17 de junho de 2024

O homem que sonhou o impossível. Mário Freitas e Lucas Pereira (Kingpin)


Este livro, apesar de curto, convida o leitor a ler para além dele, uma vez que mexe com todo um imaginário caro ao mesmo, já acólito desse mundo, pelo que é muito difícil lê-lo de forma estritamente textual, atendo-nos aos seus elementos presentes. Apesar da roupagem fictícia, ele cria elos imediatos com o mundo real, e as respostas a esses estímulos expandem a eficácia do título. Aparentemente, tratar-se-á da história de um velho artista de banda desenhada, chamado Jack King, vivendo num lar de terceira idade, onde outros colegas de profissão também passam os dias. Mas um mistério oculta-se na biblioteca do lar, que despertará um último e grande conflito, o qual resolverá uma crise de décadas e trará a ideia, talvez, de uma possível redenção.


Temos aqui uma história relativamente contida em termos de espaço e tempo, em que seguimos uma personagem construída pelo olhar dos outros e um passado que não testemunhámos, mas que exerce, tudo isso, um peso suficiente para compreendermos a necessidade e a capacidade de Jack em aceder novamente aos seus “poderes de criação”, para se libertar da canga negativa do passado. Vemo-lo angariar o apoio de uma nova personagem – um jovem e novo funcionário do lar, Mike –, cuja “ignorância” nos permite a exposição dos factos, a compreensão dos seus companheiros de fortuna e, finalmente, o “combate” final contra o antagonista, sob a forma de um anterior funcionário, Martin, que tinha como responsabilidade cuidar da biblioteca, mas a acabaria por “desarrumar” e, depois, já num ambiente de fantasia, a sua fusão com uma misteriosa entidade, Bolt Bisley.


Todavia, tornar-se-á muito difícil para os leitores, tornados fãs dos autores-agora-personagens de Impossível, de se desligarem das suas paixões, que colorirão a leitura desta história. É que a razão da sua atenção (a sua publicidade, a sua discussão, a sua fortuna) assenta completamente naquilo que usualmente se chama de “ovos da Páscoa”, ou “Easter eggs”, isto é, piscadelas de olho e referências menos ou mais disfarçadas que criam elos de referencialidade, jogos de significado para os iniciados numa cultura determinada, ou caminhos de intertextualidade que enriquecerão a interpretação daqueles que possuem a chave. Acima de tudo, claro, todos os jogos mais ou menos óbvios do roman à la clef que se estrutura nas páginas – isto é, a identificação dos nomes das personagens e suas correspondências a criadores reais afectos à Marvel da década de 1960, como Jack King sendo Jack Kirby e Martin-Stan Lee (Bolt Bisley-Walt Disney, mas isto referindo-se à aquisição de 2009), e ainda a presença de outros autores históricos como Wally Wood, Steve Ditko ou Bill Everett. As tais piscadelas multiplicam-se de várias maneiras, por vezes algo cómicas, como o facto de Everett a ver os seus queridos peixes, referência oblíqua à personagem que havia criado em 1939, Namor, o Príncipe Submarino, para a companhia Timely Comics, a percursora do que se viria a tornar a Marvel, anos mais tarde. Outra é a transformação da prancheta do estirador velho (e mítico) de Kirby transmutando-se numa prancha de Surfista Prateado na qual o próprio Jack se transforma (com efeito, pestaneje-se e essas referências diluem-se, já que são tratadas num par de vinhetas, sem apoio textual, pelo que acredito serem “invisíveis” ou “incompreensíveis” para os não-iniciados).




Não se tratando de uma biografia, de forma alguma, nem querer poder ser lido como uma “verdade”, há porém toda uma regra de leitura desta aventura como homenagem, espelho e discursividade sobre uma justiça em torno da criatividade e liberdade de Kirby e os seus companheiros artistas, num “universo alternativo” em que a vida de todos eles se prolongaria, em relativa saúde, alegria e companheirismo. Mas eles vivem aqui, contra, isso é claro, a aparente figura de “apropriação, usurpação e distorção” das histórias dos artistas, protagonizada por Stan Lee, e mais tarde, a sua comercialização (vista como mais selvagem, primária, instrumentalizadora) pela (empresa) Disney.


Desta forma, O homem que sonhou o impossível inscrever-se-á numa série de outros títulos que transformaram a cultura da banda desenhada na matéria da sua própria narrativa, para bem ou para mal. Do ponto de vista “positivo”, digamos assim, pensamos em Hicksville, a magnífica fantasia de Dylan Horrocks, de 1998, em que se tematizava a existência de bibliotecas ocultas com as maiores obras-primas da banda desenhada que todos os famosos criadores jamais teriam tido a oportunidade de criar. Uma vez que não seria possível citar sequer os títulos correctos de Kirby para a Marvel, DC ou outras produtoras, a biblioteca está cheia de trocadilhos, mas que não nos permite entender se seriam as versões “genuínas” desejadas pelo autor, ou pura e simplesmente edições do que existe no nosso mundo. Também poderíamos citar a biblioteca de Lucien (de Sandman), mas o que importa sublinhar é a existência “paralela” de um mundo em que veríamos realizada a felicidade absoluta de autores que, na realidade histórica, tiveram desfechos amargurados ou mesmo trágicos.


Já de um ponto de vista menos interessante, penso em O céu cai-lhe em cima da cabeça, álbum de Astérix criado somente por Uderzo, em que se tematizava, de forma algo básica, genérica e até mesmo ignorante, a banda desenhada franco-belga (na figura dos gauleses) com a americana e japonesa (com a personagem Toune, o clone do super-homem, etc.)... A máquina composta Disney-absorvendo-Marvel do combate final, como claro representante do novo empório, tematiza as mesmas preocupações, mas acaba por ser uma solução esquemática de algo mais completo, mais matizado e que em nada corresponde a uma visão maniqueísta e absoluta...


No fim, o livro é uma espécie de mini-diatribe contra uma certa percepção social, distorcida, de um público mais genérico, menos atento e nada passional em relação à matéria-prima em questão – as bandas desenhadas em si – e que creêm ser Stan Lee o grande arquitecto da Marvel como um todo e, provavelmente, ignorando sequer os nomes de Kirby, Ditko, Everett e Don Heck, etc.


É aqui que temos de entrar na matéria “histórica”. O pomo da discórdia tem a ver não com o percurso profissional, longuíssimo e variado, de Jack Kirby (que passou por cartoons, tiras cómicas, imitando trabalhos famosos da altura, a invenção com Joe Simon do Capitão América, a fundação de um estúdio com esse escritor, dando origem aos chamados romance comics, pesquisas noutros géneros e indústrias, etc.), mas sim a sua fase de regresso à Timely Comics, agora Marvel. Numa primeiríssima fase, Kirby dedicou-se ao género dos monster comics (onde seriam utilizados nomes tais como “Magneto”, “Groot” e “Hulk”, mais tarde reutilizados de forma mais famosa) e alguns títulos de westerns ou ficção científica, este misturado com fantasia, horror, etc., que seriam uma espécie de cadinho negociando as tendências então contemporâneas mas preparando o futuro dos super-heróis (com efeito, é nas páginas de Tales to Astonish, Strange Tales e Journey into Mystery que surgirão, em números avançados, algumas das agora famosíssimas personagens). É nesse regresso que ele se encontra com Stan Lee, o qual, graças à sua relação familiar, havia tido uma posição de editor e argumentista desde 1939, ainda que numa indústria que não adoraria, e esperou, durante largos anos, ser uma etapa para algo mais lucrativo e prestigiante. Seja como for, não podemos esquecer que Kirby era já um veterano, com uma larguíssima e variadíssima experiência neste território nos anos 1960. Dito isto, todavia, não significa que o ligeiramente mais novo mas quiçá menos experiente Lee não pudesse trazer elementos novos para a lavra do próprio Kirby, e até inovadores.


Nesta relação de trabalho, rapidamente surgiria uma forma de trabalhar que, não sendo inédita, era particularmente produtiva para uma editora (publisher) que precisava de fazer a maior quantidade de salsichas possível. Quer se vendesse x de um título ou y de outro, o que interessava era garantir um fluxo de capital constante. A fórmula era simples: propunha-se uma premissa, uma storyline, meia-dúzia de elementos, que poderiam ser propostos pelo editor (editor) Lee, por vezes, apenas uma única palavra, o nome de um monstro, a denominação de um novo vilão, e os artistas utilizavam isso para burilar a história completa (isto é, não apenas o design das personagens e os desenhos finais, mas toda a essência do storytelling visual, o que inclui o agenciamento das transições entre as vinhetas, a dinâmica da acção, as descobertas de virar de página, o arco dos eventos, o impacto emocional das expressões, etc.) e depois, de novo, o editor acrescentava as linhas de narração e diálogos – muitas vezes, se se verificar com atenção, algo redundantes e dispensáveis face às claras imagens (nas histórias do Homem-Aranha de Ditko isto é notório). Isto é explicado pelo próprio Lee, que nunca disse entregar argumentos completos.


Recordem-se que, nesta fase, anterior ao surgimento do Quarteto Fantástico, a Marvel era uma companhia que publicava histórias soltas numa fiada de títulos distintos. Não existia continuidade entre números de um mesmo título e nenhum storyworld partilhado. Mais, a companhia estava mesmo em apuros económicos imediatamente antes dessa criação em particular. Portanto, não pode haver dúvida nenhuma de que o surgimento dessa “primeira família”, seguida de imediato e em sucessão febril – verifiquem as datas, é no espaço de uns dois anos! - de novas personagens (Hulk, Homem-Formiga, Homem-Aranha, Thor, Homem de Ferro, Vespa, Doutor Estranho, os X-men, etc.) e a repescagem de outras (Capitão América, Namor e, de certa forma, o Tocha Humana), e sobretudo a sua convivência no interior de um mesmo espaço fictício (a Nova Iorque da Marvel), que garantiam crossovers entre as personagens, e nem sempre como aliados, que se verificaria uma “revolução” de estratégias narrativas, comunicação da banda desenhada (a dimensão do correio, por exemplo, foi fulcral) e, claro, alguma recompensa financeira.


É claro que, com a distância, é extremamente difícil destrinçar a responsabilidade “absoluta” da criação desta ou daquela personagem, ou desta ou daquela narrativa, intriga, resolução, mecanismo, objecto, etc. Com o sucesso tardio e recente, nesta nova fase cultural em que os “nerds” venceram (quem, no seu total juízo, diria que existiriam séries de televisão, filmes e romances com grande sucesso crítico e de vendas sobre orcs, dragões, guerreiros espaciais, monstros, super-heróis, etc., que não somente para um nicho de “alienados”, há uns 20 anos?), dos filmes da Marvel, e sobretudo devido aos cameos do próprio Stan Lee nesses mesmos filmes (se bem que, recordemo-nos, foi fora da MCU que essa ideia se instituiu, com Mallrats de Kevin Smith), criou-se uma ideia genérica junto aos noobies de que Lee é o “pai” solitário e genial de tudo isto. E isso não é de todo verdade. Todavia, não é necessário deitar-se fora o bebé com a água do banho. Lee era, com efeito, um produtivo “idea man”, instilou a ideia de “crises banais” em personagens extraordinárias, elevou a vulnerabilidade e até a relutância destas personagens em serem “heróis”, o instilar da perspectiva teen angst, assegurou a consistência do mundo fictício. Não se pode negar ter sido um arguto escritor de diálogos bombásticos e, acima de tudo, um hype man excel... excelsior.


O autor Barry Windsor-Smith, no documentário Jack Kirby: Story Teller (2007), emprega uma expressão acertada em relação a Lee, chamando-lhe “instigator”. Mas sublinha a dinâmica da colaboração, e de como a criação não seria possível individualmente, chegando mesmo a citar McCartney e Lennon na frase. A mim parece-me acertado, havendo, guardadas as distâncias e circunstâncias desta outra indústria, que se faça tal comparação, sobretudo se se dividir a ideia de “visão” e “impulso”, isto é, por um lado, a capacidade inventiva do que se pretende criar, toda a pujança e força e capacidade de dar forma e expressão a essa vontade (imagine-se que apenas as páginas do Quarteto Fantástico tinham sido feitas por Kirby, sem nada mais, e já teríamos aí matéria de regozijo magistral), mas, por outro, a necessidade de garantir uma produção oleada e rítmica, e, acima de tudo, que vendesse. E aí Lee era imparável. E se isso não correspondia à verdade, o que interessa? Alguém se põe nos bicos dos pés para alardear ser o “décimo-sétimo” na lista de vendas, ou ter ficado em “quinto lugar” num concurso? Não é o hype um ingrediente importante neste círculo de criação, ainda hoje, e entre nós?


Mas as questões que levariam Kirby a sair da companhia Marvel estariam sobretudo associadas à compensão financeira e à dose de respeito que o artista sentia não serem possíveis de conquistar, apesar da sua insistência e, francamente, à revelia da dedicação hercúlea que o artista dava a essa empresa. É muito bonito ver o nome nos créditos – prática que, no mundo dos comic books, o próprio Kirby e Joe Simon haviam instituído nos anos 1940, mas que nem sempre se verificaria, e apenas nos anos 1960 começaria a tornar-se prática corrente na Marvel – mas melhor ainda é poder receber um pagamento proporcional aos lucros do produto que se cria: marxismo básico, estúpido! Um bom ponto de partida para essa discussão seria o livro de Mark Evanier, King of Comics, de que falámos há quase vinte anos, mas quaisquer dos artigos de The Jack Kirby Collector providenciará sempre uma pequena pérola das circunstâncias do trabalho, quer técnicas quer morais (exemplo: um artigo sobre a autoria da "trilogia" de Galactus no #9, por Charles Hatfield)... Seja como for, a vida na DC não seria muito melhor. Fruto da forma como se contratava o chamado “work for hire”, qualquer das suas obras não lhe davam direito de ver devolvida a arte original, não haveria partilha do copyright/direitos de autor (coisas diferentes, mas simplifiquemos), e tampouco alguma percentagem sobre as vendas reais.


Naturalmente, não será esta meia-dúzia de parágrafos que fará a história toda do que, a propósito de The Hand of Fire, uma abordagem crítica de Kirby por Hatfield, chamámos dos mitos do “ele disse que”, mas compreendemos que Impossível é uma narrativa que respira a sua integração num entendimento dessa história a partir d(e um)a perspectiva lesada, sofrida e angustiada de Kirby face à maneira como sentiu ter sido tratado pela “indústria”, transformando Marvin/Lee na figura tutelar dessas feridas e, mais, na de Bosley/Disney como uma máquina ainda mais afastada e aquisitiva que tritura qualquer produto.


A paixão de Mário Freitas por esta matéria e particularmente a figura (e imaginação, verve, produção, arte, mundos) de Kirby é consabida, expressa nas várias facetas públicas do autor. Sem negar a entrega a toda a sua obra criativa, não pode haver dúvidas de que Impossível reunirá de uma forma mais concentrada e eléctrica a genuidade desse mesmo interesse, conhecimento e paixão. A própria linguagem torna-se mais escorreita, imediata, justa, as acções mais consequentes na prossecução da redenção final. É uma narrativa em que se destilam essas ideias e posicionamentos da “questão”, traduzidas numa história relativamente linear, certeira, e cuja urgência é mais sentida que esculpida, já que certos episódios são algo rompantes e mágicos, sem preocupações de maior por se tornarem “lógicos” ou “redondos” em termos de narratividade. É uma sucessão rápida de quadros, episódios e cenas que têm a bateria das suas referências para brilharem.


O livro apresenta-se num formato tablóide, em si mesmo mais uma homenagem às Treasury Edition da Marvel da segunda metade dos anos 1970 (se bem que essas oscilavam entre as 80 e 90 páginas de história), com toda uma série de brilharetes de design gráfico que embelezam Impossível (inclusive duas capas distintas). Jamais podemos esquecer que a escolha de formatos não é tão-somente uma escolha financeira e comercial, mas de protocolos de leitura. Mais, toda a matéria paratextual (capa, contracapa, badanas, guardas, etc.) está já a concorrer para o adensamento diegético.



O desenho de Lucas Pereira oscila entre o caricatural e o mainstream, para, num momento, assegurar uma fantasmática vibração da mesma energia “cósmica” à la Kirby, ainda que com influências de um certo grau de estilização japonesa, e momentos de maior paródia. Espraiado em composições ora densas ora labirínticas (mas legíveis) buriladas por Freitas, e procurando uma variedade de transições, planos e escolhas cromáticas que se pretendem significativas, é um livro que precisa de ir sendo decifrado com alguma atenção, ainda que também convide a uma leitura frenética. De resto, parece-nos que é esse, de resto, o legado deixado por Kirby: não uma perfeição de filigranista ou de um qualquer crivo académico (o desenho académico, a escrita literária, a coerência interna, etc.) mas antes a catadupa enérgica de ideias e acção, o dinamismo das figuras, e o prazer da navegação visual nas páginas e potencial cosmogónico da banda desenhada. Por alguma razão terminamos Impossível (tornando “possível”) com um espaço sideral pejado de naves-ideias dos grandes criadores desta arte e outras irmãs. Com Kirby, faz-se luz.

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