8 de janeiro de 2017

O testamento de William S. Yves Sente e André Juillard (Asa)

Quando falámos de Sous le soleil du minuit, aventámos a toda essa prática contemporânea no interior do contexto específico da banda desenhada europeia, pautada sobretudo pela criação de “autor”, ou pelo menos de “personagens de um autor”), a que a crítica Jessie Bi havia chamado de profaçon, que a autora, especularmente, descreve recorrendo a outro conceito por ela assinado, a de uma plagionomia legítima. Quer dizer, de uma forma simples, a maneira como o “mercado”, de forma legítima, autoriza que uma obra, um estilo, uma voz, procure ser continuada por outros autores que não o original. Para nos atermos à história da arte ocidental, uma vez que outras estruturas civilizacionais e culturais poderão seguir outros passos bem distintos, e até ao longo da história práticas houve que sustentavam a “imitação do mestre”, aquilo que seria considerado um mero plágio, imitação, derivação, pálida sombra, etc. de um ponto originário na literatura, cinema, ou artes visuais, na banda desenhada é vista como uma “nova vida” para as “queridas personagens”. Nem sequer estamos a falar de pastiches, que são exercícios legítimos e sempre de uma distanciação crítica em relação ao original, provocando sempre uma noção de comparação automática. Mas de uma verdadeira “continuidade”, em que, apesar de tudo, se particulariza a “biografia ficcional” das personagens como se fosse verdadeira. (Mais)
A tese central de J. Bi reforça o papel individualista e indivisível do acto criativo do autor, colocando de lado outras possibilidades, mas que certos leitores abusam desde logo em jogos do que Umberto Eco chamaria de sobreinterpretação.  Para Eco, há uma tensão tripartida entre as intenções do autor, do leitor e da obra. A primeira seria, em primeiro lugar mas em última instância, insondável, mesmo que haja acesso ao autor através do contacto directo (a entrevista, o diário, as notas, etc.) e, em segundo lugar, irrelevante, uma vez que o autor não pode circunscrever as potencialidades interpretativas da sua obra pelos leitores empíricos contemporâneos e vindouros. Todavia, a intenção do leitor não poderá ser vista tampouco como o Graal da interpretação, o que levaria não apenas a uma atomização da possibilidade da argumentação em torno das múltiplas (infinitas, potencialmente) interpretações, como ao mesmo tempo diluiria a própria responsabilidade do leitor em ater-se aos parâmetros factuais e materiais do próprio texto, levando assim a eventuais distorções impossíveis (o exemplo de Eco é ler A imitação de Cristo como se fosse um escrito de Céline). Resta, portanto, a “intenção da obra”, entendo esta, ou o “texto” como “um dispositivo concebido para produzir o seu próprio leitor modelo” (o qual não coincide nem com um leitor empírico concreto nem com uma única e unívoca interpretação, mas com uma interpretação que circularmente se apoia a si mesmo com e pelos elementos presentes no texto).

Portanto, esta noção, corroborada por Bi, de que uma obra pertenceria tão-somente ao seu autor original é, em si mesma, e desde logo, uma construção ideológica que mereceria a sua própria discussão, vis-à-vis “a morte do autor” e a sua “recuperação” conforme as lições de Blanchot em Michel Foucault tel que je l’imagine: “O sujeito não desaparece. É a sua unidade, demasiado determinada, que a tal se submete, pois aquilo que suscita o nosso interesse e pesquisa é o seu desaparecimento (a saber, esta nova forma de ser que é o desaparecimento), ou melhor ainda, a sua dispersão que não o aniquila, mas que nos oferece, em relação a ele, uma pluralidade de posições e uma descontinuidade de funções”.
A máquina editorial Dargaud continuará a garantir a publicação de um título por ano da série com as personagens originalmente criadas por Edgar P. Jacobs, e cuja “sobrevida” tem sido assegurada por várias equipas de há vinte anos a esta parte, de certa forma como o modelo central e canónico de Spirou, se bem que esta personagem, recordemo-nos, é uma marca registada da sua própria editora, como é prática do mainstream norte-americano. No caso das personagens britânicas do autor belga, estamos a falar de um contrato entre os herdeiros e a máquina editorial que produz essa possibilidade. Haveria muito a debater, equipa e equipa, livro a livro, sobre as diferenças e semelhanças entre Jacobs e os seus “plagiadores autorizados”, mas remetamos novamente àquela “pluralidade de posições” e “descontinuidade de funções” apontada por Blanchot para prever que, em parte, muita da atomização temática, de tratamento e de diálogo com os tempos contemporâneos, estavam desde logo previstas na própria lavra do autor original.

Confessemos, desde logo e como justificativa, que não nos subtraíamos aos leitores mergulhados numa visão nostálgica, regressiva, quase de objecto transicional, em relação a Blake & Mortimer. Esse fantasma existe, não pode ser negado e exerce um fascínio que suspende quase sempre as defesas de uma leitura mais crítica que deveria levar ao seu corolário principal: a não-leitura. Todavia, apesar dessa moldura de consumo consciente, de mergulho voluntário numa “comodidade” que fala a um passado que nunca existiu (um espaço de leitura infantil em que Jacobs não morreria e as suas personagens continuariam a mover-se), o que importa acima de tudo é não permitir que essa nostalgia tolde a compreensão de que não apenas estes novos produtos não apenas contribuem pouco para uma nova pesquisa da linguagem da banda desenhada, como confirmam que a própria criação de Jacobs se encontra ancorada de tal forma no seu contexto de produção que corre o rico da irrelevância junto a um novo público.  

O testamento de William S. reúne mais uma vez a equipa de Sente e de Juillard, os quais, a um só tempo, asseguram os elementos-chave da série original, como também providenciam ligações directas aos álbuns pós-Jacobs (deles e alheios), conforme o programa da tal “sobrevida ficcional” das personagens. Nesse sentido, estamos longe de (alguns) dos projectos que o contexto da banda desenhada comercial franco-belga tem produzido contemporaneamente com os “Personagens x de” (que tem ocorrido com Spirou, Mickey Mouse, Lucky Luke e outros), providenciando uma liberdade material e temática (com balizas, certamente) com apenas uma matéria mínima comum de partida, enveredando antes por um assegurar a “máquina normativa”. Todavia, e pondo de lado a ideia mais básica de “não serem Jacobs”, é provavelmente nas suas próprias fragilidades que o livro aponta algumas possibilidades interessantes de renovação.

A intriga deste volume recolecta toda uma série de elementos provindos de sectores variados do policial. Por um lado, há dimensões advindos do “locked room mystery”, até de forma literal ou ao quadrado. Por outro, a aura do mistério leva igualmente a uma espécie de périplo em busca de pistas que, resolvidas, desembocam nas pistas seguintes mobilizando as personagens. Mas acresce a isto a tensão que nasce das várias forças antagonistas em busca do “prémio”, assim como todas as linhas secundárias que se vão desenvolvendo e que, de uma maneira ou outra, estão ligadas ao novelo central. Em si mesma, a intriga é tão pífia quanto útil à organização dos acontecimentos. Acrescendo a toda uma série de teorias mais ou menos sérias, aqui suportadas e ali fantasiosas ao máximo, de que Shakespeare não terá sido o verdadeiro autor da sua obra teatral e poética, um grupo de burgueses endinheirados e cultos vêem-se defronte um mistério com séculos, que os lançaria na hipotética identidade real do Bardo. No caso, tratar-se-ia da colaboração entre um nobre italiano emigrado na Inglaterra isabelina e um poeta e actor sem grandes meios. Juntando a cultura ao talento poético, o instrumento físico do actor no palco ao imaginário erudito da Europa, essa “criatura de duas cabeças” criaria toda a obra do Folio. O mistério central deste livro seria a descoberta de um “testamento”, que não apenas apresentaria a última peça escrita por este compósito “William S.” como ainda revelaria essa mesma identidade de forma indelével. Para aumentar a carga de acção do livro, esta revelação poderá ser coroada com um prémio, instituído no século XIX, para aplacar mas resolver de uma vez por todas as rivalidades dos dois grupos que se opõem: os que crêem na autoria de Shakespeare ele mesmo, e os que têm teorias divergentes, coincidentes com aquela apresentada no volume.

É natural que os autores não mergulhem em demasia nos elementos que poderiam defender esta teoria de uma forma acabada. Estamos no campo da ficção, logo, a utilização reduzida e enviesada de dados e citações, uma apresentação sofismática dos mesmos no interior de uma narrativa unilateral, não perfazendo boa ciência historiográfica e literária, é pasto para a história que se quer contar. Não deixa de ser algo superficial a maneira como as pistas são lançadas e depois resolvidas, sempre com uma celeridade digna do Reader’s Digest, e não propriamente pela hermenêutica que com efeito está sempre em curso. Essa dimensão apenas tem uma ilusão de “espessura” pela constante introdução de cenas históricas, quer do tempo do “verdadeiro Shakespeare dual” quer de outros momentos, mas raramente surgem como interrogadoras da própria formação da história alternativa. Mas enfim, talvez seja um “efeito Dan Brown”, em reduzir as grandes obras artísticas da traição europeia a “mensagens ocultas” que depois os “decifradores-detectives” vêm revelar, e cujas soluções são sempre mais débeis do ponto de vista filosófico e estético que as tais obras que cobririam…

O problema é que esta intriga emerge, ocorre e é resolvida quase à margem dos dois protagonistas da série, tornados actores secundários (como já havia ocorrido em títulos anteriores). Sobretudo Blake, que fica relegado a um papel policial marginal, atreito a uma das linhas secundárias. Mortimer acaba por servir tão-somente de apoiante e condutor de Elizabeth Summertown, a verdadeira heroína “intelectual” da aventura, em companhia e colaboração com a sua mãe, Sarah, que já surgira pelas mãos dos mesmos autores. Isso leva a que haja ainda mais uma linha (uma hipotética ligação sexual entre Mortimer e Sarah e a implicação da filiação). Haverá aí um jogo de espelhos e deslocação que já aponta a um aspecto interessante a nosso ver.

Além disso, não deixa de ser curioso que seja esse enigma da identidade dual do “Shakespeare”, afinal, o âmago temático do livro, que parece precisamente jogar contra as teorias de Jessie Bi em relação à tensão entre “autor original e uno” em Jacobs e a possibilidade de uma fantasmática substituição por uma equipa de argumentista e desenhador, aqui, Sente e Juillard. Poder-se-ia dizer que a frescura da ingenuidade e estranhezas históricas do original estão ausentes, pois afinal, não havendo qualquer dimensão metatextual (ou muito reduzida) nos dois autores contemporâneos, logo sem qualquer distância irónica do período do pós-guerra britânico, não apenas dá azo a contradições políticas na série, como a uma fraqueza maior destes autores (pois não têm a desculpa da inscrição histórica de Jacobs). O efeito de pastiche é diluído pela introdução de alguns aspectos de “avanço no tempo” – a própria existência da filha de Summertown, a introdução de certos modelos de carros, as referências a culturas eruditas e populares do início dos anos 1950, etc., o que não invalida a existência de anacronismos, que farão o deleite dos caça-borbotos.

A parte visual é bastamente competente sem ser brilhante. Juillard é um autor com um currículo suficientemente forte quer no campo da mais clássica das prestações (Les sept vies de l’épervier) como na da novela contemporânea (Le cahier bleu), mas não consegue manter nem a elegância das suas personagens vivas, surgindo aqui algo empedernidas, como não segue os mesmos sistemas de complexas construções compositivas de Jacobs, antiquadas mas equilibradas (como R. Chavanne havia tão bem lido). Há uma notória tentativa de imitar posicionamentos das personagens, os efeitos de referência como objectos realistas e históricos, a linguagem corporal das acções, mas mesmo na teatralidade anti-natural de Jacobs havia uma perfeita osmose com os instrumentos gráficos estilizados (os claros-escuros, o uso de manchas de cor plana, as distorções quando necessária, o equilíbrio entre a pormenorização doentia dos cenários e o sumário visual) e o realismo mais tranquilo e natural de Juillard acaba por não estar suficientemente solto. Não há um trabalho suficiente de “digestão” (por imposição editorial?), não se tornando estes o Blake & Mortimer de Sente e Juillard, mas os de Jacobs tentados pela dupla.

Mas a tal (re)distribuição dos papéis não deixa de ser um movimento inteligente. Talvez. Como se os próprios autores da continuidade-pastiche da série se apercebessem da irrelevância destas personagens não apenas no novo tempo do seu universo diegético como igualmente no nosso próprio tempo de leitura. Há portanto uma subtil mudança do protagonismo intelectual e cultural de Mortimer para Elizabeth, tal como a há na acção física de Blake para Salman, o criado do Marquês italiano, em cujas caves do palácio o enigma havia começado. Até Olrik surge para não fazer nada. Na prisão, e jamais saindo dela, há como que uma tentativa de o retractar como Moriarty havia sido descrito por Conan Doyle, a ideia do génio do crime no centro da teia mas tudo controlando através de pequenos gestos. Porém, no fim, parece simplesmente um homem pateta que pouco pode fazer ali fechado, e os seus esbirros, cá fora, surgem um pouco como os brutos que são sem qualquer poder no desenrolar da acção… É o problema de estar preso a um universo fechado, e não se conseguir expandi-lo suficientemente para longe do original.
Leitura simples e passageira, não estamos perante a revitalização das personagens ou sequer do género, mas penso que os próprios Sente e Juillard saberão que essa é uma missão gorada desde a génese. Talvez por isso elegeram aqui uma intriga que apenas cria a ideia de ser algo profunda, mas que leva a pouco. Uns passeios pela Europa, uns bustos partidos (ecos de Doyle, naturalmente, do conto “The Adventure of the Six Napoleons”, há pouco adaptada igualmente na série televisiva Sherlock), uma “múmia” (eco de Hergé, triplo, da A orelha Quebrada, O tesouro de Rackham o terrível e ainda As sete bolas de cristal)… Mas talvez sejam estes os gestos que preparam o terreno para as reinvenções necessárias nestas personagens comerciais. 

O tal leitor nostálgico e acrítico, tirará partido de reencontrar estas personagens de copo na mão a discutir pormenores dos magníficos diálogos de Romeu e Julieta, mas o outro que procura uma contextualização mais premente no nosso tempo e na própria desenvoltura da banda desenhada pergunta-se quando veremos Blake a confrontar-se com subalternos de etnias não-saxónicas e Mortimer à procura do melhor plano para uma operação à próstata…

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume, assim como do envio dos ficheiros de ambas as capas alternativas. Estas permitiriam igualmente um pequeno ensaio de interpretação: uma delas mostrando uma cena que não tem lugar no livro, a outra quase apresentando, em enigma visual, a própria matéria do livro, incluindo o nível da discussão autoral a própria série.   

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