aqueles autores “clássicos” da banda desenhada franco-belga pós-1968. A breve mas duradoura revolução permitida por projectos como o da Losfeld e outras editoras veio abrir o território da banda desenhada francófona ao erotismo, senão mesmo à pornografia, e, consequentemente, à entrada de representações sexualizadas no interior da banda desenhada mais comercial - já não somente infantil, mas pelo menos dirigida a adolescentes ou jovens adultos. Repare-se como autores tais como Bourgeon, Ribera, Boucq, Mézières, Tardi, Moebius, Bilal, Servais, entre tantos outros, tiram partido da possibilidade de representar a nudez para colocarem as suas personagens, mormente as femininas, em situações de nudez parcial, total ou repentina, ofertados ao olhar dos seus leitores (maioritariamente masculinos). No mundo da mangá e animé, isso é conhecido como "panchira" ou "fan service". O ensaio de Laura Mulvey (“Visual Pleasure…”), já uma vez citado aqui, providencia-nos com alguns instrumentos para ler estas estratégias visuais, levadas a cabo quase religiosamente por Schuiten. Quase todos os momentos em que a jovem Elya se despe ou se encontra numa posição erótica, ou pelo menos eroticizante, há uma coincidência entre o olhar de uma das personagens masculinas, Van Bel acima de todos, e a do próprio leitor. Cria-se assim uma rede de cumplicidade que se quer “natural”. Na capa, Van Bel encontra-se sujo do vapor da locomotiva, mas Elya (“etérea”, poderíamos dizer), está cima do peso da matéria, com a sua pele imaculada e (pouco) vestida de branco. Há, logo aqui, uma confluência entre o papel actancial da locomotiva e a de Elya.

Se esta opção é matéria corrente em Schuiten, acompanhando ou não por argumentistas, Benoît Peeters à cabeça, em 12/La Douce isso é levado quase ao paroxismo. Este é autor que prima pela construção de imagens icónicas, paisagens urbanas ou naturais nas quais se nota a marca humana, mas cujas personagens hieráticas são desprovidas quase totalmente de emoção e expressão, que nutre uma particular preferência por personagens masculinos retirados de um conjunto de referências nostálgico, retratista, oitocentista, e por mulheres jovens, cândidas e impressionáveis (pelos protagonistas homens). Não é que não encontremos algumas páginas cuja composição, como a segunda prancha do álbum, seja de uma simples elegância, tornando-o um autor  maior. No entanto, a sua subsunção a certas imagens feitas enfraquece a sua capacidade criativa e de narrador. Se a nossa comparação da locomotiva com esta personagem parece abusiva, há uma outra informação que faz pender para a sua efectiva significância: Elya é muda. Apesar de se tentar exprimir verbalmente em alguns momentos, Van Bel quase sempre não entende nem faz esforço para a entender, e quando ela dança, dança para Edgard, não Van Bel. No final do livro, depois de terem descoberto a locomotiva e conseguirem recuperá-la para a sua vida mecânica, Elya assume o papel de “chauffer” (que, aprendemos e até nos inteiramos da etimologia da palavra, não são os condutores mas os responsáveis pela alimentação da caldeira), e o protagonista diz mesmo “Não precisamos de falar”. Se por um lado isto pode ser entendido como uma possibilidade de comunicação mais íntima, imediata e colaborativa, repetindo a relação que tinha com o seu antigo colega, o contraste com a verbosidade de Van Bel no seu relato, a forma como sonha com a locomotiva e, depois, Elya, e toda a rede de acções que os une ao longo do livro, faz desenhar esse desequilíbrio em termos sexuais.

Seria relativamente simples querer atribuir esta responsabilidade somente a Schuiten, recordando o modo como Bilal sem Christin ou Moebius sem Jodorowsky raramente conseguiram elaborar narrativas mais interessantes do que nessas parcerias, mas estes factores estão presentes ao longo de quase todas As Cidades Obscuras… Reificação, objectificação, nostalgia, coleccionismo são por demais visíveis neste novo livro do autor belga, aliado que está igualmente a um projecto museológico e celebrador. Para pôr em vitrina.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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