Este pequeno livrinho em acordeão
é a marca de surgimento do primeiro heterónimo português do autor Tiago Manuel.
Num formatinho pequeno, faria recordar uma espécie daqueles foles de postais
que se vendiam há uns anos, junto a monumentos ou paragens pitorescas,
ofertando várias perspectivas ou facetas do que o título apresentasse. Os acrobatas,
se for lido assim, oferece então várias faces de uma realidade hodierna da
nossa sociedade, a de uma classe de pessoas que ocupa a paisagem social e a
tingem com uma cor difícil de lavar. (Mais)
O livro, como muitos outros
projectos do autor, é apesentado como contendo duas partes, relatos, histórias,
etc. Neste caso em particular, não é totalmente claro se essa divisão corresponderá
a uma divisão diegética, a duas direcções distintas de uma mesma ideia. O que é
certo é que parecem existir dois sub-títulos, semi-simétricos, cada qual
apresentado numa das “faces” do fole: “Só os acrobatas sobem ao céu” e “Só os
mestres devem ser imitados!!!”. Mas eles podem ser lidos apenas como pontos de
passagem, articulações de uma narrativa em torno das mesmas personagens. Dizemos
narrativa mas, como na esmagadora maioria dos projectos do autor, estamos a
falar de uma série de quadros que agem por princípios temáticos e tópicos, não
por um arranjo de elementos clássicos de uma história. Há páginas ocupadas
somente por texto, outras por fragmentos de figuras, outras por objectos
banais, e outras ainda por objectos metafóricos, construções por catacrese, mas
menos na busca de uma estrutura à la Mariette Tosel, de colecção, do que de
atomização de um discurso inconjunto, mas não por isso menos coerente.
Uma outra característica distinta
deste volume é um certo grau de heterogeneidade gráfica no interior do
projecto. É óbvio que, no seu programa heteronímico, Tiago Manuel explora desde
logo pontos de partida diversos que influem formas de trabalhar diferentes –
visíveis não apenas a nível da figuração, mas na ocupação do espaço, na
composição visual, nas relações entre texto e imagem e distribuição material
desses elementos, já para não falarmos dos aspectos temáticos. E nalguns casos há mesmo variações em torno
de um tema ou de um método (como no caso das aguarelas de Max Tillman ou nas
padronizações de Terry Morgan). Mas aqui, uma vez que temos recursos ao que
parecem ser materiais “menos nobres” – uso de escantilhões, marcadores de tinta
coloridos, canetas de acetato de ponta grossa – e a padrões cromáticos mais
fantasiosos – excessos de marcas, efeitos de acumulação das cores, repetições
e/ou contrastes de fundos “decorados” – Marcos Trindade parece procurar uma
linguagem que menos teria a ver com uma “melancolia tradicional” do que com
outro traço supostamente típico do português: a “folia”.
De facto, o próprio título remete
de imediato a um contexto circense, lembrando mesmo a dimensão satírica,
caótica, subversiva do “carnavalesco” de Bakhtin. Os assuntos de Os Acrobatas
poderão ser identificados como graves:
a adaptabilidade de uma certa classe de colunáveis da mundanidade (dos círculos
mediáticos, económicos, políticos, talvez, nem sempre é claro, mas Trindade
gostaria que esses fossem entendidos como tendo circunferências fluidas e com –
demasiados? – pontos de passagem), a pedofilia, o compadrio político, os sinais
exteriores de riqueza como sintoma de desequilíbrios na restante população,
clichés que levam a que, como reza a famosa canção de Sérgio Godinho, “Só neste
país é que se diz: só neste país”.
Esse retrato não é directo. Não
há sequer uma palavra ou uma imagem que nos leve a encontrar um indício
indesmentível, uma referência nítida, à realidade portuguesa. Todavia, ela está
lá, como uma sombra. Não fosse igualmente na última página surgir uma
personagem, mais interventiva e agindo no plano visual (o uso de balões de fala
aumenta o grau de participação no “mundo diegético” possível), e cujos traços
físicos recordam o avatar do autor também presente em Sai do meu filme, que
contribui para essa ideia, mesmo que se mantenha de modo tangencial (o próprio
enquadramento da personagem insistiria nesse posicionamento).
Bem-humorado, com desenhos e
situações de leveza, pequenos blocos de pequenas anedotas e descrições tão chãs
de situações reais que se torna cómico pela sua depuração, com lobos-pénis e
Pinóquios-máscara que revelam o que muitos pensam verdadeiramente sobre a arte,
e actos de censura que escondem a autofagia (se não pior) de uma certa “cultura
da cultura” (isto é, tudo aquilo que passa pela “boa cultura” nos círculos
mediáticos de Portugal, a cultura bem comportada, aceitável e que limpa os pés
no tapete), Os acrobatas é
possivelmente o livro menos grave, denso e angustiante do projecto heteronímico
em curso. Quererá dizer assim o menos eficaz no seu gesto? O que menos fere? Algo
que menos peso terá na economia de espelho de verdade? Nem por sombras.
Nota final: agradecimento ao
autor, pela oferta do livro.
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