11 de maio de 2012

Olympe de Gouges. Catel e Bocquet (Casterman)

A dupla Catel Muller e José-Louis Bocquet parece querer construir uma série de biografias em banda desenhada sobre algumas das mulheres que fazem a história alargada e multifacetada do feminismo, entendido como o esforço pela conquista não apenas de direitos legais, mas de respeito, cidadania cultural e social, e espaço de acção pelas mulheres na sociedade moderna ocidental. Na verdade, quer a artista quer o argumentista trabalham nesse sentido noutros títulos com esse intuito, mas  o trabalho conjunto - iniciado com Kiki de Montparnasse, dedicado a uma verdadeira salonnière do século XX, de resto, irmanada por esse aspecto à personagem deste novo livro - parece ser mais programático.
A figura deste livro, como já havíamos apontado na abordagem ao de Sfar, é a autora da Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, de 1791, decalcada a partir da carta análoga dedicada ao “homem”. Esse documento, aliás, surge na sua íntegra (preâmbulo e os dezassete artigos) no livro, primeiro como documento manuseado pelas personagens, e depois ganhando espaço autónomo no plano de composição (duas páginas), perfeitamente marchetado na matéria visual-narrativa do livro. Uma das premissas do feminismo, ou das várias vagas do feminismo, ou melhor ainda, dos feminismos, é precisamente a de multiplicarem, sucessivamente, a atenção para com as diferenças internas na luta pelo “progresso” das liberdades e direitos dos cidadãos: a primeira diferença seria a da mulher em relação ao homem - o que levaria à conquista do voto, mas apenas no século XX -, mas depois das minorias étnicas, sexuais, políticas, no interior da hegemonia das sociedades. Marie Gouze, mais conhecida pelo seu pseudónimo Olympe de Gouges, pelas suas peças teatrais e affiches, todos quase sempre com contornos polémicos, no verdadeiro sentido da palavra, dedicou a sua vida adulta a duas frentes de batalha: a da conquista dos direitos da mulher, enquanto “cidadã” da nova França republicana, e a dos homens e mulheres, sobretudo negros, que apenas existiam como mercadoria: os escravos. Não estando sozinha nessas batalhas, ainda assim é necessário compreender a raridade e coragem deste gesto no seu século XVIII.
Os autores evitam fórmulas simples de construção desta biografia, sobretudo no que diz respeito à posição, e acção, política assumida por Olympe. Não vemos nenhuma “cena primal” ou “chocante” que a tenha alertado para esta ou aquela realidade, a qual passaria a ser sua missão corrigir. Em vez de uma abordagem psicologizante, tão-somente nos é dado ver a sua educação, o quadro social em que vive, as pessoas com quem vai contactando, as circunstâncias nas quais se vai encontrado e que tanto a vão moldando como a ajudam a moldar o que pode da sua vida, assim como as discussões, descobertas e desvios que lhe são garantidos pela educação, pela leitura, pela escrita, e pelas - exploradas no livro - três vias de exposição do pensamento na esfera pública: as discussões de salão (a cena mais “famosa”, digamos assim, é um diálogo entre Condorcet e Benjamin Franklin sobre a escravatura), a escrita panfletária, mais ou menos anónima e muito respondida, e o teatro, que é outra das paixões e conquistas seguidas pela protagonista.
O livro não é de forma alguma uma abordagem pedagógica e fácil. Na verdade, a leitura dos capítulos curtos - separados por páginas de capítulo mostrando um edifício, uma morada e uma data, relativo às circunstâncias da vida de Olympe correspondentes -, que avançam rapidamente no tempo de cena em cena significativa na vida e/ou carreira intelectual e política de Olympe, é passível apenas de recompensa maior com um conhecimento (sólido, atrevemo-nos a imaginar, na nossa própria ignorância) do enquadramento cultural específico de que trata… Aliás, por esse lado, talvez a estrutura narrativa de Olympe de Gouges não seja a mais fluida e expedita, ao longo das suas quatrocentas páginas, mas esse não é argumento em relação à banda desenhada em si, mas sim em relação ao (este) leitor. Pois o modo de expressão em si permite já que se experimentem todos os graus de elipses culturais e exigência intelectual possíveis. Seja como for, uma vez que a banda desenhada (ainda?) trabalha no interior de uma economia de saberes que a torna muitas vezes factor “de introdução” a muitos temas, o volume é acompanhado de anexos tais como curtas biografias das personagens, uma cronologia e uma bibliografia.
A estratégia dos autores para ir dispensando pequeníssimas informações sobre o quotidiano, os negócios, as ruas, o ambiente e a vida intelectual torna-a num tecido contínuo - a rivalidade entre o “austero Rousseau” e o “epicurista Voltaire” (pg. 53), por exemplo, matiza a era, com Olympe nutrindo um pequeno ódio pelo autor de Candide devido às posições em relação a Jean-Jacques Lefranc, Marquês de Pompignac, que é apontado na obra como seu suposto pai (apesar de jamais o ter assumido publicamente), outra das informações que nutre a vida da protagonista. De resto, a “moderação moral” de Olympe, que a leva mesmo a tentar interceder pela vida de Luís XVI, é, toda ela, rousseauniana, levando à letra as lições da Nova Heloísa em toda a sua vida.
A focalização quase sempre segue a própria Olympe, mas há momentos em que alguma atenção é dada à perspectiva e emoções de outras personagens. Alguns capítulos são curtíssimos e/ou apresentam-se como uma colecção de pranchas singularizadas num pequeno diálogo ou evento, e apenas a sua colação fará emergir o sentido maior, nalguns casos mesmo fazendo-se uma espécie de mini-história (como no caso do nascimento e morte da bebé Julie, ou a escrita, estreia e sucesso da sua peça teatral Le Couvent, ou les vœux forcés). Todavia, como já havíamos debatido anteriormente, o aspecto axial é mesmo a importância desta figura na emergência de um pensamento contrário à situação do seu tempo no que dizia respeito às liberdades das mulheres (quase todas subsumidas às vontades ora dos pais ora dos maridos) e à questão da escravatura, que Olympe tomava a partir da sua perspectiva humanista. Este prisma é crucial. No diálogo entre Condorcet e Franklin que é aqui retratado, não será por acaso que um dos pais-fundadores dos Estados Unidos seja algo cínico quando diz que a sua luta abolicionista seja conduzida “por um ângulo económico…/ Quantos escravos houver que trabalhem sem pagamento, são cidadãos que não gastam o seu pagamento”. Isto dito em 1777, anos depois de ter liberto os seus próprios escravos. É claro que não se procura aqui um simples confronto entre duas posições ou justificações, já que a cena com Franklin se resume a duas páginas, e as relações de Olympe com esta matéria se desdobram em diálogos, relações humanas, as suas primeiras peças teatrais, etc.
De resto, esta é de facto uma questão complexíssima que não poderia ser justificada por uma biografia de uma só pessoa, mesmo que por vezes os factos da rivalidade política que ditam a sorte destas personalidades se vejam baseadas, senão subsumidas, a porfias de carácter artístico e literário. Seja como for, procura-se entender a rede maior das relações na polis, pois afinal de contas, mesmo a ideia do abolicionismo depreende uma posição de poder jurídico de quem o pode fazer, e não da vontade do ser humano escravizado - que muitas vezes não o é, mas mera mercadoria, propriedade, investimento.
Quanto à democratização do papel social da mulher - feita depois da conquista do voto para os actores e os judeus (recordando o que se disse no início, da conquista sempre a passos curtos pelo interior de diferenças)- , a escolha da frase de Olympe de Gouges, retirada da sua Declaração, na contra-capa é avisada: “A mulher nasce livre e vive, no direito, igual ao homem. A mulher tem o direito de subir ao cadafalso; ela deve ter igualmente o direito de subir à Tribuna” (artigos 1 e 10). A escolha é avisada por vários motivos, não só por ser a sua herança no pensamento feminista, democrático e humanista, mas - marcado pela presença do desenho de uma guilhotina - por ter marcado também o seu fim, no período tirânico, assassino e mesmo demente de Robespierre (que Olympe conhece e imediatamente forja antagonismos inevitáveis), surgido da apaixonante Revolução Francesa. Os últimos capítulos, na verdade, mostram muitos dos paradoxos e resvalamentos advindos desse processo, dos factos políticos até ao uso da própria língua. As tricas e as alianças particularistas que levavam a sucessivas atomizações dos “partidos” e “clubes” (Olympe era Girondina) minaram o bom porto da Revolução e ditaram, em parte, a sorte desta mulher, que se oferecia a escaramuças polemistas sem pejo. Algures no livro, Olympe sabe que é vista como “uma agitadora intempestiva e deslocada”. Infelizmente, nalguns círculos actuais, ainda hoje seria vista assim. Mas mesmo quando o perigo assume cada vez mais um aspecto seguro, e um amigo lhe diz que o seu “estatuto de mulher não [a] protegerá ad vitam aeternam”, ela responde, imediata, segura, e enclausurando - precisamente pelo perigo que essas palavras acarretam - a sua lição: “Então isso significará que finalmente me entendem e as minhas palavras fazem esquecer o meu sexo!”.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

5 comentários:

topedro disse...

onde está "...tentar interceder pela vida de Luís XIV" não seria Luís XVI?

Pedro Moura disse...

Claro que sim, gralha inadmissível (mas gralha, pois está mais do que repetido no livro e na lição de História). No entanto, não seria mal que mais cabeças de reis rolassem...
Abraços e obrigado,
Pedro

gambuzina disse...

eu sempre soube que näo eras täo culto quanto o teu vocabulário é extenso
desculpa se te faz mossa, mas adoro !!!!
nunca te perdoei as insinuacöes às minhas supostas más traducöes quando há aí gente a escrever em pseudo alemäo, e nem tu nem outr@s euruditas da bd topam
eu é que näo deixo passar, e espero pelo momento certo
näo engulo injusticas

Pedro Moura disse...

Não percebo muito bem a razão do teu regozijo, mas faz favor. Não me lembro de ter alguma vez ter feito alarde e presunção de ter mais cultura ou mais ignorância do que a parte de cada que me cabe, não deixando de exercer o que posso da primeira nem escondendo a segunda. Não me recordo também de ter acusar de má tradução, pois não tenho alemão para isso; terei feito um comentário sobre gralhas, erros ortográficos, mas não tornando isso impeditivo de apreciar o teu trabalho artístico e editorial. Penso que isso não de modo algum ofensivo, se formos todos adultos, o que penso que sim. E gralhas, todos as fazemos.
Estás à vontade para fazeres vitórias do que quiseres.
Até breve,
Pedro

topedro disse...

percebi que era gralha mas não acho bem fazer rolar cabeças de reis com métodos tão drásticos como a disgrafia, para mais quando a gangrena já tinha resolvido o assunto...
abraço