Sexopatia é, acima de tudo, um pequeno catálogo. Ainda que surja num livro de capa dura, com a nobreza dessa natureza, talvez tivesse sido mais a propósito se tivesse surgido num mero caderninho de papel couché, com dois agrafos e se pudesse confundir com toda aquela chusma de publicidade que faz hoje as vezes de “correio” nos nossos lares. Algo que viesse misturado com o folheto do supermercado desta semana, os panfletos de imobiliárias insistindo que têm clientes para a nossa casa, ou a revista da junta ou da câmara municipal, mensal, em que surgem em todas as páginas fotografias so senhor presidente nas suas várias acções de permanente campanha. Por outras palavras, na incessante pornografia gráfica e colorida a que nem sequer votamos um minuto do olhar. A menos que... a menos que a fantasia nos permita vasculhar essas páginas em busca de algo que nos alimente sedes e fomes inconfessáveis.
O livro possui 2 secções. A primeira mostra-nos apropriações de pequenos anúncios, ditos “de convívio”, retirados de um qualquer jornal. Colocados em pequenas molduras desenhadas, isolados numa página inteira, leva-nos a lê-los não como um chorrilho sem fim e indistinguível, mas antes como epígrafes, um adágio, um aviso. Ou então, pela pequenez, obriga-nos a uma atenção precisa tal como pedida pelo haiku ou o limerick, o primeiro exigindo de nós uma compreensão da natureza, o segundo pedindo que compreendamos o âmago do humor absurdo. Ao lado, surge um desenho, que pode ou não ser visto como “tradução” e “ilustração” exacta do texto em si. Uma segunda secção apresenta-nos – ainda que com a mesma distribuição texto-imagem – uma inversão, passando a ser as imagens quem domina e puxa pelo significado, de toda uma série de objectos consumíveis, e acompanhados por uma pequena legenda explicativa, por vezes um pouco redundante, quase sempre ancorando (como quer Barthes) uma maior exactidão do propósito. Alguns deles são complexos, outros variações internas do que propõe, e os mais hilariantes são os que se apresentam sem diferença dos objectos usuais (“botão” e “colher”).
Em 1969, Jacques Carelman publicou o seu Catalogue d’objets introuvables, hilariante pastiche absurdo dos catálogos de vendas por correspondência, que ainda circulam um pouco por aí. O autor francês ofertava-nos todo um conjunto de objectos absurdos, inúteis, desde bicicletas para escadas, espingardas com canos sinusoidais para caçar cangurus enquanto saltam, selins-bidé, chapéus-de-chuva para uma família inteira, etc. Existindo apenas em desenhos, eram excelentes metáforas de uma inconformidade fina, subtil, intelectual. Já nos anos 1990, no Japão, Kenji Kawakami, que trabalhava de facto naquele tipo de catálogos, criou toda uma série de objectos, reais, tangíveis, adquiríveis, mas que forneciam “respostas” para problemas que nunca ninguém havia tido: nasce assim toda aquela categoria de objectos conhecidos como chindógu: capacetes dispensadores de papel higiénico, limpa-párabrisas para óculos, máscara para pintar os lábios, ventoinhas para esfriar pratos de massa quente enquanto se come e por aí fora...
A maior parte destes objectos, mas sobretudo os desenhos, e sobretudo se criarem situações objectuais que seriam “impossíveis” no mundo real, criam o que é, em rigor, uma “metáfora visual” (seguindo as lições de Noël Carrol): a co-existência num só objecto (ainda que somente gráfico) de duas realidades, em que o nosso olho não tem de fazer esforço algum para notar ao mesmo tempo. São assim “compossíveis”. Kawakami considerava os seus objectos como “jogos intelectuais para a estimulação dos espíritos”, e Marcos Trindade sublinha soberbamente a questão da “estimulação” neste seu pequeno livro.
Um dos anúncios citados indica, por exemplo, um jovem que atende senhoras, e diz poder providenciar “fantazias também com ou sem amiga lésbica” (sic). Repare-se: no âmago da oferta da fantasia, já se prevê o seu preço de arrependimento e culpa católica, a azia. Mas mais surpreendentemente ainda é o facto de que podemos ter acesso a essa fantasia “sem amiga lésbica”. Essa possibilidade é ainda mais atrativa e potente: sem, eliminar a putativa ainda que possível presença, assegurar antes a ausência da amiga, vai reforçar sobremaneira a própria fantasia. Antes que o leitor indique que esta interpretação é abusiva, e que se trata tão-somente de erros de português, apenas pergunto se é a falta de gramática que impede a liberdade da fantasia.
Quem ler Slavoj Žižek (e.g., The Plague of Fantasies) ou se lembrar dos seus filmes (The Pervert's Guide to Cinema), conhecerá o quase-adágio “temos a palavra perfeita para a fantasia realizada: é chamado de pesadelo.” Em suma, a ideia é que a fantasia não é um anseio por um determinado objecto, mas antes a manutenção da pulsão do desejo que a alimenta. Se a fantasia se realizar, a realidade torna-se absolutamente banal, e nada do nosso ego se transforma (é sempre a mesma “merda”): a fantasia serve para criar uma distância saudável e producente em relação ao real. Só suportamos o real por alimentarmos as fantasias. Logo, aquele anúncio é perfeito nessa assunção.
O propósito de Sexopatia é o riso? Ou a excitação genital? E se fosse ambos em relação ao outro: um riso que nasce de nos apercebermos do ridículo dos genitais e suas ginásticas, e uma excitação sexual que nasce da reflexão de que somos capazes de rir? Algures no livro, apresenta-se uma lata de conserva e uma lata de bebida, ambos com o mesmo ingrediente. Qual? Naturalmente, o maior e mais importante órgão sexual do corpo humano: o cérebro.
Nota final: estando o livro dedicado à minha pessoa, temo que haja uma interpretação genérica e abusiva de que haverá algo na minha experiência ou personalidade que tenha levado o autor a fazer essa associação. Cliente assíduo da leitura dos anúncios? Frequentador de sexualidades mais à mão? Consumidor contumaz de objectos destas fronteiras? Da fama não me livrando, defendo-me tão-somente dizendo que os livros supostamente carregam a verdade, mesmo que sob mantos diáfanos da fantasia.
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