12 de dezembro de 2016

How to talk to girls at parties. Neil Gaiman, Fábio Moon e Gabriel Bá (Dark Horse)

O problema muitas vezes do sucesso e do apoio vocal e numeroso de certos autores é que abre oportunidades de publicação de trabalho que mereceria um outro tipo de filtro ou esforço. Gaiman atingiu um tal nível de estrelato que até surge como personagem de “autor com conselhos para novos escritores” em séries de animação (The Simpsons, Arthur) e já há muito tempo que qualquer recado ou notinha acaba por ser antologiada, coligida ou adaptada a outro meio. O problema não está, naturalmente, no facto de ser publicado. Isso é até positivo. O problema está em que tem mais um efeito cumulativo do que de relatividade da qualidade de escrita. (Mais) 

Gaiman tem qualidades insuperáveis, sobretudo no que diz respeito à banda desenhada, inclusive a mais mainstream, se bem que nos trabalhos mais antigos, Signal to Noise e Violente Cases, ambos com Dave McKean, as explorasse de uma forma mais sustentada por toda a restante matéria. A expressividade localizada e pessoal de cada personagem, a atenção multissensorial para com os mundos narrativos que usa, e a qualidade poética das suas vozes narradoras em criar uma dimensão extraordinária, “estranha familiar”, à mais banal das realidades é, com efeito, uma assinatura particularmente notável. O conto que deu origem a esta adaptação tem precisamente esses traços. Começando no que parece a mais trivial das existências, e com laivos suficientemente nostálgicos para aumentar a benesse com que o leitor se introduz nessa história passada no início da década de 1970, com todas as cores ansiosas da adolescência, espraia-se uma armadilha para um mundo bem mais vasto, colossal e cósmico mesmo, de uma intensidade quase insuportável.


“How to Talk to Girls At Parties” é um conto em que dois jovens procuram uma festa de adolescentes, e onde esperam vir a encontrar-se com raparigas, as criaturas mais estranhas que conhecem e pelas quais se sentem atraídos, se bem que com dúvidas e incertezas. Sobretudo o protagonista, Enn, que como quase sempre as personagens principais de Gaiman, não tem a autoconfiança dos heróis mas acaba empurrado pela força das circunstâncias que o rodeiam, como o vento ou a chuva. E para que isso fique ainda mais claro, ele é acompanhado por Vic, mais próximo do macho alfa e com uma lábia para meter conversa. O foco da história é, portanto, a aprendizagem lenta e dolorosa de Enn em como iniciar conversas e, quem sabe, mais do que isso, com miúdas. Nesse aspecto, a trivialidade e normalidade do desejo é perfeita e espelha as experiências de milhares de adolescentes nos mesmos campos. O desconforto, titubeações, diferenças de maturidade aparente entre os sexos, e os passos falsos ou mesmo patetas da parte do rapaz apenas reforçam essa mesma noção.

Porém, se a um determinado momento inicial a conversa estranha das três jovens mulheres que Enn vai conhecendo sucessivamente na festa parecem ser apenas um sinal da tal distância entre as raparigas que crescem mais rápido e os rapazes que ficam para trás, aos poucos os discursos tecidos por elas ganham um contorno mais misterioso, estranho, algo afastado da expectativa humana, até se revelar algo bem mais sinistro. Essa natureza, como veremos, é expressa visualmente nesta adaptação, o que no conto não acontecia, existindo tão-somente nos interstícios que serão criados pelos leitores.

Mas há uma limitação natural nos contos, sobretudos estes tão-curtos. Não havendo espaço para criar uma personagem mais complexa, nem um arco de aprendizagem mais apropriado ao romance, há uma centralização sobretudo na intriga. Gaiman é um autor imaginativo e muito acima dos que tentam criar formas literárias no território do fantástico, e até tem uma abordagem “simpática”, pouco grotesca, das personagens, mas há uma certa leveza neste conto que não contaria com uma adaptação tão alongada. Não se podem esperar aqui personagens memoráveis mas antes cifras em torno das quais se ancoram os eventos.

Os autores brasileiros, por outro lado, seguem também as mesmas passadas que o escritor britânico, no sentido em que todo e qualquer projecto receberá luz verde, mas ao mesmo tempo um desimpedimento de obstáculos que pode levar a menos explorações internas. Com efeito, a abordagem deste livro segue os movimentos expectáveis de um livro mainstream, de quase obrigatoriedade comercial, do que propriamente de um projecto em que se pretendesse reinventar a assinatura dos autores. Apesar dos contornos delicodoces de Daytripper e a solidez história e localizada de Dois irmãos, os cenários neste volume são menos naturalistas e sumários (com a excepção da cena introdutória e a fuga final, toda a narrativa se passa num interior), as próprias personagens mais simplificadas para uma legibilidade mais célere, mas perdendo alguma coerência na continuidade,as cores aplicadas mais gestuais mas sem que isso signifique maior expressividade ou pertinência.

A esmagadora maioria das cenas propostas pelos gémeos seguem as pisadas do texto de uma forma confortável e relativamente expectável. Não há alterações de maior em relação às falas e até mesmo às legendas do narrador, quase como se o conto fosse tratado como um argumento completo. Para além da questão óbvia da figuração (que mostra mais jovens homens do que os adolescentes do conto, retirando parte da possibilidade da falta de suavidade social típica prevista originalmente, mas oferece-nos figuras femininas um nadinha no limite da humanidade), da estruturação das páginas que incute os ritmos específicos da banda desenhada e as opções cromáticas – a nosso ver, com uma certa ambiência luminosa e quente demais para uma história passada em Londres ao fim do dia e nas primeiras horas da noite -, há apontamentos que trazem uma mais-valia nas emoções e caracterização das personagens: a mão da segunda rapariga na perna de um outro jovem, a distribuição do texto de uma forma visual que traz uma dimensão temporal à leitura do texto e, claro, a “tradução” do mundo fantástico da qual terão emergido estas mulheres, que são uma perspectiva dos desenhadores a partir do que não é dito no texto original. É aí que eles poderiam ter fugido ao texto e ter criado uma garantia própria da banda desenhada, acrescentando, digamos assim, pela presença visual, uma promessa maior do que estava no texto. Contudo, talvez devido a uma limitação do formato, de decisões editoriais ou de “respeito” e “distância” para com o escritor, os artistas acabam por se manter numa abordagem tímida e underwhelming.

Há uma ideia de estarmos perante uma adaptação que tem menos de inspiração do que de necessidade de alimentar a constância da presença de produtos. Mais um livro de Gaiman, mais um livro dos gémeos, então se forem todos juntos, milk the cash cow.

O desconforto da adolescência masculina heterossexual perante o “mistério feminino” não deixa de ser uma metáfora relativamente gasta. Todavia, é verdade que um escritor do calibre de Gaiman, empregando a caracterização e candura que lhe é reconhecida, consegue transformar esses territórios normalizados, senão normativos, em pequenos contos agradáveis. A tradução dos gémeos, por sua vez, é garante de um veículo de grande legibilidade e acessibilidade. Mas pouco mais.

Nota final: agradecimentos a W.T. pelo empréstimo do volume.

1 comentário:

MMMNNNRRRG disse...

os desenhos são mesmo feios!