9 de fevereiro de 2014

Dois livros. André Diniz (Desiderata)

A capacidade de produção de André Diniz – assim como a sua possibilidade de edição – não podem deixar de ser fruto de admiração. Em vários domínios, de álbuns infanto-juvenis ilustrados, com mais ou menos propósitos pedagógicos ou de entretenimento, de livros de banda desenhada com temáticas ficcionadas ou exploratórias de um qualquer grau do real histórico do Brasil, em colaborações diversas ou na pesquisa própria do seu trabalho visual, Diniz procura diversificar os seus gestos criativos. Os dois livros que nos trazem ao presente texto são tão diversos entre si como comungam de um tema comum, ou assim nos parece.

Trabalhos a solo, ambos coloridos, com um mesmo formato, Homem de Neandertal e Z de Zelito parecem apenas ter essas características superficiais comuns, uma vez que o primeiro se trata de uma novela mais ou menos concentrada num pequeno grupo de personagens (uma tribo de Neandartais e os breves cruzamentos com outra tribo de Homo Sapiens) e a segunda, ancorada na história do Brasil moderno, espraia-se num retrato social mais complexo. O primeiro é “mudo”, e o segundo usa de basto diálogo e narração. O primeiro parte de uma matéria de grande especulação – a origem da arte, as relações entre as duas espécies de humanóide -, e a segunda tem uma forte inscrição na história.  (Mais) 
Contudo, pensamos que é possível entendê-los como sendo o “mesmo” livro ou, pelo menos, como que partilhando uma temática fortissimamente comum: a da procura do acto artístico. No primeiro caso, temos um Neandertal aparentemente pouco dotado para as necessidades imediatas da sobrevivência do seu grupo (a caça), mas particularmente sensível à possibilidade de fazer marcas gráficas com algum propósito de expressividade e até de poeticidade. A sua exposição às marcas feitas pelos Homo Sapiens com que se cruza, e que após um período de resistência quase o “adoptam” como aprendiz, transforma totalmente a sua visão do mundo e até, quem sabe, a sua natureza interior. No segundo caso, o Zelito do título parte da sua cidade de Fortaleza para tentar a sorte enquanto ilustrador na capital, nos jornais, mesmo que isso seja um sonho que o opõe à vontade do pai em que ele siga uma vida mais normalizada e social e economicamente mais segura.

Curiosamente, nenhuma das personagens é particularmente dotada para esse seu sonho, nem sequer chegam a conquistar o papel que sonha vir a ter - o de artista, desenhador de cavernas num caso, ilustrador de jornais no outro. Ambos os livros são sobre perspectivas goradas, ilusões perdidas, sobre um objectivo que não se alcança, não somente pelos obstáculos externos – as condições sociais (ou, no caso do Neandertal, biológicos mesmo?), a vontade dos outros – mas pelas barreiras criadas no interior de cada um. É como se André Diniz quisesse demonstrar que apesar das conquistas a nível artístico têm se seguir um caminho de rigor e ética do trabalho, do esforço e da dedicação diária, há ainda assim um qualquer ingrediente mais místico, intrínseco ao indivíduo, que pode ou não ter o nome de “talento”, mas sem o qual os esforços, por mais hercúleos que sejam, ou a vontade, por mais expressas que elas sejam, não são pasto suficiente para que medre e resulte na satisfação do sonho.

Além do mais, as matérias artísticas em causa – pintura parietal pré-histórica, ilustração de imprensa – poderão tornar ambos os livros numa mais ou menos velada reflexão sobre a actividade que está em causa no próprio acto de criação da banda desenhada, ou até o campo ontológico e a historicização desse campo (como o prefácio de Paulo Ramos, num dos livros, aponta).

Está hoje em causa a ideia de que terão sido apenas os seres humanos (Homo Sapiens) a criar arte, uma vez que dados arqueológicos, e novos métodos, e mesmo processos culturais de interpretação da antropologia e paleontologia, apontam para a possibilidade de que o Neandertal terá dedicado parte do seu tempo à fabricação de objectos que não de uma imediata necessidade de sobrevivência, e evidenciando, tal como noutros comportamentos, um qualquer vislumbre de uma ideia de futuro, de longo prazo, quem sabe mesmo de vida fora do âmbito a mortalidade. Em Homem de Neandertal, André Diniz coloca parte da “descoberta” na influência directa do Sapiens sobre o Neanderthal, mas o livro foca sobretudo os mecanismos interiores dessa personagem mais “selvagem” à medida que o seu contacto e actos de arte a alteram. A inexistência de qualquer tipo de texto verbal leva a que o leitor se concentre particularmente nesses mesmos gestos, conflitos e descobertas, todos veiculados visualmente de um modo claríssimo.

Quanto ao segundo livro, a narrativa é mais pormenorizada. Nascido na Fortaleza, Zelito tenta a sua sorte na cidade do Rio, num momento de “combustão” política. A República encontrava-se a braços com uma tremenda crise de saúde pública na capital, em que as medidas draconianas de vacinações obrigatórias de Oswaldo Cruz contra a febre-amarela levariam a distúrbios públicos muito graves. Associadas que estavam com campanhas de saneamento, despejos, expropriações, demolições de “cortiços”, reurbanização, mas logo depois também com leis abusivas contra direitos civis (proibição de casamento caso não tivesse o boletim de vacinas em dia, por exemplo), e depois envolvido numa tentativa de golpe de Estado militar, os diversos factores contribuiriam e convergiriam nessa situação explosiva. Este acontecimento de 1904 é conhecido como a Revolta da Vacina, misto de ignorância do povo, incapacidade do governo em comunicar a necessidade dos gestos, prepotência do poder político, e ganância de outras esferas. E é o pano de fundo histórico e real que serve para a viagem pessoal de Zelito, cujo progresso de aprendizagem é, na verdade, negativo, como aventámos acima.

As mais das vezes, os autores optam por estruturas narrativas relativamente clássicas, ou até por fórmulas, de maneira a garantirem o sucesso da suas histórias. Não é que André Diniz abdique de uma estrutura expectável (linearidade, causalidade, etc.), mas em termos de construção de personagens, as escolhas do autor em ambos os livros remam contra a maré. No caso do neandartal, estamos desde logo perante uma personagem que mostra ser inepto para as funções que deveria cumprir. O retrato daquela civilização pré-histórico é brutal e cruel (aos olhos do homem moderno), mas apesar disso, e mesmo na óptica da projecção de simpatia que um leitor possa ter hoje pelo “artista”, o protagonista surge como alguém de fraco, patético e o seu destino não é surpreendente.

Zelito não é uma personagem simpática, sequer. Não é sequer uma questão de ser tratado como ser humano com as suas imperfeições, o que é uma estratégia relativamente habitual. É mesmo por revelar traços de personalidade negativos: é mesquinho, interesseiro, nada humilde, descambando mesmo no total desrespeito pelos outros, sejam a namorada, o pai, os seus colegas de trabalho, e declinando no crime final, para o qual não pode haver qualquer justificação. Mas apesar dessa construção de “falhado” – isto é, não é a construção de Diniz que é “falhada”, bem pelo contrário, ela é admirável para que estes personagens surjam como “falhados”, “frustrados”, “desarmados” -, as narrativas em si são admiráveis no que diz respeito à simplicidade com que erguem de imediato os seus respectivos contextos culturais, implicações sociais, e redes de relação interpessoal.

Em ambos os casos, Diniz opta por uma abordagem ultra-estilizada, que já lhe é reconhecida, com toda aquela série de “excrescências” gráficas que, sendo os elementos tipicamente simbólicos para representar movimento ou emoções das personagens, pelas afinidades geométricas que têm com outros elementos do seu entorno, tornam as construções do autor particularmente paradoxais, no sentido em que têm tanto de dinâmico como de icónico. Isso oferece às imagens uma natureza muito própria, que pode sem dúvida ser associada (como quis um leitor atento dos livros anteriores de Diniz, neste mesmo espaço) a certas culturas gráficas populares brasileiras, como as xilogravuras da literatura de cordel, por exemplo. Dessa forma, é como se fosse um bom veículo para abordar precisamente assuntos que são de uma extrema pertinência para com a realidade histórica, mas também contemporânea, brasileira. No que diz respeito à ressonância com os dias de hoje, decerto que não será inocente o tratamento e representação que o autor opta por seguir para falar da Revolta, mostrando mesmo numa cena um eléctrico virado e ardendo nas ruas, como se pudesse servir de imagem especular e histórica dos “mesmos” sentimentos e acções em São Paulo a propósito do aumento dos transportes (outro factor que apenas serviu da proverbial gota de água para toda uma série de descontentamentos).

No entanto, em grande diferenciação com Morro da Favela, Diniz não apresenta as suas imagens num preto-e-branco de alto contraste, mas sim com as cores digitais, suaves e matizadas de Marcela Mannheimer. Não há qualquer procura por efeitos naturalistas, mas bem pelo contrário, uma pesquisa por tons e jogos complementares que respeitam, em primeiro lugar, as próprias figuras, elevando-as a cifras de alta legibilidade, mas também uma possibilidade de criar nódulos simbólicos em cada “parte” das histórias respectivas. A paleta é relativamente mais reduzida em Neandertal, o que não deixa de ser expectável pela sua integração num ambiente natural, numa narrativa contida, e associada às condições básicas e primitivas da vida dos seres humanos, em contraste com a novela de Zelito, que implica deslocamentos significativos de paragens geográficas, contrastes entre as zonas do Rio de Janeiro e os brutalmente diversos humores pelos quais o protagonista atravessa.

A “biblioteca” de Diniz é já vasta, mas, pelo menos com estes dois volumes, ela é humanamente diversa também.

Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta dos seus livros. 

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