17 de janeiro de 2016

A casa que voou/A sereia e os gigantes. Davide Cali e Catarina Sobral (Bruáa/Orfeu mini)

Graças à recepção do seu trabalho, celebrado pela crítica, leitores, exposições e prémios, mas igualmente por uma intensidade concentrada de trabalho efectuado, Catarina Sobral consegue produzir novos projectos no que parecerá tempo recorde. Eis mais dois títulos a somar a uma das autoras mais produtivas, em termos individuais, da literatura ilustrada infantil portuguesa, que vêm mostrar ainda mais desdobramentos da sua assinatura visual e autoral. Em ambos os casos, podemos dizer que se Catarina Sobral optou por não escrever as palavras, a matéria narrativa e até os elementos que compõe aquilo a que chamamos de “história”, está porém nas suas mãos o enquadramento da matéria visual em torno desses mesmos elementos, assim como toda a organização dos ritmos, objectos e conjunção de tudo aquilo que concorre para a construção do significado, quer aquele paulatino, página a página, quer o total. (Mais) 

No caso de A casa que voou temos um texto escrito por Davide Cali, que os leitores portugueses poderão (deverão, até) conhecer de A rainha das rãs não pode molhar os pés, ou Um dia, um guarda-chuva… ou a banda desenhada infantil Cruelle Joëlle. Assim sendo, poderemos esperar um trabalho burilado por textos simples e curtos, mas que pretendem não apenas dirigir-se ao essencial dos eventos que construam uma história, mas igualmente às suas dimensões que melhor revelem o valor que essas mesmas coisas exercem sobre as suas personagens. Em A casa…, Cali prepara um texto escorreito, em prosa fluida e sem ornamentos excessivos, quase apenas afirmando os factos – “um dia a casa foi-se embora. Simplesmente ergueu-se do chão e levantou voo.” -, querendo que sejam eles mesmos que façam despontar a magia desses pequenos absurdos. Catarina Sobral elabora então um trabalho em torno dessas palavras, aqui apenas duas frases, ali um bloco maior, que se expressa sobretudo por spreads, mas todos ocupados de modos diferentes. Usando lápis de cor e grafite, a ilustradora constrói paisagens urbanas na qual a casa na verdade não se destaca tanto pelas suas características físicas, mas pelo seu acto de fuga, obrigando o seu morador a lançar-se igualmente num movimento de perseguição. Uma vez que a autora cria a maior parte dos objectos – edifícios, árvores, veículos, personagens, e até mesmo as texturas e sombras com os grafites em tramas diferentes, o uso da cor destaca-se para espalhar pontos visuais de interesse, fazendo com que o olho não apenas percorra, lúdico, à procura da casa voadora, como a desvendar os pormenores diferenciados.

As dificuldades do protagonista, que o obrigam a procurar vários apoios, falhados, na burocracia, acabam por serem desculpas de revelação de uma outra paisagem, aquela que de tanto a casa como o protagonista, afinal, fogem. A resolução da história é tão calma como o voo tranquilo da casa e a viagem do homem, e que se descobre que era tão-somente um regresso à infância.

A sereia e os gigantes tem texto da própria autora, mas é baseada numa famosa lenda algarvia, da praia da Rocha, sem grandes desvios das versões mais conhecidas. O propósito da autora não seria um reaproveitamento da lenda para depois criar “revelações da verdadeira lenda”, ou providenciar uma hipotética explicação – real ou fantasiosa – mas aproveitar essa matéria para investigar modos elegantes de se expressar no plano visual.
A lenda é simples, e conta como a disputa entre o Mar e a Montanha, aqui representados por gigantes, por uma sereia, levaria a um impasse que criaria a praia. No entanto, isso cria o triângulo perfeito para dominar a composição das páginas. Apresentadas necessariamente duas a duas, existem oposições em simetria que criam ecos ou reflexos entre os gigantes Mar e o gigante Montanha, páginas que se apresentam como unidades separadas mas se complementam (as dos presentes ofertados), e outras que constituem paisagens corridas, ora de uma forma relativamente neutra, ora colocando os rivais em tensão, ora ainda mostrando-os, com ou sem a sereia, numa posição descentrada, criando então pontos de desequilíbrio necessários para quer o avanço narrativo quer para um reequilíbrio holístico. E de facto, se se pensar na própria história e na lenda etiológica, são precisamente a constatação dessas duas forças motoras e imensas (o mar e a terra), a sua tensão simétrica e o vaivém das suas forças em oposição, que criariam essa nova terra.

Se as formas estilizadas e minimais a que Catarina Sobral já nos habitou procura uma elegância quase subsumida e contida em A casa que voou, no caso de A sereia e os gigantes já se permite abandonar em maiores efeitos dramáticos e psicadélicos de combinação de cores, já que ocupa o espaço branco da página de uma forma mais resoluta e suave. Em vez das tramas a grafite, temos grandes blocos de cor, provavelmente em lápis de cera, que permite um “preenchimento” mais homogéneo. Isso não significa que os brancos não sejam significativos, uma vez que, compondo o corpo dos gigantes, podemos lê-los (aos brancos) como uma proximidade exagerada desses mesmos personagens.

Bem calculadas, o número de cores é na verdade também contido, mas se na colaboração com Cali se trabalhava apenas num princípio de cores primárias que não se cruzavam, aqui temos um maior número de cores (além do amarelo, vermelho e azul entra igualmente o verde, o rosa, o castanho), ainda que não se combinem para chegar a outras cores: cada linha é autónoma, seja recta, curva ou encaracolada, mas se se cruzar ou encestar com outra numa trama ou padrão, cria efeitos cumulativos. Existem então as paisagens recorrentes da autora com tipologias diversas de um mesmo descritor (“peixes”, por exemplo, ou “flores”, “árvores”, “barcos”, “montes”, “ondas”, etc.), que pouco se importam com princípios realistas, mas antes com formas de domínio de diferenciação imaginativa.

Não é esse o propósito dos livros todos, de resto?

Nota final: agradecimentos a ambas as editoras, pela oferta dos livros. 

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