Poderíamos começar este texto da
mesma forma que o anterior, já que também Javier Olivares foi alvo
da nossa atenção há quase uma década, e que são apenas
circunstâncias algo superficiais que nos colocam de novo frente a um
seu trabalho. Por outro lado, este volume estabelece algumas linhas
de relação com o de Auladell, menos por características comuns de
pertença social do que pela forma como ambos entram em diálogo com
a pintura ocidental. Auladell numa óptica de re-utilização
dramática, Olivares e García numa de pesquisa. (Mais)
Uma das tendências mais prementes da
banda desenhada contemporânea é a de narrativas que mesclam, a um
só tempo, a biografia de autores famosos e uma interrogação,
muitas vezes (ou sempre?) metatextual. Com efeito, é muito
surpreendente encontrar um número de livros em torno da vida e obra
de pintores (mas também escritores, filósofos, cineastas,
escultores) mas que procuram menos uma abordagem biografista, heróica
e didáctica do que uma auscultação do espírito que anima essa
mesma obra. De cor e a título de exemplo, deparámo-nos com livros
de banda desenhada sobre Schiele e Modigliani, Dalí e Picasso,
Rembrandt e Niki de Saint-Phalle. Alguns deles não passam de meros
culébrons em torno das vidas “passionais” desses autores
(os casos de Schiele e Modigliani); outros são, digamos, livros
competentes e até carregando o peso da arte dos seus autores mas sem
conquistarem sendas novas (os casos do Dalí de Baudoin e os
Picassos quer de Bertozzi quer de Birmant e Oubrerie); outros
ainda têm métodos tão modestos quanto de conquistas, procurando
assim abordagens que encontram maiores felicidades (como o Rembrandt
de Typex e o Niki de Saint-Phalle de Osuch e Martin, os quais
serão em breve alvo de leitura no lerbd). Inscrevendo-se
nesta última categoria informal está Las Meninas.
É claro que também se poderiam
referenciar alguns dos livros que, na banda desenhada, e pelos
caminhos da ficção, têm criado reflexões mais interessantes sobre
o acto da criação das artes plásticas do que muitas biografias de
autores reais. Como esquecer Le portrait, do já citado
Baudoin? Ou não recuar ao Die Idee de Masereel? E a escolha é
vasta, seja pelo humor de Daniel Clowes ou a estranha fantasia deLune l'envers de Blutch. Las Meninas é várias coisas
ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, podemos dizer que é uma biografia
de Diego Velázquez, até com algum grau de apresentação dos factos
e dados de um modo pedagógico, introduzido esse mecanismo pela
desculpa diegética de que um investigador da Ordem Militar de
Santiago vai entrevistando várias pessoas com as quais Velázquez
trabalhou e viveu, de forma a entender se ele é digno de receber a
cruz dessa ordem, já que não é de linhagem nobre. Esse mecanismo
permite assim, através de breves conversas com uma mão-cheia de
personagens secundárias – funcionários da corte, onde o pintor
exercia outras funções administrativas e rituais, discípulos de
pintura, o seu escravo Juan de Pareja, relutantemente liberto –
criar uma densa rede de episódios biográficos do pintor, desde os
seus anos de aprendizagem, a entrada na corte e sedução do rei, as
viagens a Itália, as amizades e conversas com outros mestre da sua
época, como Reubens, José de Ribera, Bernini, mas também os seus
acólitos, como Juan Bautista Martínez del Mazo, seu genro e
aprendiz, Pareja e uma suposta amante, pintora também, na sua
segunda estada em Itália.
Aqui penetramos numa segunda camada de
significação: a do próprio pensamento sobre a pintura e o acto
criativo, que tem no próprio Velázquez a sua âncora, para chegar a
essas outras personagens, aos seus rivais, companheiros, clientes e
admiradores e críticos, para logo chegar a uma dimensão
transhistórica, quer seja introduzida diegeticamente por personagens
(levando a um nível hipodiegético, ou uma “história dentro da
história”), quer sob a forma de “interrupções” quase
intempestivas pela parte do meganarrador da banda desenhada (levando
assim a uma espécie de metalepse, uma “história paralela”).
Dessa forma, temos troços em torno de Zêuxis, Ticiano, Rafael,
aprendizagens com van Eyck, mas também percorremos o “futuro”,
com Goya, William Merritt Chase, como dizer isto... os Picassos?,
Dalí e a Equipo Crónica (não pela ordem histórico-cronológica),
mas igualmente o dramaturgo Buero Vallejo, que escreveria em 1960 o
drama histórico, mas o qual pretendia ser lido igualmente como
comentário da sociedade em que se apresentava, Las Meninas.
Desta forma cria-se uma rede de associações conceptuais que
recolocam Las Meninas como uma espécie de centro nevrálgico
de muitas das questões permanentes da arte no ocidente, a sua
relação com a vida dita real, com a ideia de ilusão, o papel que
tem de mediadora ontológica, do reflexo ao ideal. Daí que versos de
Caldéron ilustrem esses problemas. Que certos mitos gregos apareçam
não somente como “assunto” da pintura mas reflexos dessas
preocupações. A tela é então uma cifra que passa a ser
interrogada ao longo dos século, e cujas respostas múltiplas ganham
corpo em novas obras de arte, elas também dignas de memória.
Mas além disso, outros pedaços vêm
juntar-se a estas partes “narrativas”. Sublinhemos três, e “de
trás para a frente”. No fecho do livro, temos a origem do título
actual e pelo qual é mais conhecido, mostrada oblíqua e
interrompidamente, numa conversa com Juan e Pedro Madrazo, pai e
filho e responsáveis pelo Prado: em vez do título mais prosaico
utilizado em listas reais (não existiam “títulos oficiais”),
ficaria essa descrição que bebe do português (não é “Las
Niñas”). No momento imediatamente anterior às duas páginas que
mostrariam o acto de pintura dessa tela e os actos de observação
dos seus retratados, uma página inteira coloca Luca Giordano a
afirmar de forma titular e emblemática a sua sentença sobre essa
tela, a de que se trataria da “teologia da pintura”. E,
finalmente, num dos intróitos da narrativa, e para o colocar, a um
só tempo, na condução de todo o ensaio mas também de lado durante
a pesquisa, a figura de Foucault, em duas páginas que mimam a prosa
do filósofo no seu breve texto sobre a tela em A palavra e as
coisas. O texto de Foucault vai ao encontro da premente busca de
Velázquez pela distinção da sua tarefa de pintor enquanto uma arte
totalmente desligada de pesos e necessidades materiais: difícil de
compreender hoje, sendo a pintura entendida como uma “arte nobre”,
uma “bela-arte”, e não somente um ofício. Reubens tem
preocupações materialistas, quer fazer dinheiro, mas o pintor
espanhol eleva-se a outras dimensões, e Foucault, buscando uma
espécie de justificação de interpretação na matéria própria da
pintura, e não tanto na canga que lhe é externa (História,
História da Arte, Sociologia, etc.), interrogando a rede de olhares
e reflexos que se tecem na tela de Las Meninas, abre para nós
o “lugar de pura reciprocidade” criado por Velázquez. E essa reciprocidade, pelo menos a dos
elementos agregados no seio deste livro por García e Olivares, são
re-apresentados num spread em que os “actores-interrogadores”
(os que participam na diegese, mas outros também, como Bacon, os
autores eles-mesmos) regressam à boca de cena com Velázquez.
Tal como no caso do poema de Milton,
também não podemos entrar em diálogo directo com o imenso quadro
que é alvo da atenção deste livro. Bastar-nos-á dizer que ele é
uma espécie de “máquina de conceitos” a partir da qual García
e Olivares despertam todos os elementos que compõem a sua própria
obra. De uma forma ou outra, não há pormenor da tela que não tenha
o seu papel na narrativa tecida em Las Meninas, desde os
quadros no interior do quadro, à suposta ideia de que a cruz de
Santiago, vermelha, foi pintada posteriormente pelo próprio punho de
D. Filipe IV.
Não nos enganemos. Apesar desta
construção fragmentada e heterógenea em termos de actores e
momentos, todos esses elementos se encontram integrados de forma
elegante, ou até subsumidos, para um mesmo programa: não tanto uma
compreensão, muito menos uma explicação, mas uma
exposição do quadro e a sua relação com o seu contexto
alargado, histórico e artístico. De novo, Foucault: “...a relação
da linguagem com a pintura é uma relação infinita.... Trata-se de
duas coisas irredutíveis uma à outra”. É precisamente
trabalhando nessa “incompatibilidade” que poderemos “permanecer
no infinito da tarefa”. E o livro Las Meninas intenta criar
um pequeno caminho desse mesmo infinito.
Javier Olivares faz uma escolha muito
sábia ao dar continuidade à sua própria abordagem gráfica,
altamente estilizada, flutuando entre vários registos (ora figuras
desenhadas mais correctamente, ora mais próximo dos chibi,
ora com pinceladas mais vigorosas), nunca procurando “imitar” a
materialidade dos pintores envolvidos. Dessa maneira, não há jamais
um desejo de confluência da materialidade do objecto-de-atenção e
o discurso. Dessa maneira, mantém-se uma distância, absolutamente
necessária para começar a ver e a pensar, dar a ver e a pensar. Que
objecto é esse que ajuda a, na sua distância necessária, pensar e
ver? Na cena protagonizada por Vallejo, este lê uma crítica num
jornal à sua peça, na qual é acusado de não ser “autêntico”.
Vallejo responde com uma risada, e comparando-se directamente à tela
de Velázquez, afirmando, “Claro que não é autêntico, senhor.”
E remata: “É um espelho.”
Sem comentários:
Enviar um comentário