30 de março de 2015

Racconti Indiani. Christian Marra, dir. et al. (Passenger Press)

Este é um projecto colectivo curioso, que demonstra uma solução narrativa e estrutural relativamente simples que atinge rapidamente um resultado variado e com uma aparência épica. Ao se atomizar a responsabilidade de várias partes a um bom número de autores, e mesmo tendo em conta os possíveis ritmos distintos de trabalho, a verdade é que se conseguirá um projecto bem mais alargado num período mais curto do que se se colaborasse com um único artista (ou uma equipa singular). (Mais)
“Contos índios” é uma antologia que conta com mais de trinta colaboradores, muitos deles italianos, mas que conta igualmente com alguns nomes internacionais, entre os quais o português Ricardo Venâncio. A “direcção artística” é de Christian Marra, que presumimos terá criado a ideia da estrutura geral, baseado directamente no volume Indian Tales, de Jaime de Angulo. Como forma narrativa principal temos uma linha central que trata da viagem de uma família de nativos americanos, que atravessa as paisagens do continente americano, e que, graças aos encontros com outros povos, xamãs, caçadores, etc., episódios passados na viagem, ou momentos de pausa no périplo, se permitem contar mitos das suas culturas. Estes dez mitos têm então a forma de histórias a nível hipodiegético, isto é, “histórias dentro da história”. Cada um destes mitos é escrito e desenhado por uma nova equipa de escritores e artistas (os primeiros sempre italianos), e ainda é acompanhando por um “frontispício” desenhado por outro artista ainda. A história em si tem mais de 220 páginas.
Um outro pormenor, de importância, está no facto de que todas as personagens são teriomórficas. Por exemplo, a família central é composta pelo pai Urso, a mulher Antílope, o filho Raposa e a recém-nascida Andorinha, logo, cada uma destas personagens é desenhada de acordo com esses animais. Desconhecendo com precisão os mecanismos antropológicos destas culturas – e sabendo que não se deverão confundir os Sioux com os Lakota, os Iroquois dos Apaches num genérico “índios” -, alimentaremos apenas algumas pequenas dúvidas sobre se todas elas assumem nomes totémicos de animais, e em que fase, e até se esta ideia não é uma generalização fantasiosa da parte dos forasteiros, como nós. E mesmo acreditando que exista algum grau de pesquisa intenso para a construção destas paisagens, dos modos de comportamento, vestuário, acampamento, caça, etc., e sobretudo da correcção dos mitos particulares que são apresentados, é possível que exista algum grau de generalização dessa natureza.
Seja como for, o mecanismo de termos cada personagem representada como um animal individualizado leva a dinâmicas curiosas, sobretudo quando mergulhamos ora em mitos que de facto falam de animais antropomorfizados (a lenda da tartaruga e da lebre – adaptada de Esopo para servir a estruturas similares? -, as histórias com a Raposa, etc.) ora quando se mostram relações com animais (búfalos, ursos, serpentes, etc.). E cada autor, com os seus instrumentos expressivos particulares, conseguem transmitir vários modos de emoção, intensidade, e complexidade psicológica nestas histórias.
Não poderemos dar conta aqui de todos e cada um dos artistas. Alguns deles apresentam abordagens extremamente estilizadas (como Zaex Starzax) ou com grafites suaves (o próprio Marra), histórias sem palavras (a dupla Luca Blengino-Lai Tat Tat Wing) ou construídas como sequências de cenas distintas (a de Alessandro Di Virgilio-Hernân Chavar). Essa diversidade como que espelha aquela dos próprios povos e funções de cada mito, que pode ser contado para ensinar a não desperdiçar comida, mesmo a mais pequena migalha, até a respeitar as armadilhas deixadas por outros, a compreender a necessidade de se ser bom anfitrião ou perceber a origem de uma estrela.
Mas a própria viagem serve para revelar toda uma série de relações. Aquela forte e amorosa entre os membros da família, um modo de compreensão dos ciclos da terra e o modo como se gerem os recursos, as atitudes perante o medo, a morte, o outro. Não deixa de haver aqui um certo grau de idealismo ante-europeu, como não pode deixar de ser, já que a chegada da “civilização ocidental” significou a literal destruição de um ecossistema e de um sistema complexo de culturas distintas. Além disso, a própria escolha de personagens teriomórficas tem um resultado ulterior. A transformação pós-Ocidental das Américas trouxe uma diferença absoluta entre a esfera humana e tudo o resto, inclusive a Natureza, que passou a ser vista como algo exterior a nós, ou de que nos excluímos (“ultrapassamos”, “transcendemos,”, etc.), consequência da praticabilidade e funcionalidade do mundo para com os fitos humanos. Mas este livro, mostrando uma simples mas bela viagem pela Terra, a pé e alerta, como reza o posfácio, abre-se para um tempo em que havia apenas “uma diferença subtil entre homens e animais”.

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