19 de dezembro de 2016

Rose Profond. Jean-Paul Dionnet e Pirus (Casterman)

Há algo de profundamente desconcertante ao sermos confrontados com mundos demasiado perfeitos, em que não há espaços para sombras ou as próprias sombras são inócuas logo à partida. Talvez tenha a ver com o facto de que a esmagadora maioria das histórias tradicionais sempre tiveram um substrato de violência e horror, depois higienizado ao longo do século XIX e para mais no século XX ao passarem pelos filtros moralistas e materiais de meios como a banda desenhada e a animação, mormente aqueles exclusivamente dedicados aos leitores e espectadores mais novos. Se houve caso de estudo para “o regresso do reprimido”, ei-lo. A emergência dos universos Disney, sobretudo, levariam a esse desejo de o conspurcar o mais rapidamente possível. Senão, veja-se a rapidez com que estas personagens encontraram espaço nas Tijuana Bibles. (Mais) 

Mas é graças à explosão dos underground comics, nos anos 1960, com Crumb e companhia, que toda a matéria visual e plástica dessa banda desenhada e animação tipificada, usualmente chamada de “rubber hose” ou “big foot” se torna uma panóplia re-utilizável em tratamentos de fantasmas. Sexo, drogas, contra-cultura, agendas políticas específicas contrárias à via conservadora vigente, etc. são o pasto temático para re-empregar essas personagens ou figuras similares e interrogar as fronteiras da moralidade, da mundividência política, da inscrição social. O caso dos Pirate Funnies será apenas o mais famoso deles, mas são inúmeros os casos de détournement dessas figurações, continuadas até aos nossos dias, como os exemplos de Al Columbia ou Bertoyas. Mas nos anos 1980 houve também este gesto, em solo francês, de criar uma pequena saga que olhava para o aparentemente inócuo mundo das Silly Symphonies e procurava o seu lado negro. É assim que Jean-Paul Dionnet, depois de ter abandonado o projecto da Métal Hurlant, e Michel Pirus, que aqui encontrava o seu primeiro longo trabalho, criam a história de Malcolm, o rato, o qual, ao celebrar o seu quinquagésimo aniversário na “companhia”, resolve apanhar um pifo descomunal que o leva a tomar em mãos o que sempre lhe fora negado, a saber, os afectos – procurados sob a forma de uma violação – da pastora Mimi.

No mundo de Malcolm, tudo aparece feito e planeado. Não há que ter grandes preocupações com a alimentação ou o trabalho, pois tudo surge ex machina. Apesar das inúmeras elipses e buracos de informação, aos poucos apercebemo-nos de que todas as aventuras passadas pelas personagens os fazem retornar sempre ao ponto de partida, e não há maleitas que se mantenham. Todos cantam, dançam e se divertem, pois não há preocupação alguma. O acto obsceno e violento de Malcolm, porém, traz uma divergência nesse mundo e ele acaba por ser expulso para um “mundo exterior”, um dos quais é o “mundo cizento”, exagerado, é certo, mas parecido com o nosso. Onde se trabalha, se pena e se sofre, mas em liberdade. Depois seguir-se-á o regresso de Malcolm ao seu mundo, com o intuito de inverter a ordem desse sistema.

Não deixa de haver alguns aspectos algo moralizantes menos conseguidos da parte dos autores, sobretudo no confronto com a nossa própria realidade, apesar de ser esse mesmo o propósito destes exercícios de détournement, mas se algumas das piadas podem ser efectivas de modo momentâneo, nem sempre são conteúdos que se possam revisitar, já esgotados. Ainda assim, são variadíssimas as observações subtis que nos farão certamente reler e rever os universos ficcionais a partir do qual este é criado de uma forma diferente, mais crítica.

Esta é uma antologia de uma série que foi publicada em episódios na L'écho des savanes, entre 1988 e 1989, mas que já havia sido alvo de republicação em álbum nesse mesmo ano final. Nesse aspecto é uma reedição importante de um material histórico para colocar na compreensão da bande dessinée animalière. A diferença substancial está não apenas no formato e qualidade de impressão, mas igualmente no acréscimo de um subsídio final, sobretudo de textos mas acompanhado com muito material visual, no que chamam “The Malcolm Connection”. Explicando de uma forma muito sumária, trata-se do caso (que não é fácil destrinçar se se trata de uma exercício apócrifo metatextual da parte dos autores, uma mera brincadeira de um terceiro ou algo verdadeiro) de um suposto especialista de animação norte-americana que pretende demonstrar como Dionnet e Pirus não estavam a criar uma nova personagem mas antes a citarem uma criação de facto de um estúdio obscuro dos anos trinta, o American Association of Animation. Dessa forma, providencia informações, dados, datas, e vemos igualmente material visual que corrobora ou complica essa ideia, fantasiosa ou não. Independentemente da posição do leitor perante a ontologia dessas informações, o que se ganha é uma espécie de perspectiva, mesmo que algo distorcida, da produção real da animação americana de estúdio das décadas de 1930 e 1940, tocando muitos dos temas que efectivamente os estúdios Fleischer ou Disney tratavam, explorando muitos dos conceitos de produção, métodos de trabalho, etc. As imagens que acompanham fazem um esforço para mimar muitos dos materiais da época (estudos de personagem, materiais promocionais, logotipos, model sheets e bandas desenhada de jornal), mas nem sempre há uma mimese mais acabada em termos materiais, pelo que a ilusão tem os seus limites.

Nota final: agradecimentos a editora, pela oferta do volume. Quase todas as imagens colhidas da internet. 

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