Se bem que a grande revolução da banda desenhada alternativa
dos anos 1990 já tenha tido o seu momento de maior glória, não apenas no que
diz respeito à própria produção, mas circulação, distribuição, apreciação
crítica, mas de certa forma também no que diz respeito à criação dos textos em
si, isso não significa que não existam momentos de quando em vez de maiores
picos de novos agentes. É provavelmente
a distância e a idade que faz com que os entusiasmos se transformem em relação
a novos títulos, autores e estilos, porque as coisas são vistas numa
perspectiva mais alargada do que se se estivesse “inscrito” no momento (como se
passou precisamente na década de 1990 para nós). Mesmo assim, é saudável tentar
compreender algumas coisas mesmo que de uma forma necessariamente aproximativa
e geral. É o que se passa com os livros produzidos pelas lojas Big Planet em
parceria com a pequena editora Retrofit. (Mais)
O acesso a estes títulos deve-se igualmente ao facto de que,
paralelamente à edição em papel, ainda fundamental para a esmagadora maioria
dos leitores “dedicados” de banda desenhada, a circulação em formatos digitais
seja um complemento também essencial, em termos críticos, expositivos e
económicos. A oferta parte de variadíssimos quadrantes, mas continuam a ser
sempre os mesmos editores que atraem a atenção da esmagadora dos leitores, e
até mesmo quando temos autores auto-publicando-se, mesmo que tenham um trabalho
condigno, nem sempre conseguem chegar à atenção merecida. Além disso, a
universalização da linguagem da banda desenhada, mesmo no seu avatar
formal-económico da “graphic novel”, leva a que haja cada vez mais pessoas a
elegê-la como o seu instrumento predilecto de expressão, mas que, não sendo “mestres
ímpares do desenho”, “experimentandores” ou sequer “novos valores da literatura”,
acabam por se encontrarem num meio-caminho entre os “populares pela
mediocridade” e os “paladinos da arte”.~
Nietzsche ficaria bem aborrecido por esta nossa preocupação
dos “competentes mansos”, por assim dizer, mas eles também criam a camada
sólida na qual esta disciplina pode medrar. Seja virada para públicos
especializados, como o infantil, seja elaborada no interior de preocupações
específicas e genéricas, seja porque desejam explorar um tema qualquer através
de instrumentos humorísticos, leves ou fantasiosos. Mas a fronteira entre a “literatura
popular” e a “erudita” não é totalmente clara (uma dicotomia que tem toda a
pertinência no território da banda desenhada), já que muitas vezes a primeira
pode endereçar-se a questões abstractas e da condição humana mais profunda, revelando
uma mundividência complexa, matizada e progressiva, e a segunda ater-se a
princípios informados por um elitismo empedernido e ser conservador. Dito isto,
mesmo os objectos verdadeiramente efémeros podem conter momentos de prazer e
reflexão, não sendo incompatíveis ou incomensuráveis entre si. Mas adiante…
A maior parte destas publicações da Big Planet/Retrofit ronda
as trinta e as cinquenta páginas, por vezes estendendo-se um pouco mais. Dessa forma,
vivem numa lógica entre aquela da “graphic novel”, cujo objecto preciso é alvo
de discussões correntes, e as dos comic
books. Isto é, e simplificando de modo drástico, têm o formato e tamanho de
um comic book ou pouco mais, mas seguem
a ideia de uma publicação completa, autónoma, one shot. Isso não significa que não se possam seguir outras
lógicas associadas ao mainstream,
desde a existência de personagens recorrentes, ao respeito ou mesmo pesquisa de
géneros específicos. Todavia, a maior parte dos exemplos que aqui trazemos à
baila encosta-se mais àquelas tendências contemporâneas que, usando
instrumentos gráficos afeitos aos “art comics”, ou a re-utilizações de estilos
de uma convenção noutro contexto, ou estilizações descontraídas, procuram construir
mundos ligeiramente fora das normas, sem com isso, porém, chegarem a entrar em
territórios de experimentalismo ou de conquistas “culturais”, digamos assim,
estrondosas. Enfim, toda uma geração de autores que usam a banda desenhada de
forma livre para “contar histórias”, “criar divertimentos”, mas sem procurarem
atingir “todos os públicos”.
An Entity Observes All
Things. Box Brown. O primeiro título é do
autor-editor da Retrofit. As páginas de An entity apresentam-se nas mais
diversas composições mas onde as figurações são minimais, geométricas e nas
quais a expressão e a emoção não estão em primeiro plano. Constituído por uma
dezena de histórias curtas que oscilam entre as 5 a as 20 páginas, todos estes
relatos podem ser descritos como de “ficção científica”, já que envolvem o
futuro, tecnologias fantásticas, robots, alienígenas, viagens espaciais e as
implicações que tais desenvolvimentos teriam na sociedade humana. Mas todos
estes ingredientes são usados em pratos de absurdo, aventuras oníricas ou até
memórias de infância. No fim de contas, as explorações servem simplesmente para
sublinhar a solidão ou isolamento de todas as personagens, e entendermos que
pouco importa quão alargados os horizontes possam ser, se a valência de cada um
se estreitar a si mesmo. Mesmo a “entidade” que na história homónima observa a
Terra, e todos os seus fenómenos, de flores a conflitos globais, no fim de
contas anseia poder encontrar algo que satisfaça a sua solidão, mas falhando.
Sea Urchin. Laura Knetzger. Mescla entre escrita diarística, shoju mangá, e carta escrita a si mesma
em que se esgrimem preocupações diárias, emotivas, com os outros e o mundo, mas
se procuram igualmente intrometer referências de vários quadrantes populares,
este é um daqueles projectos que, mesmo que possa não conquistar um espaço
espectacular nos anais da banda desenhada, mostra seguramente como ela é uma
disciplina perfeitamente adequada a tornar-se um instrumento para a expressão
pessoal, mesmo que seja quase uma catarse unilateral. Escrito de uma forma nada
conduzida, e vertendo-se pelas mais diversas emoções e humores, ora abarcando
apontamentos muito específicos ora reflectindo sobre a natureza humana de modo
mais lato, as divagações da protagonista (tratar-se-á de uma autobiografia?)
entram numa proverbial montanha-russa. Não
há uma construção centralizada num grupúsculo de amigos, por exemplo, de onde
emergiria um conflito ou sequer uma intriga, mas antes uma incessante travessia
de temas. Porém, acumulando-se, eles criam de facto um retrato complexo de uma
jovem mulher, e que em termos sociais, sexuais, político e até filosóficos é
bem mais criativo, feminista e interessante que todas aqueles trabalhos de
maior sucesso comercial (Cathy, Maitês, etc.) que apenas confirmam um
discurso heteronormativo. Sea Urchin
pode mesmo ser lido como uma carta de uma amiga, ou mais, que nos abre a alma
mesmo que lubridiada pelo humor.
Piggy. Niv Bavarsky. Curtíssimo
livrinho com histórias ainda mais curtas, e imagens de apenas uma página que
criam uma qualquer situação absurda, o trabalho de Bavarsky parece pertencer
àquela categoria de artistas que têm uma urgência premente em dar a ver o seu
trabalho, mais do que burilarem estruturas clássicas em termos de narrativa ou world-building, mas que mesmo assim
atingem esse objectivo de modo oblíquo (como Raymond Pettibon, André Lemos,
André Ruivo). Provavelmente Piggy é
uma espécie de descanso entre o seu trabalho comercial mais intenso. Por isso
existem histórias sem grande nexo, ou simples e abandonadas somente ao prazer
da sua feitura, que poderão recordar alguma da animação psicadélica dos anos
1970-80, ainda que sem cor, e “diálogos” entre personagens que podem fazer
pensar que encontramos aqui um pequeno ensaio sobre o conflito e o beco sem
saída que ele representa.
Butter and Blood. Steven Weissman. Este autor fez parte da primeira geração de autores da fornada alternativa
dos anos 1990, mas rapidamente se revelou como interessado em entrar por
caminhos que nada tinham a ver com o confessionalismo árduo (na esteira de Dreschler,
Barry, etc.), a intimidade das relações (Matt, Brown, Tomine, etc.), ou com o
absurdo do quotidiano (Clowes, Bagge). Antes, repescando linguagens visuais e estilísticas
que recordariam alguma banda desenhada infantil – como nos casos de Kochalka, Sala,
e de certa forma Doucet -, Weissman colocava as suas personagens, muitas vezes
crianças, em situações nada apetecíveis nessas esferas. Como no caso de Bavarsky,
este volume de quase uma centena de páginas colecciona desenhos individuais,
possivelmente projectos de ilustração, anedotas e gags de uma prancha, apontamentos e folhas arrancadas de diários
gráficos. Os assuntos são vários, e encontraremos histórias ou situações com as
suas personagens infantis consabidas, mas também gatos guiduchos, cães
falantes, galinhas cowboy, spoofs dos
Guns N’ Roses, em toda a espécie de humores. Há pelo menos uma história “grave”,
“This Already Happened”, uma bonita história de memórias infantis, fins
horríveis e redenção, mas a esmagadora maioria dos materiais parecem ser fruto
de um punhado de minutos distraídos ao telefone ou então algumas horas mortas
numa sala de espera. Isso não é, porém, um sinal de perigosidade ou problema,
bem pelo contrário, são as circunstâncias que permitem ao autor desligar-se de
certas responsabilidades e, assim, atingir um grau de “esvaziamento” conducente
a objectos textuais estranhos, mas interessantes.
Nota final: agradecimentos a T. N. A. pelo "empréstimo" dos volumes sob forma digital.
Nota final: agradecimentos a T. N. A. pelo "empréstimo" dos volumes sob forma digital.
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