16 de janeiro de 2016

Talco de vidro. Marcello Quintanilha (Polvo)

A equação deste novo livro de Quintanilha apresenta uma estrutura curiosa, e que demonstra o quão mais importantes são as construções das pessoas nas nossas próprias mentes, misturando factos e contacto directo com projecções, medos e ansiedades do que um verdadeiro encontro entre duas pessoas num palco de igualdade. Se Talco de Vidro parece ter duas personagens a viverem numa qualquer relação de distribuição e troca de energias, a verdade é que é apenas a partir de uma delas que todos os novelos da trama são despedidos, e é totalmente na responsabilidade dessa personagem que recaem as forças que desenrolarão, desfiarão e destruirão esse mesmo novelo. (Mais) 
 A descrição da intriga deste novo livro parece quase tirada de uma banal telenovela. Duas primas nascidas no mesmo meio social enveredariam em duas fortunas quase diametralmente opostas, graças às circunstâncias igualmente antagónicas a que acederiam, desde o ambiente familiar às capacidades financeiras dos pais, passando pelos casamentos com maridos que ora lhes deram todas as possibilidades de se realizarem a todos os níveis ora seriam mais um obstáculo nessa libertação individual. E é desta maneira que Rosângela se tornaria uma dentista independente com algum volume de negócio e inscrita numa classe média alta do Rio de Janeiro, e Daniele se manteria numa vida de classe trabalhadora dos subúrbios. Todavia, não é apenas essa desigualdade que é suficiente para criar algum movimento narrativo. O que surge é uma mancha somente na perspectiva de Rosângela.

Apesar de todos privilégios que conquistou, e uma certa “superioridade”, pelo menos a nível económico e social, alcançada em relação a Daniele, esta possui um sorriso genuíno, quase virgíneo, que revela o modo natural e livre com que ela experiencia na totalidade a sua vida. Na mente de Rosângela, mesmo que isto não seja dito, esse sorriso acaba por ser um reflexo de como ela própria não consegue aceder a esse prazer da vida, não obstante as suas condições “perfeitas”. É portanto a própria existência do sorriso de Daniele, como uma fenda de luz súbita no meio da sua vida, a qual, de acordo com Rosângela, deveria ser sempre triste, que vem paradoxalmente assombrar a existência de Rosângela, que deveria ser feliz. É essa estranha simetria de distribuições desiguais que lançará Rosângela num profundo exercício de introspecção – que é a matéria toda de Talco de vidro – e num trilho cada vez mais autodestrutivo. A inveja, roendo-a por dentro, leva-a a criar cada vez mais defesas classistas e muitas vezes de soberba contra aqueles que ela vê como seus inferiores sociais, a querer mesmo “destruir o sorriso” da prima, mas rapidamente se tornará um plano inclinado no qual ela tombará.

Como no caso de Tungstênio, Quintanilha abandona qualquer organização linear e unilateral da sua história, mesmo que em termos gerais exista um cristalino arco narrativo. O leitor entra num princípio e sairá num fim, sem dúvida, mas o percurso é composto por avanços e recuos, desvios e desvãos, becos sem saída e intrometimentos em linhas temáticas intempestivas. Se existe uma “trilha” associada a um narrador externo, as palavras que seguimos, sejam essas ou as dos diálogos falados pelas personagens, criam estruturas inacabadas e sem cartografia.

Muitos dos diálogos parecem ser frases de circunstância, coisas banais que se dizem, quase ao ponto do que escutamos, dizemos e repetimos como automatismos. Se não as escutássemos, nada de grave se perderia na comunicação, no convívio entre as pessoas. Elas criam portanto uma espécie de matéria que adensa a história, mas não são necessárias para a sua compreensão. É um trilho de intensidade, de impressão. De sensações mais acumuladas do que compreendidas. Mas tanto podemos atribuir essa responsabilidade aos impulsos de Rosângela – que “deita fora a sua vida”, como se costuma dizer, por um despeito quase superficial – como à incapacidade do narrador encontrar um fio à meada a essa mesma desfeita.

Eis um exemplo. Logo no início dos casos amorosos após a separação do marido, Rosângela está a jantar com um homem. Numa vinheta, ela diz, “Eu sempre preferi frutos do mar à carne, sabe?”, para na outra vinheta o homem afirmar “Meu negócio foi sempre marcas e patentes; meu pai queria que eu...” etc. Esta falta de coordenação ou completude imediata entre os diálogos é apenas um dos sintomas desta organização semi-desvairada que informa todo o relato. Ao contrário de Tungstênio, Talco de vidro é absolutamente concentrado na perspetiva e mesmo focalização interna da protagonista. Se existem toda aquela “torção visual” necessária para transformar a matéria do livro na convenção narrativa de um mega-narrador externo, todo o texto, não sendo na primeira pessoa, parte de um canto obscuro da psique de Rosângela, e todos os acontecimentos têm-na como âncora principal, ou se não tiverem, são simplesmente memórias ou projecções do que ela sabe dos outros (sobretudo em relação à prima Daniele).

Longe da dispersão da polifonia do anterior livro publicado entre nós, a manutenção do mesmo princípio de turbilhão de memórias, sensações, linhas de pensamento, ideias, fragmentos, modos de humor e momentos temporais, ao exercerem a sua tensão narrativa e organizacional numa só personagem, ou seja, numa só plataforma psicológica, tornam-na muito mais tensa. Afinal de contas, enquanto leitores, poderíamos atribuir aquele turbilhão, em Tungstênio, a uma personalidade não-narrativa, ao próprio mecanismo da história, mas agora aqui infundimo-la numa vontade e, assim, quebramo-la também ou adivinhamos de longe que essa tensão terá como resultado alguma vazão dramática.

A atenção do autor para com a paisagem social do Brasil urbano não poderia ser mais patente. Há uma clara linha de divisão que separa a experiência de Rosângela e a da prima Daniele, como vimos. Aliás, quase sistematicamente se constrói uma ideia de dicotomia entre ambas a todos os níveis. Se a primeira tem o seu próprio consultório de dentista, a segunda não conseguiu terminar o curso de arquitectura sequer. Se a primeira vive num apartamento de luxo, um duplex em Icaraí, e se desloca no seu novo automóvel importado, que lhe foi oferecido na casa de praia, Daniele tem de apanhar o autocarro a partir do bairro de Barreto, algures no Niterói, do outro lado da Baía de Guanabara. Se a primeira tem um marido de sucesso, atencioso para com os filhos, generoso para com todos, influente e que convive com uma parte da nata da classe alta do Rio, Daniele vive na sombra de um divórcio forte e feio, de um homem violento, depois de ter fugido de casa de um pai bêbado e violento. Rosângela sabe que pertence a um nível social superior ao de Daniele, e isso seria factor suficiente para sentir uma espécie de simpatia para com a sua pobre prima, mas nem isso existe.

Em primeiro lugar, é preciso compreender que o uso que fazemos aqui de simpatia é muito preciso, e que nada tem a ver com empatia, a qual é a compreensão, apelando para experiências ou traços vivenciais idênticos, do que o outro vive naquele momento. A simpatia é uma ideia moralizante e emotiva da experiência do outro (o pai alcoólico, o marido abusivo, a vida que não corre bem), mas superficial e que mantém uma grande parte dos juízos de valor, aqui enrolados com aspectos da vida social. Todas as conquistas de Rosângela, em parte, nasceram da sua circunstância privilegiada, mas ela atribui-las à sua própria vontade, fazendo o mesmo em relação aos aspectos negativos da vida de Daniele, e é essa a razão que a levam a ver o tal sorriso como uma nota dissonante e uma explicação do seu não-merecimento. Rosângela acredita que todos os que a rodeiam estão plenos de inveja por ela, pelo que ela possui, nas suas palavras, o “sacrossanto objetivo da perpretrada vida inalcançável”. E fica cega, então, para o monstro de inveja que ela cria sozinha. Afinal de contas, esse tal “alcance”, palavra empregue, que Rosângela acreditava ser essa linha inultrapassável, é afinal facilmente conquistável. E tudo a partir da sua perspectiva. É um cliché falar de espiral, é certo, mas é essa a figura geométrica compulsiva criada a partir da sua obsessão.

Os únicos momentos em que o narrador visual parece querer “escapar”, digamos assim, da prisão da perspectiva de Rosângela, é quando procura instituir pequenos ecos formais entre espaços e objectos: uma porção da calçada, as ondas na praia, um canto de céu. Se existem vinhetas “imaginárias” ou “metafóricas”, que acompanham a trilha dos pensamentos da protagonista, esses delicados momentos escapam da gravidade da narrativa e da introspecção tortuosa e doentia da mulher. Isto é ajudado pelo facto do autor gostar de empregar múltiplas perspectivas oculares sobre um mesmo objecto (ou personagem), sucessivamente saltando de ângulos, proximidades e aberturas de plano. Não é que se crie propriamente uma fluidez e elegância de sentido com essas desarrumações, mas instila-se antes uma certa urgência e precisamente falta de centro. O que, associado à absoluta centralidade de Rosângela, leva ao paradoxo da sua mente cada vez mais desancorada, na sua espiral descendente de ânimo.

Mas essa é outra das forças de Quintanilha, parece-nos. O facto de ele deixar-se estar durante muito tempo (páginas, vinhetas) num diálogo, mesmo que nos parece ser banal, é o que traz à tona essa realidade, mais constrangedora do que outra coisa qualquer. O choro entre Rosângela e a mãe, quando a filha “reemerge” da sua “depressão”, é um exemplo claro dessa gestão. Todos nós teremos passado por esses episódios, mas quando os recontamos reduzimo-los a traços essenciais. Ver e escutar cada fungadela, cada pequena hesitação no diálogo, cada pedido de correcção e gesto, não é algo que se deseje revisitar, nem visitar no caso dos outros, mas é aí que Quintanilha nos obriga ficar, para percebermos as linhas com que se cosem essas personagens. E é também nesses momentos que o tempo mais corre lenta e linearmente, sem interrupções da “mente” de Rosângela.

A protagonista atravessará toda uma série de fases desta odisseia psicológica: agressão, desejo de auto-transformação, transtorno, enganos, regressão infantil, e uma recuperação. Mesmo que mais uma vez frágil, ilusória e superficial, pronta a estilhaçar-se à menor desvio. E Quintanilha, em Talco de vidro, montou uma armadilha implacável para as mandíbulas se fecharem.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

Sem comentários: