22 de setembro de 2015

The Visible Text. Thomas A. Bredehoft (Oxford Textual Perspectives)

A atenção para com um outro tipo de produção teórica que não necessária e exclusivamente focada na banda desenhada é método fundamental para garantir não apenas a saúde da produção de saber afecta a esta área artística, como medida de controlo da qualidade desse mesmo pensamento. Afinal de contas, e como temos repetido a propósito de outras esferas e circunstâncias, se queremos pensar na banda desenhada como uma área de produção e invenção artística, literária, cultural, ou outra, tão digna como as demais, devemos compreender que ela é cultivada no seio de um panorama bastante alargado e que deve ser atento às múltiplas dimensões do pensamento humano. (Mais) 
É assim que chegamos às páginas deste livrinho, escrito por um especialista reconhecido da crítica textual, sobretudo medieval anglo-saxónica, mas cujos instrumentos de fixação, aparato crítico, exemplaridade e compreensão da história do livro, da matéria impressa, da teoria editorial e outros campos podem informar também esta arte mais recente. Este livrinho deve ser entendido não como algo escrito para especialistas, mas antes como servindo de introdução a novos estudantes ou curiosos das áreas dos meios e tecnologias textuais, trazendo um excelente equilíbrio entre uma leitura formal e uma teoria da recepção, uma atenção para com a mediasfera e questões tecnológicas, de maneira a tornar-se um texto bastante acessível, simples de ler, de compreender, mas de nos apercebermos também dos seus limites e imaginar a sua aplicabilidade. O ponto de partida é tornado muito claro, não apenas pelo seu sugestivo título, como logo nas primeiras páginas, quando Bredehoft escreve que, ao nos defrontarmos com um qualquer texto, “temos sempre de ver tanto como lemos, quer o texto em questão seja nitidamente críptico ou não. Mais, a noção de que a componente visível do texto pode ser descartada, ignorada ou passada ao lado deve ser compreendida como um posicionamento ideológico” (pg. 3, nossos itálicos). Mais à frente, esta ideia é reforçada ao se debater o acto da leitura como “não [sendo] transparente... [mas] um modo complexo de interpretar o visível” (16). Portanto, se a ideia da materialidade última de qualquer texto é apresentada como substrato do discurso a apresentar, essa mesma dimensão é construída no interior de uma complexa rede de tecnologias e recepção, levando a iluminações novas de velhas questões. O livro está dividido em 4 capítulos, e 3 interlúdios, cada uma dessas partes organizadas de forma cronológica e focando temas ou blocos textuais de grande importância na história literária e textual anglo-saxónica, começando com pormenores sobre os manuscritos de Beowulf e vindo desembocar, ao longo dos desenvolvimentos havidos na história do livro e da impressão, na banda desenhada contemporânea. O autor chama-lhe um “género” (128), mas digamos que esse pecadilho é menor à luz da sua tentativa de ir além da sua descrição como mero meio, para debater questões que a entrosam em realidades mais densas afectas à tecnologia da edição. Já quando o autor, no seio da sua discussão sobre esta arte, escreve que “é demasiado cedo na história deste novo meio...” (142) se levantam outras questões. Certo, para quem estuda a história milenar de manuscritos medievais, século e meio parece uma nota de rodapé, mas a diversidade de produção nesse tempo, para mais na modernidade e contemporaneidade, com uma cada vez mais crescente diversidade geográfica, genérica e cultural, para não falar de formal, ontológica e estética, levou a uma amplitude que não parece ser muito respeitada ou sequer compreendida nos exemplos dados, afunilados a um número relativamente restrito e expectável.

O autor apresenta duas formas de definir textos, que têm informado esta área de estudos: por um lado, a ideia de um objecto sujeito a meios de reprodução, por outro, como algo que está enquadrado por vários paratextos, o que leva necessariamente ao entendimento respectivo dos textos como produções e como reproduções. No primeiro caso, cada edição apresenta-se como um original, isto é, que em si conterá características suficientes e significativas a serem vistas por si, e não apenas como acesso transparente ao texto que lhe subjaz, passando a equivaler texto a medial, o que ocorre no segundo caso. Isto é o que permitirá Bredehoft a aliar a cultura que criou os manuscritos da Alta Idade Média à da banda desenhada, ao passo que a cultura tardo-medieval e depois a era da impressão daria maior importância à manutenção de uma mesma matriz textual, sob a lógica da reprodução. Esta ideia de “lógica” informará as discussões em torno de opções textuais, opondo-se “edição” a “cópia” e “fac-simile” (o qual, parafraseando o autor, “não se lê mas se consulta”, 123), o que permitirá uma discussão (acesa, seguramente) em torno das ideias, já no campo da banda desenhada, do papel da dita “arte original”, das edições em revista, pré-publicação e livro, etc. Para Bredehoft, o grande busílis está na sua diferença em tratar a banda desenhada não tanto como existindo um texto central, que atravessa de modo transparente um meio determinado, mas focar-se na negociação, tensão e criação permanente que os autores cumprem entre “o texto” e todo o aparato da publicação (seja qual for), criando assim uma produção localizada e “opaca”, que torna todo e qualquer trabalho numa edição. É isso o que lhe permitirá afirmar que, exemplificando com Chris Ware, Spiegelman, mas também Watchmen e He Done Her Wrong, de Milt Gross (que se poderiam considerar “suspeitos do costume” e não propriamente território novo e interpelante da diversidade da banda desenhada), duas edições (num sentido banal do termo) diferentes não são “cópias” com diferenças de um mesmo texto, mas dois textos diferentes, mesmo que a diferença esteja “enterrada”, como é o caso de Ware, nos paratextos e notas de rodapé nas páginas em torno daquilo que consideraríamos a “banda desenhada central”. Mas, como o autor adverte, é uma questão ideológica que “hoje molda os livros impressos [e, consequentemente] entender a variação como um problema textual, um 'bug', em vez de uma característica” (102).

Todavia, apresenta-se desde logo aí um problema pragmático. Se não tomarmos essas variações como tal, mas antes como edições distintas, isto é, textos que merecem uma atenção idêntica, o que fazer em casos de variação superficial-comercial como, por exemplo, as “capas variantes”? Se seguirmos Bredehoft neste ponto, e não as considerarmos as “mesmas” edições, isso poderia levar a um problema de análise. Pensando num caso em concreto de inquirição e arquivismo, correr-se-ia o risco de repetir o mesmo “texto” num determinado corpus, duplicando se não mesmo multiplicando ao máximo o orçamento para compras de uma série e/ou título individual. Em vez de comprar somente um número de Spider-Verse # 1, apesar de sabermos que fora vendido com x capas diferentes, comprar-se-iam x exemplares do mesmo texto interior, impedindo talvez que se utilizasse esse valor para compras diferenciadas. E estes problemas pragmáticos colocam-se no dia a dia de projectos em curso. Mesmo tendo em conta que o estudo das capas destes objectos, comerciais ou não, são muitas vezes de extrema importância, já que as capas são elementos paratextuais particularmente cruciais. Por outro lado, já seria uma discussão de uma natureza totalmente diferente se existem “capas variantes” para comic books e para graphic novels, que parecem distanciar-se cada vez mais em determinados discursos, mormente académicos. Na verdade, no segundo caso, capas diferentes não seriam vistas como “variantes”, já que essa palavra é empregue sobretudo para as revistas (comic books) que são lançadas num mesmo dia, com o mesmo conteúdo físico, e apenas uma diferente imagem na capa exterior – a qual pode ou não ser significante para a história em si mesma, ou o projeto em que se insere.

Esta posição de Bredehoft é algo controversa, uma vez que está Bredehoft a evitar uma leitura de um suposto Ur-texto da banda desenhada, ontologicamente anterior à sua existência enquanto objecto material, para se cingir, à la lógica benjaminiana, numa obra reprodutível tecnicamente, “sem original”. É apenas “o nosso hábito em os tornar em textos mesmo antes de começarmos o trabalho de interpretação” que informa a atitude usual, a qual “é mais uma questão de conveniência que exerce alguma violência à sua materialidade original” (47), que é como que descartada em nome de um suposto cerne interpretável, e à margem dessa concretude.

Por uma razão de conveniência e conhecimento, não abordaremos naturalmente as discussões do autor em torno de manuscritos medievais, as relações entre textos medievais britânicos e emblemas, a segunda edição impressa por Caxton dos Canterbury Tales, ou o Folio de Shakespeare e a edição, “born-printed”, como diz tão elegantemente Bredehoft, de Leaves of Grass impressa pelo próprio Whitman. A sua leitura tridimensional do texto presente no chamado “Franks Casket” é magnífica, mas não conhecemos os contornos à sua problemática. Apaixonantes, complexas e demonstradoras da forma como o autor esgrime conhecimentos de todo um tecido sócio-cultural contemporâneo que demonstra como “ler o texto” não é suficiente (lição para que, de resto, já Steiner alertara há muito), suspendemos a atenção para pensar na banda desenhada.

Para Bredehoft, a lógica que opera sobre a banda desenhada é a da justaposição, que ele contrasta com a da acumulação ou agregação, própria do álbum ou scrapbook, na acepção inglesa de espaço em que se coleccionam imagens díspares (v. 135). Nesse sentido, segue o sentido gramatical desses vocábulos, em que na primeira se preserva a integridade dos dois termos originais, e na segunda se subordinam alguns elementos, transformados. Mas o ponto mais importante da sua discussão tem a ver com as opções de materialidade, que ele sublinha de forma vincada: “... a materialidade radical da textualidade da banda desenhada” (149). “A configuração única das ideias e conceitos que associam o trabalho da banda desenhada aos processos e ideologia de reprodução age de modo bastante contrário ao funcionamento ideológico dos facsímiles, que associam a autenticidade com uma versão anterior ou importante (e visível, ou visivelmente reprodutível) de um texto” (137). A consequência é, portanto, a de que “uma banda desenhada reproduzida é, em si mesma, o resultado de um acto de produção de banda desenhada” (138).

Parece ser esse o ponto principal que leva o autor a considerar que não seria possível fazer uma edição crítica, tal como ela é entendida noutros contextos textuais, nomeadamente o literário, no campo da banda desenhada. Neste ponto, gostaríamos de remeter o leitor interessado aos textos em que tecemos as possibilidades várias que se oferecem nessa direcção, a propósito de The From Hell Companion, MetaMaus e The Daniel Clowes Reader. Para Bredehoft, isso dever-se-á sobretudo à dimensão visual: “[c]ertamente que os componentes não-linguísticos e desenhados de uma obra de banda desenhada manter-se-ão incompatíveis com uma versão 'correcta' projectada [imaged] ou ideal da sua realidade desenhada” (141). Mas qual é a razão que leva o autor a fazer uma tal afirmação? Sobretudo sem apresentar mais exemplos concretos para além de uma página de Gross, quer de tentativas de “aproximação” a esse ideal ou mesmo experiências “falhadas”, sob a sua perspectiva ou outra. Compreende-se perfeitamente o que Bredehoft deseja sublinhar: a banda desenhada em si “não existe” antes da sua reprodução, isto é, nos desenhos originais, por mais que estes se aparentem com a forma final publicada (o que era o caso clássico da reprodução histórica, mas hoje se torna complicado já que mesmo os autores que ainda desenham com tinta sobre papel podem optar por colorir, colocar as artes-finais e correcções, ou legendar no computador, etc.). A impressão é o momento simultâneo da produção e reprodução; estas coincidem. “É a impressão [It is print] que nos incita a ver o livro impresso e os materiais preliminares como que reflectindo um texto ideal; mais uma vez, porém, a banda desenhada é real, e não existe nenhuma forma ideal subjacente” (141). Por outras palavras, é apenas por impressão retrospectiva, depois do facto, com a banda desenhada/objecto impresso, que pensamos nos outros materiais como a banda desenhada por vir. Mas esta distinção não é jamais pacífica, sobretudo quando estamos a falar em círculos de exposição galerística, decisões editoriais, manipulação para impressão, etc.: há decisões tomadas sobre os materiais preliminares que fazem agir, desde logo, decisões que tomam esse “texto ideal”, mesmo que projectado no futuro... Qual é o objectivo de mostrar esses materiais, se não é o “texto”? Que se está a operar sobre o texto antes dele existir?

Esta atitude abre ainda mais alguns paradoxos, que são informados em parte pelo facto de os exemplos principais de Bredehoft nascerem de um círculo de trabalhos mono-autorais, já para não dizer de “banda desenhada de autor”. Isto é, seguindo aquela esteira dos títulos usuais e afunilando a diversidade num só circuito, sem sequer prestar atenção a modalidades da banda desenhada que, sendo mais “banais”, “usuais”, “comerciais” ou outros termos, preenchem mais a sua realidade material e social.

A leitura de Bredehoft não pode servir a uma simples direcção de “com ele concordar” ou “discordar”, mas antes tentar compreender como estas duas lógicas textuais, que se estabelecem como as grandes tensões, ou pólos, que informam a história da textualidade – pelo menos, no interior da narrativa que o autor tece neste pequeno volume – podem informar duas (ou mais) formas de ler e ver a banda desenhada, passando a compreender os contornos das possibilidades do seu trabalho e exploração material e textual (que é uma e a mesma coisa). Como pensamos ter já confessado noutra ocasião, a ideia original de baptizar este espaço era a de utilizar uma letra que tanto valesse de “v” e “l” para criar um novo verbo. Uma ideia que não medrou, mas traduzia o desejo de fundir estas acções que The Visible Text. Textual Production and Reproduction from Beowulf to Maus. também deseja atingir.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro; exceptuando a capa, imagens colhidas na internet. 

Sem comentários: