Em
termos de género (literário), a descrição desta banda desenhada é
bastante simples e, por essa mesma razão, não se está a ser
redutor (a menos que partamos da ideia, não totalmente errada, de
que a própria categorização é redutora, e levanta problemas em si
mesma). Private
Eye
é uma novela (aqui, no preciso sentido da palavra, de concisão
narrativa e concentração actancial) de ambiente de ficção
científica de intriga policial. Até à data, surgiram dois volumes
(digitais) perfazendo uma história. (Mais)
De
acordo com alguns teóricos literários da ficção científica, como
é o caso de Darko Suvin (“On the Poetics of the Science Fiction
Genre”), a ficção científica apresenta um “enquadramento
imaginativo alternativo ao ambiente empírico do autor”, isto é,
partindo de um pressuposto de coincidência experiencial (societal,
tecnológica, política, etc.) com o mundo habitado pelo autor e os
seus leitores imediatos, mas para chegar a pequenas diferenças
(daquelas mesmas ordens), que são usualmente, ainda de acordo com
Suvin, mas já revelando um juízo de valor, “mais sábias”. Bom,
este último ponto poderá ser discutível, já que o futuro ou a
alternativa ficcionais apresentadas poderão tanto ter traços
eutópicos como distópicos, mas seja como for ele terá sempre um
qualquer grau de estranhamento mas que agirá enquanto reflexo da
sociedade que lhe dá origem. Por outras palavras, as mais das vezes
lemos ficção científica para melhor entendermos o nosso
próprio
mundo.
No
entanto, de acordo com novas vozes desse (e outros géneros), a
ficção científica actua melhor quando procura outros fins. China
Miéville, cultor do género mas igualmente ensaísta profundamente
informado pelas teorias dos estudos culturais, no seu ensaio em Red
Planets: Marxism and Science Fiction,
argumenta pela necessidade de se explorarem “alteridades”, papéis
sociais diversos dos “scripts” que nós próprios desempenhamos
no nosso mundo. Leitores de Miéville saberão quão distintas são
as explorações de individualidade, sexualidade, política, etc.
presentes nos seus romances. Até certo ponto, independentemente da
centralidade da tecnologia em Private
Eye,
poder-se-ia argumentar que os papéis “alternativos” da
pessoalidade estão na ordem do dia desta obra. Ficção social,
então.
Esta
série foi publicada em curtos episódios de umas 20 e tal pranchas
cada. Estas pranchas têm um formato oblongo, o que permitia uma
leitura mais confortável num ecrã de computador ou num tablet. Seja
como for, a sua dimensão enquanto webcomic
não significava qualquer elemento específico à multimedialidade
permitida em ambientes digitais; nesse sentido, Private
Eye
não deixa de ser apenas uma colecção de pranchas, tais como
poderiam existir num livro (e agora existem, num volume de capa dura
pela Image), publicadas online. Nada de errado nisso, mas
simplesmente o “salto” ou “mediação” entre uma
possibilidade (papel) e outra (ambiente digital) não é aqui
explorada de forma alguma. Dois factores são dignos, porém, de
nota. Em primeiro lugar um aspecto económico, mais importante, mas
que deixaremos a pessoas mais competentes para análise, é o facto
de que Panel Syndicate é um projecto dos próprios autores (com
outras séries lançadas, entretanto), sendo uma forma de conseguirem
apoio financeiro dos seus esforços, com a informação acrescida de
que Private
Eye
pode ser paga mas sem preço fixo: o leitor decide quanto pagar.
Haverá escolhos nesta escolha? Sem dúvida. Mas ao mesmo tempo traz
um lado estranhamente democrático e livre de tornar acessível ao
mesmo tempo que assegura um apoio diverso.
Outro
há aspecto curioso, que é a faceta ligeiramente metatextual da
própria série, e essa sua existência digital, o que a torna mais
pertinente do que no momento em que existe em papel. Permitam-nos um
desvio. É recente a disponibilização da série televisiva (ainda é
certo dizer isto?) The
Man in the High Castle,
baseada no romance homónimo de Philip K. Dick (re-traduzido para
língua portuguesa recentemente por David Soares, na Saída de
Emergência, cuja edição se aconselha). No interior dessa diegese,
existe um autor lido à socapa pelos protagonistas, que escreve um
romance de uma ficção alternativa à realidade que habita: uma vez
que o romance de Dick se passa num mundo em que as forças do Eixo
ganharam a 2º Guerra Mundial, esse hipotético e hipodiegético
romance mostra um mundo em que foram os Aliados os vencedores
(espelhando, de forma distorcida, o nosso mundo, sem bem que os
paralelos não sejam assim tão paralelos,
precisamente). Na adaptação da Amazon, esse romance passa a ser uma
colecção de fitas de celulóide, um filme fragmentado – e
MacGuffin de toda a intriga -, procurando então uma mise en
abime visual
no interior de um meio visual, onde antes existira um
romance-dentro-do-romance.
Desta
forma, não é particularmente surpreendente que ler uma ficção que
vive afectada pela existência de uma rede compacta formada de
Youtubes, Facebooks, Instragrams, Tinders, 4chans, tumblrs e
netbanking deva
ser lida precisamente nesse ambiente. Para fazer um like
imediato, a compra por paypal antes de tudo, assegurar o rss mas,
acima de tudo, estar absolutamente certo da rápida dissolução da
atenção e da manobra, até mesmo do malabarismo, que teremos com
todas as nossas “máscaras” sociais (que aumentam conforme o
número de esferas distintas em que navegamos, e este verbo não é
inocente no mundo online).
Mesmo em blogs.
Narrativamente
a série passa-se num futuro relativamente próximo, no último
quartel do século XXI após um desastre tecnológico. Aparentemente
a dependência da internet de todas as pessoas atingiria um tal grau
que todas as suas vidas estariam presentes na “nuvem”. Não
apenas as informações bancárias e curriculares, como todos e
quaisquer segredos, desde o historial de navegação a fotografias,
até às compras que se fazem. O que é irónico, naturalmente, é
que, pelo menos no que diz respeito ao Primeiro Mundo, não
há
já qualquer diferença da nossa experiência. O desastre é que essa
nuvem, ou bolha, rebenta, e todos os tais segredos, as “segundas
vidas”, ficam expostos: as consequências são desastrosas para as
vidas profissionais, familiares e amorosas, e uma nova sociedade
rearranja-se. Já não há internet (levando a toda uma série de
piadas que apenas os utilizadores dela compreenderão, ao mesmo tempo
que apre(e)ndem a futilidade dessas preocupações, e todas as
pessoas assumem identidades secretas. Estas expressam-se desde as
maneiras mais tranquilas – uma máscara de dominó, uma leve
pintura – até formas mais circenses e espectaculares – fatos
completos de furries,
super-heróis, estranhas criaturas tiradas de um espectáculo dos
Mummenschanz.
É
neste universo que encontraremos um jovem “detective privado” que
aceita casos pequenos a resolver. Uma vez que as forças policiais
passaram a estar misturadas com a imprensa – é chamada de Fourth
Estate/Quarto Poder -, é natural que os detectives privados (e o
termo de gíria “private eye” passa a ter uma sentido quase
literal) sejam conhecidos como paparazzi.
A estrutura da história segue todos os passos clássicos de um
policial. Começamos por ver Patrick Immelman ou P.I. (get
it?)
a resolver um caso bastante simples, mas que serve para introduzir a
personagem, o seu mundo e os seus métodos de trabalho. Depois chega
a mulher misteriosa (e numa progressão do Bechdel
test,
esta mulher estará interessada noutra mulher, a sua irmã, e a
dimensão amorosa-sexual não tem o papel que costuma ter, aliás, há
surpresas e desvios ao longo da narrativa nesse campo), com um caso
aparentemente
simples, mas que se revelará como muito complicado e alargará o
escopo da acção para uma conspiração de impacto global. E todos
os elementos que vão sendo apresentados, mesmo aqueles que parecem
secundários, têm um peso na máquina total. Private
Eye
possui, portanto, uma escrita (e desenho, etc.) inclinada:
quer dizer, todos os elementos concorrem para uma leitura titilante
que nos leva a perseguir o prazer das descobertas e a
unidireccionalidade total da intriga.
Nesse
aspecto, Brian K. Vaughan está aqui no seu melhor. A concentração
da intriga e das personagens permita que o modo de construir o mundo
é muito controlado. É também uma oportunidade para jogar com toda
uma série de flutuações e referências: não faltam, sobretudo nas
pranchas em que se permite uma navegação da atenção por todo o
espaço interior dos quartos, citações a filmes, livros e discos,
através da sua própria presença nas cenas. Cria-se assim um
ambiente referencial que servirá aos leitores contemporâneos
perceber que tipo de ligações culturais os autores procuram. Também
no nível visual, a linha claríssima de Marcos Martín (e as cores
de Muntsa Vicente) permite uma nítida legibilidade das cenas, mesmo
as mais cheias, e as cenas de acção, ao mesmo tempo que tempera com
referências a outras bandas desenhadas, a culturas várias, à moda
contemporânea, etc. Uma espécie de jogo de Onde
está o Wally?
(como em Top
Ten,
de Moore e Ha) cultural que servirá para estender lateralmente o
mundo de Private
Eye.
Tudo
está maus subsumido a um programa linear da narrativa do que a uma
exploração multidimensional. Private
Eye não
descontrói todos os pressupostos da sociedade, mesmo que explore
questões de alteridade: esta alteridade é já aquela que exercemos
no nosso tempo e sociedade, há apenas um pequeno desvio ficcional.
No que diz respeito à concentração na economia da distribuição
de papéis (protagonista, antagonista, deuteragonista, etc.) e na
estrutura aristotélica (unidade de tempo e espaço, episódios
encadeados, clara resolução da intriga após clímax, promessa de
desdobramento pelo suspense futuro, etc.), é nítida o seu lavrar
enquanto convenção literária (daí a sua categorização como
novela).
Nada de problemático, aqui. Bem pelo contrário, são até factor de
estabilização de certas categorias (narrativa, representação,
individualidade, etc.) mesmo após o que poderia ser visto como uma
crise de desmontagem delas mesmas.
A
acção em si não tem contornos de grandes revoluções, tratando-se
de uma intriga internacional e tecnológica que tem neste mundo toda
a sua pertinência e sentido, mas não é muito mais do que uma
tentativa de revitalizar fórmulas consabidas. Não se trata da
grande premissa de Y:
The Last Man
ou Ex
Machina,
que também estavam mais interessadas nas relações humanas tecidas
entre as personagens, no cadinho da ficção científica e de
super-heróis. Acima de tudo, parece-nos sobretudo nessa forma de
progressão e extensões de referências, textuais-visuais – e nas
piscadelas de olho em tantas direcções, como os Marlboro de
marijuana, que também recordam outra referência ao romance citado
de Dick –, que Private
Eye
é um bom exemplo de ficção popular tirando total partido dos
instrumentos de género para chegar a um “enquadramento imaginativo
alternativo” ao dos nossos dias, ainda que com muitas dendrites.
Que máscaras e segredos temos nós, final?
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