6 de janeiro de 2017

Repeteco. Bryan Lee O'Malley (Companhia das Letras)

Depois do sucesso estrondoso, a nível comercial mas também crítico, de Scott Pilgrim (para o qual terá contribuído sobremaneira a adaptação cinematográfica exemplar de Edgar Wright, tendo nós falado de ambos anteriormente), O'Malley parece ter querido trabalhar temas um pouco mais graves, sem abdicar porém do seu registo visual de “mangá-via-Ocidente”, numa espécie de linha clara, aqui ainda mais sublinhada pelo uso de cores planas para a maior parte das superfícies, gradientes nos momentos certos, linhas coloridas para cenas específicas, e um equilíbrio exímio entre a abordagem estilizada, os momentos chibi, e os pormenores realistas e pormenorizados. Seconds, ou na tradução aqui lida, Repeteco, reitera um tema recorrente do autor – a personagem ligeiramente deslocada de uma certa ideia de “normalidade”, mesmo que dentro de um contexto onde todos afirmam diferenças dessa suposta “norma”, a qual acaba muito diluída. No caso, trata-se de uma jovem chefe de cozinha, Katie, embrulhada numa complexa encruzilhada da abertura do seu novo restaurante, as suas relações profissionais e amorosas e, o que perfaz o cerne da intriga, o seu encontro com uma dimensão fantástica. Nesse “crescimento”, quase faria pensar em Jeff Smith, mas onde Bone é uma obra quase perfeita e RASL menos conseguida, por ser um salto que se move entre géneros mas não entre concentração dos instrumentos, a relação entre Scott Pilgrim e Seconds é a de um desabrochar de uma linguagem interna. (Mais) 

Com mais de trezentas páginas num formato conciso (bem distinto da saga mais alargada e folhetinesca da personagem mais famosa), o autor permite-se a criar ambientes de forma paulatina e completa. Há “espaço”, portanto, e usado da melhor das formas, para estabelecer as personalidades de todos os intervenientes de maneira clara, inclusive a do próprio restaurante, que se tornará uma personagem por direito completo. E nenhuma das personagens é particularmente perfeita. Bem pelo contrário, e sobretudo a protagonista, é construída com todos os defeitos de uma pessoa real. Egoísta, por vezes mesquinha, confusa, impulsiva. Quando a dimensão fantástica entra em vigor, é feita de forma consistente e num crescendo sempre pertinente. Essa dimensão tem a ver com os espíritos do lar (precisamente como os lares e os penates latinos), com quem Katie entra em contacto directo, e uns cogumelos mágicos que permitem a Katie “corrigir” acontecimentos passados e tentar linhas de desenvolvimento diferentes. Todavia, como se espera, a possibilidade de corrigir torna-se uma solução recorrente, e onde superficialmente essas correcções parecem funcionar, elas não apenas se revelam desastrosas noutros aspectos como o seu uso repetido levará a consequências cada vez mais catastróficas.

Repeteco não deixa de seguir uma linha narrativa algo clássica, tradicional, até, do conto moral folclórico ocidental. As roupagens hipster das personagens (inclusive a ideia de cuisine d'auteur) são como que um factor de actualização desses temas, confirmando a possibilidade do seu uso. Mesmo no interior de alguns desenvolvimentos expectáveis ou elementos-chave que reconheceremos de outros contos há sempre uma dimensão de interesse. Isto é, mesmo o emprego de clichés serve um propósito ulterior e elegante. Talvez essa actualização deva ter até menos importância no aspecto do contemporâneo do que na compreensão de que somos ainda os mesmos humanos de há séculos (reflectidos nos tais contos tradicionais). Todavia, o charme de O'Malley estará menos nas surpresas diegéticas ou na suposta originalidade total do que no tratamento tranquilo e inteligente destas mesmas personagens. Mesmo no seu registo quasi-infantil, de bd de consumo automático, elas vibram com uma vida própria, identificadas, e consequentemente capazes de despertar uma recepção emotiva junto aos leitores. De facto, muitas das personagens farão lembrar um registo à la Maurício de Sousa, se essa produção integrasse com mais sabedoria e sofisticação visual elementos de outros sectores da banda desenhada.

Uma dimensão que sempre achámos divertida na recepção de alguns livros é julgar a “sofisticação” ou “cultura” de um autor ou autora pela quantidade de referências explicitamente citadas nos seus livros. Quando se citam referências literárias, artísticas ou cinematográficas (e as mais das vezes dentro de um universo relativamente restrito de referências), ou se expõem teorias científicas, etc., isso é o único elemento directo dessa erudição. Tudo o resto, desde a forma como as personagens se comportam ou falam, ou que podem demonstrar uma capacidade de observar e mimar os comportamentos humanos, à maneira de resolver conflitos internos e emocionais ou criar zonas de incerteza em torno dos conhecimentos, etc., é varrido. Que é precisamente onde se encontram as forças do autor coreano-canadiano. Ora, um dos aspectos curiosos é que O'Malley povoa todo o livro com “pistas”, digamos assim, dos elementos culturais que influenciam a estrutura e acção de Repeteco, mas sem nunca expor essas mesmas ideias como explicações directas dessas mesmas estruturas e acções. Por exemplo, numa das conversas entre Katie e o gerente do restaurante, este último fala dos kalpa, uma medida de tempo da cosmologia hindu-budista que equivale ao éon ocidental. Essa referência não serve para grande coisa de maneira imediata, apenas “abrilhanta” essa conversa. Porém, a sua citação abre um espaço imaginário na narrativa que nos permitirá depois integrar todos os acontecimentos fantásticos que testemunhamos, que implicam linhas divergentes do desenvolvimento da causalidade, de universos paralelos, para percebermos que essa fantasia, sendo a coluna vertebral do livro, serve tão-somente para reforçar a questão da identidade das suas personagens, o seu centro nevrálgico. Noutro momento, essa discrepância é até jogada, quando a personagem “aprende a sua lição”, para ser confrontada que essa lição estava desde a partida explícita numa dessas fórmulas feitas de motivação, num poster do escritório.

É nesses cruzamentos adiados, por assim dizer, que a maturidade de O'Malley transparece, acima de tudo. Mas a nível formal isso é igualmente visível. A composição das páginas, com uma generosa margem inferior que “arruma” as vinhetas, dispostas estas em complexas variações de pranchas semi-regulares, tirando partido de sub-divisões das secções, leva a uma fluidez e ritmo, quando necessário, tão intensas como transquilas.

Traduzido de Seconds, o próprio título em português, Repeteco, aponta para o registo de linguagem oral, familiar e até de gíria que atravessa toda a tradução. Em alguns momentos, poderá provocar uma pequena distância, uma vez que este nível de linguagem tende a ser rapidamente substituído ou, no caso da recepção portuguesa (ou, quem sabe, mesmo no interior do Brasil entre as várias regiões), a ser mesmo incompreensível (expressões como “massa!”, “brechó”, “noiada”, etc., podem não ser inteligíveis juntos a todos os falantes). Mas ao mesmo tempo, lê-lo desta forma traz igualmente uma urgência e até uma elegância desarmante e totalmente apropriada a este conjunto de personagens.

No fundo, Repeteco é sobre segundas oportunidades, mas acima de tudo é uma forma de compreender que é das primeiras oportunidades que devemos tirar o máximo partido.
Nota final: agradecimentos à editora pela oferta do livro.   

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