19 de março de 2015

Š! no. 20 (kuš!)

O último número da excelente antologia de banda desenhada da Látvia é composto exclusivamente por autores portugueses. Tratando-se de um trabalho editorial aturado, feito pela equipa da kuš a partir de uma percepção muito orientada para o tipo de banda desenhada que procuram, e a que se poderia acrescentar o nome de “artística”, “alternativa”, “experimental”, “contemporânea”, etc., e contando com o apoio do editor da Chili Com Carne, Marcos Farrajota, e alguns dos autores que já conheciam e haviam publicado (Amada Baeza), o “retrato” que emerge deste pequeno volume é uma faceta coerente, particularmente estimulante em termos visuais e interpelante no que diz respeito às dimensões poéticas desta disciplina. (Mais)

Diferentemente do propósito de uma antologia-colectânea como Quadradinhos, em que se intentava uma visão sobre uma produção mais lata da banda desenhada moderna portuguesa pela perspectiva de um editor estrangeiro, ou de Crumbs, a partir de uma vontade de criar histórias narrativas claras e que tomem o pulso de uma certa produção, Š! pauta-se por um tema muito específico, que a um só tempo se alia a uma especificidade cultural portuguesa e permite, ao mesmo tempo, toda a possibilidade de abertura criativa.

Se bem que não acreditemos de forma alguma no determinismo linguístico, que leva a falar da “intraduzibilidade” de certas palavras ou apelar a uma espécie de exclusividade de sentimentos, a verdade é que a palavra “desassossego” é uma das mais belas palavras portuguesas. Pela sua eufonia, as suas sibilantes seguidas, até a sua calma negatividade, e, acima de tudo, pelo facto de estar associada indelevelmente a uma das maiores obras - ou mesmo a maior - da literatura portuguesa do século XX, O livro do desassossego, atribuível a um par de heterónimos de Fernando Pessoa, conforme o investigador (quanto a nós, seguimos os argumentos convincentes daqueles que apontam o semi-heterónimo Bernardo Soares). É esse precisamente o ponto de partida no convite estendido aos autores que aqui se encontram. A existência do livro, imaginamos, servirá de porta de entrada para os editores, mas é apenas a palavra que foi entregue aos autores como cerne daquilo a que deveriam responder.

Ainda assim, alguns autores procuraram uma associação directa ou indirecta à obra de Pessoa. Foi o caso de Rafael Gouveia, que trabalhando sobre citações textuais do livro de Bernardo Soares, coloca-nos à frente uma sequência de quadros não-narrativos, com as suas costumeiras paisagens urbanas desabitadas e personagens de perfil ou de frente. Também Francisco Sousa Lobo, sem que abdique do seu longo projecto autobio-ficcio-gráfico, procura entrosá-lo numa pequena ficção sobre um hipotético pseudo-heterónimo de Pessoa que se tenha dedicado a uma banda desenhada (é mais complexo do que isto, e apenas a leitura desvendará todos os níveis).

Com a excepção de apenas um caso de trabalho édito, o de Paulo Monteiro, todos os outros autores optaram por lavrar algo de novo para esta antologia, de acordo com a palavra-chave, que em inglês é “disquietness”.

Se em alguns casos podemos falar da existência de algum princípio narrativo – com um ou outro protagonista, uma corrente de consciência mais ou menos centralizada, a possibilidade de identificar uma unidade espácio-temporal, causalidade, etc. -, em quase todos há uma dimensão ou outra que corta cerce essas expectativas normalizadas para ofertarem um outro tipo de unidade de banda desenhada, mesmo que fragmentária, dispersa. Correndo o perigo de sermos redutores, podemos dizer que Amanda Baeza, Milena Baeza, João Fazenda, Filipe Abranches, André Pereira, Paulo Monteiro, Pedro Burgos e até Marta Monteiro nos apresentam “histórias”, ao passo que André Lemos, Tiago Manuel, Daniel Lopes e Bruno Borges providenciam-nos antes com ora uma série ora uma sequência (espacial, temporal) de imagens que se coordenam entre si por princípios formais, mas não-narrativos. Todavia, essa divisão impedir-nos-ia, por um lado, de compreender em que medida é que as “histórias narrativas” se negam a resoluções fáceis e até exploram implicações emocionais não-resolúveis (pelo tédio, o pasmo, a incompletude, uma certa ideia de ruína, outros sentimentos “feios”) e, por outro, como os tais conjuntos de imagens fundam, na verdade, pequenas linhas articuláveis de “desenvolvimento”, se assim desejarem chamar, de uma ideia traduzível.

Há também experiências de embate de linguagens. Cátia Serrão apresenta uma das suas bandas desenhadas criadas através da cobertura com tinta de páginas originais (uma abordagem que já havíamos visitado quando da Tinta nos Nervos, que a incluía), e possivelmente aproveitando igualmente frases pré-existentes, criando um diálogo “ruidoso” mas não menos significativo. Daniel Lima, para além da capa, que nos recorda uma espécie de emblema setecentista semi-místico, apresenta uma pequena adaptação de um texto de vanguarda dos anos 1960, sem que se espere qualquer tipo de equilíbrio final no sentido. Tiago Casanova participa com uma espécie de “ensaio fotográfico”, que muito sinceramente nos parece algo deslocado, mas aumenta o diálogo inter-artes absolutamente fulcral nestas circunstâncias. E Joana Estrela faz um aproveitamento de uma fotonovela para discorrer sobre as crises banais dos “jovens” da nossa sociedade.

Necessariamente haverá peças que apelarão mais a uns leitores do que outros, e algumas delas parecerão mais buriladas e integradas do que outras, tal como cada uma delas dialogará de formas bem distintas com o trabalho, novo ou não, dos artistas envolvidos. O “passeio” de Daniel Lopes, por exemplo, por paisagens urbanas (brasileiras?) recorda aqueles “momentos mortos” de um Daniel Clowes, por exemplo, para nos colocar uma questão sobre ausências. O episódio aparentemente banal-quotidiano de Filipe Abranches parece ser uma pausa (autobiográfica?) nas suas pesquisas contínuas em torno da história portuguesa. Joana Estrela continua a interrogar aspectos da identidade (nacional, sexual, etária, mas não apenas) através de estruturas tranquilas. João Fazenda parece revisitar a sua abordagem à la Joaquim Rodrigo, que já havíamos mencionado em Cartografias da Memória e do Quotidiano, para possivelmente partilhar algo da sua própria vida. André Pereira dá continuidade às suas estranhas construções imagéticas em torno de criaturas não-humanas para explorar as relações amorosas mais diárias possíveis.

Um dos artistas alertou-nos para o facto de que o tipo de papel quer da capa quer do miolo se alterou substancialmente, e de facto, estas novas folhas do interior são menos texturadas, ao passo que a capa é menos brilhante. Talvez isso explique como o resultado das cores seja mais baço, em termos genéricos, acreditando que o trabalho de Daniel Lima, de Cátia Serrão, André Pereira e talvez outros tenha um brilho bem mais vincado do que transparece nesta edição. É possível que outras opções materiais também sublinhassem a complexidade da grafite de Marta Monteiro, as pinceladas expressivas de Filipe Abranches ou o contraste entre as linhas negras e as manchas rosas de Tiago Manuel.

Se há algo mais unindo estes trabalhos, e que advirá necessariamente da maneira como responderam ao “tema”, é o modo como todas estas “histórias” criam uma sensação na qual é menos importante a sua resolução do que a sua presença. Se O livro do desassossego é uma “cobardia” para Bernado Soares, que se pasmava por “acabar qualquer coisa”, também poderíamos ver estas pelas reunidas na antologia como gestos que procuram assinalar esse esforço de desassossego, não anulando-o, mas intensificando-o.

A narratóloga Meir Sternberg discute esta natureza da seguinte maneira: “o mundo narrado pode não ter fim quer no sentido de telos, limite ou propósito. Mas o discurso narrativo é sempre dirigido para um fim [end-directed]”. E esse fim pode ser, não propriamente circular, mas ganhar força na sua própria existência. Quer dizer, a recompensa não estará tanto numa função ou resultado dos textos, mas sim na fruição deles mesmos existirem, e a sua existência confirmar, acentuar, tornar mais intensa uma certa qualidade de desassossego, que poderia ser neste contexto em particular, uma excelente tradução da noção freudiana do Unheimlich, ou uncanny, usualmente traduzida como “estranho familiar.” Ainda no campo da crítica literária (e para além dela), gostaríamos de citar ainda Frank Kermode, o qual fala do “enredo do consolo” [consoling plot], o qual não se trata do “final feliz” mais o seu conforto fácil, mas de uma profunda realização desse mesmo apelo por um qualquer consolo e, tornando esse apelo, esse grito, interpretável (graças à existência de um objecto, de um texto), esse mesmo desconsolo torna-se suportável. Mais sossegado, talvez.

Nota final: agradecimentos a M.M., pela oferta do livro; imagens colhidas da internet. 

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