24 de maio de 2013

Rugas. Paco Roca (Contraponto)

Não sendo um livro propriamente extraordinário, a todos os níveis, Rugas é um contributo decisivo, sobretudo no panorama editorial português actual, para a crescente diversidade de oferta de banda desenhada no que diz respeito a géneros, temas, e humores, fazendo-a desprender-se cada vez mais de preconceitos e generalizações que ainda a enclausuram numa ideia totalizante. (Mais) 

Rugas elege como personagens principais um grupo de velhos (eufemismos como “séniores”, “anciãos” e “idosos” parecem querer fazer uma batota nas palavras e não na forma da percepção social e nas acções efectivas, um pouco como “invisuais” em vez de “cegos”) que vive num lar. O protagonista, Emílio, sofre os primeiros sintomas de Alzheimer, doença neurológica a qual, como se sabe, mina os fundamentos da memória humana e, por isso, a própria personalidade e redes de relacionamento histórico das pessoas com aqueles que os rodeiam. Dessa forma, podemos ver como este livro se inscreve, ao mesmo tempo, numa série de livros que têm doenças como ponto central e definidor das suas personagens ou história (The Spiral Cage, Cancer Vixen, Stitches, Comprimidos Azuis, etc.) e outros que colocam a memória humana como a metáfora matriz da sobrevivência humana.

De facto, se a memória - no seu mais básico sentido neurológico - é um dos pontos basilares da constituição da identidade, não será de todo difícil compreender a noção que o modo da sua construção ditará a da própria pessoa. O género da biografia, e sobretudo se contada na primeira pessoa (ficcional ou autobiográfica, ou todos os territórios pelo meio) não é alheio a que a memória seja o seu caminho principal. De Santo Agostinho a Rousseau e Proust, encontraremos monumentos a esse trajecto. A crise da memória não é tampouco inédita nesse edifício literário, e encontraremos em “Funes, o Memorioso”, de Jorge Luís Borges, A misteriosa chama da Rainha Loana, de Umberto Eco, Remainder, de Tom McCarthy, a literatura psicanalítica de Freud a Alexander Luria a Sacks, idênticos portentos. O projecto de Paco Roca, graças aos elementos paratextuais apresentados, permite-nos compreender que ele coligiu elementos provindos da sua experiência pessoal, da relação com os seus pais, de testemunhos de outras pessoas, para criar uma ficção, ou semi-ficção se preferirem, que institui um texto no centro dessa pesquisa: a memória enquanto viagem, a memória enquanto tessitura que se pode desfazer, em que medida a pessoa se perde com ela perdida…

A capa [desdobrável], após a leitura, coalesce na ideia de uma viagem conjunta entre todas as personagens do livro, os “colegas” do lar, e até poderá criar uma ideia de alguma felicidade entre eles. Mas nem a viagem é feita em conjunto (tirando uma situação final, de solidariedade entre Antónia e Rosário), nem há verdadeira felicidade ali. E as fotos que se desprendem do crânio de Emílio (uma imagem que recorda o trabalho de Edmond Baudoin, sem atingir os mesmos contornos poéticos) apontam para o cerne da questão: não só elas passam, como se se folheasse o proverbial álbum das memórias, mas também se desfolham, se perdem. Roca emprega algumas técnicas de composição, figuração e cor para dar conta dessas perdas, estas repentinas, aquelas graduais – sobretudo tirando partido do fundo branco, por inscrever, das folhas das pranchas – mas não podemos dizer que há aqui propriamente uma grande sofisticação, formal ou conceptual, nos resultados obtidos. São técnicas já usuais, que funcionam, mas não revelam uma pesquisa particularmente profunda.

Um dos obstáculos à excelência deste título é a forma como se isola Emílio e os seus companheiros do lar do resto do mundo. Apesar do acesso que temos às memórias pessoais das personagens, as suas reminiscências mais ou menos afastadas (no caso de Emílio, o seu trabalho no banco, o primeiro dia na escola, etc.), nada ficamos a saber profundamente da relação de Emílio com o filho. Este último, aliás, pelo tratamento inicial, fica reduzido simplesmente a um homem sem qualquer tipo de paciência ou sensibilidade ao sofrimento do pai, e parece querer “despachá-lo”. Enfim, parece aquilo que recebe o termo técnico de “besta-quadrada”. No entanto, isso parece-nos ligar-se àquela ideia muito generalizada e delicodoce de que todos os velhos são ou devem merecer algo do nosso respeito imediato e cego. Mas que sabemos nós da vida que foi construída em conjunto? Foi Emílio um bom pai? Atencioso, que ajudou o filho a ganhar confiança e amor-próprio? Terá sido um bom marido? Guardará o filho boa memória do pai? Ou bem pelo contrário, poderá ter sofrido sob o seu domínio, e encontra agora uma crise, que não deixando de ser terrível, finalmente lhe permite cortar as amarras a esses problemas do passado? Na ausência de uma verdadeira backstory, a construção e retórica de Roca em relação ao filho torna-o uma personagem breve, esvaziada, de uma nota só, que apenas contribui para a unilateral protecção de Emílio, enquanto vítima, abandonado e merecedor da simpatia do leitor. Isso torna a história em si, desde logo, muito pouco dimensionada. Isto ocorre também em relação a outras personagens, como o neto de Antónia ou a okupa do andar de cima.

Além disso, a exploração que se faz da vida dos velhos no lar parece por vezes querer fazer duas coisas ao mesmo tempo: por um lado, criar situações de um humor mais ou menos previsível, com todos aqueles clichés – os velhos surdos e a repetição a que obrigam, o rebarbado, as típicas confusões, os prazeres por coisas insignificantes (para nós) – e, por outro, negá-lo, demonstrando o sofrimento que isso significa, as reacções dos outros “corrigindo”, etc. Mais uma vez, uma construção unilateral. O autor não consegue construir um discurso textual que permita um maior grau de relação directa com estas personagens, elas ficam sempre a alguma distância, o bem-comportado “respeitinho”, e não uma mais profunda compreensão. O episódio da fuga de carro parece-nos, pura e simplesmente, tolo e totalmente fora mesmo das expectativas criadas (o argumento de que se baseia “num facto real”, por hipótese, só faria compreender o abismo que existe entre o caos aleatório da vida e a retórica necessária na criação de uma obra artística).

Admitamos que um dos propósitos de Roca é abrir um espaço de acesso às experiências destas personagens, e construir um mundo exclusivo. Daí que se compreenda que a gestão da diegese se faça espraiar não somente com Emílio (ainda assim a personagem principal em termos de presença, focalização, organização dos acontecimentos) mas com outras personagens igualmente. Acima de tudo, é a recusa de criar uma tessitura atreita somente à realidade consensual e normalizada dos sadios, e dar corpo, imagem, presença na faixa visual às percepções internas dessas personagens. Mesmo que as leiamos como ilusões, enganos, distracções, distorções, memórias fora do seu eixo normal de relacionamento cognitivo, temos também acesso a elas e, logo, isso permite-nos que tenhamos algum grau de empatia e compreensão. Sabemos que a Dona Rosário não se encontra na sua romântica viagem de comboio, sabemos que o período da Guerra Civil já passou, sabemos que não existem marcianos, sabemos que já não existem dias de trabalho à espera de Emílio, mas a forma do autor colocar isso em dúvida para benefício das personagens é mostrá-lo como matéria idêntica ao resto. É claro que cada uma dessas “visões” têm moralidades diferentes, e se algumas provocam angústia, outras, sobretudo as memórias da infância entre Dolores e Modesto, servem para mostrar que elas também podem ser refúgio.

É algo difícil evitar uma chamada comparativa, mesmo que superficial, ao livro de Antonio Altarriba com Kim, El arte de volar. O projecto de Roca apenas extratextualmente permitirá obter informações biográficas para compreender que o que o moveu à criação do livro foi a sua relação com os pais, mas isso não é tão premente ou explícito como naquele outro título. Para mais, El arte de volar complicava duas memórias, ou uma memória intergeracional, à la Maus, para se associar à memória histórica da Guerra Civil, ao passo que a escala de Rugas é mais circunscrita e familiar. No entanto, ambas perscrutam (o de Altarriba e Kim apenas como ponto paradoxal de partida e chegada) o significado do término da vida de um velho num lar. O medo de Emílio e Miguel do último andar, no qual se reúnem aqueles que precisam de uma mais continuada ajuda aos mais pequenos gestos diários é temido, mas recordemo-nos de que é daí mesmo que o pai de Altarriba encontra a liberdade através do suicídio. Um confronto directo entre essas duas opções mostrará que o suicídio, ou o “entusiasmo absurdo pela libertação”, como escreve Jean Améry, encontra em Rugas um caminho mais delicado, suave, e de resolução positiva pelas emoções. Afinal, estamos aqui num território de maior ternura, do “lado bom da vida”, e não propriamente num cru, indómito e libertário pensamento, como no caso do livro de Altarriba. Não queremos dizer que o suicídio é natural e necessariamente uma “saída heróica” sempre, e a verdade é que Rugas não tem um final “feliz” (apenas um final de um humor a meio-gás), mas a profundidade das emoções e o impacto intelectual neste livro, por comparação, é algo ténue.

Um outro aspecto, que tem sido esgrimido no louvor a Rugas, é o facto de ter velhos como protagonistas (e não somente personagens secundárias, co-adjuvantes mentores, etc.), no sentido em que, no meio da banda desenhada, ao contrário de outros, mais latos nos seus contornos e dados à diversidade, isso seria raro. Não deixando de ser verdade num cômputo generalizado, ou pelo menos naquela linha imediata dos títulos mais famosos e comercialmente expostos, já a propósito do excelente Une plume pour Clovis, de Gébé, havíamos trazido a lume duas ou três ideias que poderiam ser chamadas de novo com este livro [até mesmo no que diz respeito às representações e articulações da memória]. Seria preciso olhar para a história da banda desenhada, e da cultura popular em geral (inclusive a literatura, de Sherlock Holmes a James Bond), para vermos que a tendência da “juvenilização” é geral às artes, se bem que na banda desenhada tenha tido uma franca centralidade. No entanto, uma leitura paralela entre os livros de Roca e de Gébé demonstrariam como o primeiro deixa-se preso, de certa forma, a ideias pré-concebidas da velhice, digamos “de fora”, sem se dar à lavra da criação de uma personagem, que é o que ocorre, mesmo que magicamente, em Gébé.

O livro, tendo sido premiado por quem de direito, e com prestígio, em Espanha, foi também alvo logo em 2011 de uma versão de cinema de animação, pelas mãos de Ignacio Ferreras, e que por sinal terá distribuição em breve por Portugal. As pequenas diferenças entre as versões não vêm trazer, a nosso ver, nenhuma dimensão crítica particular, e mesmo em termos de animação não estamos perante uma obra maior.

Tal como acontecera com El invierno del dibujante, Roca é detentor de um estilo legível e claro, sem fazer alarde da sua linguagem. Quer dizer, não procura qualquer grau de opacidade metalinguística, mas antes pelo contrário uma clareza de auto-apagamento do gesto que o institui, para que haja um (ilusório, mas necessário para a fluidez da ficção) acesso directo à diegese e às emoções que ela pretende despertar nos seus leitores. O autor tira partido das escalas cromáticas quer para dar conta de alterações de ambiente ou hora (cenas nocturnas) quer para as “visões internas” de certas personagens (a viagem pelo Expresso do Oriente de Rosário, o “regresso à escola” de Emílio), mas são técnicas relativamente convencionais e tranquilas.

Dito isto, on boucle la boucle para salientar que, não estando perante uma obra do calibre de Fun Home, de Arte de Volar, ou de The Spiral Cage, Rugas irmana-se a elas nas suas várias facetas e, acima de tudo, é um texto enxuto, adulto e alarga a pertinência da banda desenhada enquanto discurso apto à plenitude da existência humana.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

1 comentário:

Filipe LF disse...

Excelente reflexão.