2 de maio de 2013

Les Jumeaux. Jung-Hyoun Lee (Frémok)

Quantas vezes o adjectivo “poético” é empregue em relação à banda desenhada, procurando antes sublinhar aspectos que têm a ver com representações normalizadas das emoções ou uma qualquer espécie de vagueza mole, ao invés duma mais forte moldagem de todos os elementos que podem constituir a textualidade - entendida quer enquanto estrutura, materialidade e recepção - de uma dada obra? Se tomarmos esta segunda via, encontraremos a poesia em banda desenhada em objectos disjuntivos, não naqueles que dão continuidade às expectativas sociais desta arte. E reforça-se, não se domestica, aquela palavra.
Este livro, publicado por aquela editora que, discutivelmente, tem construído o mais consequente edifício daquilo a que chamámos “a banda desenhada por vir”, reúne toda uma série de trabalhos da autora sul-coreana, do qual já havíamos dado conta, em forma de nota, a propósito de um “episódio” publicado na Glomp 9. Desde logo, este vocabulário (“episódio”) ajudará a querer compreender este livro no interior de categorias familiares. Por um lado, poderá parecer que quereremos subsumir todo o livro a uma apresentação mimética, naturalizada, o que implicaria quase necessariamente uma perda da sua dimensão poética, tudo aquilo que deve permanecer no limiar da familiaridade e, por isso, mantendo a sua quota-parte de permanente mistério. Por outro, talvez possamos acreditar que mesmo tentando uma  explicação aparentemente naturalizante, apenas estamos a identificar elementos específicos que nos permitem avançar numa possível análise, mas jamais a esgotará; mais, tornando-a possível (mesmo que num início somente), lançam-nos precisamente num movimento (quem sabe se perpétuo).
Estas ideias devem ser entendidas num quadro influenciado por aquele espaço de negociação teórica que é criado por algumas correntes contemporâneas da narratologia, proponentes de uma teoria “natural”, de Monika Fludernik, e de outra “inatural”, de Brian Richardson, Jan Albers et al. (e as quais não criam uma dicotomia simples de opostos, mas sim tratamentos diferentes dos textos abordados; falámos desta segunda a propósito de Daytripper). Segundo Fludernik, proponente de uma narratologia natural, “a narratividade…é principalmente baseada num factor de consciência, [mais] do que nas dinâmicas actanciais ou em direcções teleológicas. A teleologia e a dinâmica, em muitos textos experimentais, são constituídos não num nível de intriga [segundo o termo de P. Ricoeur] (com a sua ênfase no suspense) mas no nível interpretativo no qual o leitor impõe uma estética genérica em dados textos recalcitrantes” (Towards a ‘Natural’ Narratology, p. 30; nossos sublinhados). Ou seja, ao considerarmos Les jumeaux enquanto um texto experimental de banda desenhada, e não encontrando nele uma clara e resoluta dinâmica entre as personagens ou uma teleologia simples, é graças à nossa própria capacidade cognitiva, à experiência viva, que acabamos por impor descritivos estéticos que as aproximam de uma maior legibilidade.
Quando somos confrontados com objectos desta natureza, uma apressada consideração levaria a pensar que não haveria qualquer tipo de estrutura, digamos, recuperável, pelo menos num seu sentido verbalizável e analisável. O livro encontra-se, porém, dividido numa série de pequenos capítulos ou episódios, cada qual com o seu título e que se relacionam entre si de modos diversos, para além das guardas (uma densa textura de linhas em grafite cruzadas) e de desenhos paratextuais, com elementos narrativos suficientes. Ei-los: uma primeira parte intitula-se “Morte”, uma segunda, propriamente introduzida como “Os gémeos”, é subdividida em “A casa dos gémeos (a chegada)”, “O gémeo (a saída da cozinha com o corpo)” e “A gémea (o encontro com o peixe)”.
Os dois corpos principais são o de duas personagens, aparentemente andróginas, mas que se inclinariam mais para o sexo feminino. Os seus cabelos lisos, negros e compridíssimos remetem para as representações clássicas dos fantasmas na Coreia (e também no Japão e China, como é conhecido de toda uma série de filmes contemporâneos de terror; não cortando os cabelos, as mulheres tinham-nos longuíssimos, e na morte não usavam nenhum penteado, mas sim soltavam-no), logo a dimensão macabra está desde logo presente. No entanto, quer através de leves indícios nalguns dos retratos dos rostos mais pormenorizados quer por outras estratégias de representação mais óbvios, distinguimos que se tratam de dois gémeos falsos. Existem ainda outras personagens, masculinas, de cabelo rapado ou extremamente curto, mas cujos parentescos não são de forma alguma nítidos ou identificáveis. Em “Morte”, atravessamos os vários cantos de uma casa, atravessada pelas/pelos gémeas/gémeos, como se se tratasse de um ritual de ocupação, e que levará a uma hecatombe de todas as personagens.
Na “história” principal, uma primeira fase de introdução, composta por vinhetas isoladas (duas por página), mostra-nos um homem a chegar a um local de autocarro e a descobrir, perto da sua paragem, um baloiço abandonado (e aparentemente suspenso no vazio). Seguem-se os capítulos divididos pelas duas personagens principais, o primeiro mostrando o gémeo - mas esta decisão pelo sexo é apenas por seguir a palavra -  no interior da casa, com vinhetas marchetadas que aparentemente mostram alguém a carregar um corpo, e, sob um baloiço suspenso, a desaparecerem num tanque de água (imaginamos nós); o segundo, mostrando a gémea no exterior da casa apanhando galhos, e ao mesmo tempo revendo (?) a cena da captura do corpo pela personagem que havia chegado no primeiro trecho, e depois a prostrar-se no chão, mas possivelmente ou intermitentemente sobre uma baleia subterrânea. À beira da casa, um abismo circular na terra serve de leito a um dos gémeos…
Serão estes descritivos suficientes ou redutores? Iluminadores ou confrangedores? Em que medida ajudam a fruir da dimensão poética, que apenas na leitura total dos seus elementos pode funcionar? Que dirigem estas palavras no que diz respeito à possível interpretação da obra?
Questões de desvio parecem-nos centrais. Cria-se uma ideia de que haverá sempre um sentido qualquer que está ausente, refractado, desviado. Não apenas pela questão de gémeos de sexos diferentes, que desde logo cria uma ambivalente equação de identidade e alteridade, proximidade e distância, presença e ausência, mas por toda uma série de objectos que poderão levar à ideia de um espectro reflexivo: o vai e vem do baloiço, a superfície das águas, o espelho, o espaço doméstico versus o espaço exterior, a imobilidade dos corpos e a dimensão de movimento e viagem do autocarro e do baloiço, as vinhetas menores, em planos aproximados, marchetadas em maiores, de planos mais alargados (recordando estratégias muito variadas em que se obriga o espectador e compreender que as imagens veladas exercem um poder maior sobre as visíveis do que estas explicam as ocultas, de que  Baldessari foi expoente máximo, e que na banda desenhada conhecem vários usos narrativos, de Richard McGuire a Schuiten). Uma ambivalência ou um paradoxo que está desde logo presente na ideia de morte, ou no seu (barroco) pensamento durante a vida. Numa palavra, Lee cria aqui uma poderosa alegoria.
Em Origem do Drama Trágico Alemão, Walter Benjamin distingue o símbolo da alegoria através da categoria do tempo, ou da relação daqueles com este, escrevendo: “na alegoria o observador tem diante de si a facies hippocratica da história como paisagem primordial petrificada. A história, com tudo aquilo que desde o início tem em si de extemporâneo [ou “intempestivo”, Unzeitiges], de sofrimento e de malogro, ganha expressão na imagem de um rosto - melhor, de uma caveira” (trad. J. Barrento, pg. 180). As traduções em inglês traduzem aquele último termo por “death’s head”, sublinhando a que realidade se agrega. Recordemos ainda que o mesmo filósofo fala da caveira como espaço onde se opõem a sua “inexpressividade absoluta” dos olhos vazios e a “mais selvagem das expressões” do seu ricto (“Artigos de retroseiro”). A caveira é aquilo que obriga a um olhar para trás, para uma origem perdida (como o do Anjo da História), através da ruína que ela mesma é. A alegoria obriga, portanto, a um olhar histórico, ao contrário do símbolo, que se pretenderia sempiterno, idealizado, redentor, e desligado dos mecanismos da existência humana e do mundo
Se os rostos desenhados por Jung não são propriamente os da morte ou de mortos - as personagens agem, mesmo que essas acções sejam impenetráveis à compreensão -, elas estão imbuídas de um sentido mortal inelutável, de uma inexpressividade, corroborada pela textura permitida pelos lápis, que lhes dão o ar de pedra, de baixo-relevo, de esfinge. Se figurativamente, as figuras esquálidas, quando desenhadas em pormenor, revelando anatomias, texturas, músculos e tecidos da pele, recordam Egon Schiele, e quando mais longínquas se formam a partir de estratégias mais estilizadas e simples, quase de ilustração infantil, o uso da grafite pela autora irmana-a a uma comunidade artística contemporânea alargada mesmo no interior da banda desenhada, com Chihoi, Vähämäki, Manouach ou outros. De novo, regressando à mesma ideia central: a grafite enquanto (agora, aqui) símbolo de mortandade (cinzas) texturada onde pulsa a vida.
A história, aqui, será aquela circunscrita pelos factores de produção, de uma banda desenhada própria ao século XXI, finalmente mais próxima das tendências ou linguagens suas contemporâneas de outras áreas criativas, cada vez mais unidas por preocupações poiéticas (um fazer) do que temáticas ou de representação. E é pela aparente leitura negativa dos elementos narrativos - o não ter uma história, não ter um fito, não ter uma unidade espácio-temporal (precisamente aqueles aspectos que Fludernik e Richardson acham que devem ser lidos positivamente, inaugurando uma narratologia mais abrangente e atenta aos experimentalismos quer históricos quer pós-modernos) -, é pela sua aparente inexpressividade, que a petrificada facies hippocratica surge: uma espécie de doença que corrói, morde, fustiga, enfim, molda o rosto com os instrumentos intempestivos.
Mas alegoria de quê, então? Ao serem suspensas as necessárias redes de referências e ligações diegéticas que se esperariam quer da parte de um enquadramento narrativo realista quer de um qualquer género particular (que lançaria expectativas específicas), os rituais e movimentos de dança entre estes corpos e rostos criam uma noção aberta de relações e reflexos. Cria-se uma fenda, uma fractura de significados, no qual caberá ao leitor e espectador o esforço de sutura, angariando toda a matéria visual e textual (no seu sentido de relacionamento entre as imagens, as estruturas episódicas, espaciais, etc.) para as converter em algo reconhecível e depois (re)integrar num processo histórico. Mas não um julgamento. Aquele esforço, claro está, poderá não satisfazer de forma alguma a familiaridade, mas antes alimentar sempre a irredutível ambivalência, a inanalisabilidade que surge na estranheza de enfrentarmos gémeos falsos: corpos tão distintos e unidos por um fundo comum mas inidentificável nos seus traços presentes. E os quais possuem em si uma conflituosidade interna, uma relação a um só tempo de identificação e de rivalidade e oposição, a um só tempo de distinção absoluta e de confusão. Os gémeos, portanto, sendo cada um deles identificável com um dos sexos clássicos, e corroborados pelos “acontecimentos” e objectos do seu mundo diegético, jogam todo um conjunto de oposições ou binómios metafísicos, desde homem/mulher, exterior/interior, bom/mau, natural/artificial, a outros níveis como familiar/estranho, heimlich/unheimlich, ser/não-ser, vida/morte. E nunca necessariamente com os primeiros termos correspondendo aos segundos, mas criando um espaço de indeterminação, negociação ou correspondências móveis (cujos espaços de penetração são representados pelas vinhetas que surgem encaixadas, por dentro, sobrepostas, cada uma dessas palavras dando conta de uma perspectiva diferente do trabalho visual existente). Ou seja, ao mesmo tempo instituem os traços visíveis dessas dicotomias e negam-nos. E é aí que reside o não-julgamento do leitor: há um esforço em identificar tudo isto, mas não concluir nem fechar. Se o movimento tiver início, também tê-lo-á a poesia que ele encerra.

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