Na vida diária, na linguagem quotidiana, muitas palavras são
empregues de modo despreocupado, sem que o peso da sua etimologia ou do seu uso
particular e informado por uma perspectiva específica tenha aí papel. Mas noutros
contextos, elas distinguem-se, por meio de subtilezas ou concretudes teóricas,
cujo objectivo não é tanto alterar a natureza do seu emprego diário, mas antes
ajudar a pensar, em contexto especial, de modo mais cuidado. A área difusa a
que se tem dado o nome de “Teoria dos Afectos” , um campo interdisciplinar que
nasce da psicanálise mas se entrosa por outros territórios, distingue sentimentos, emoções e afectos. Estes últimos
são como que reacções corporais pré-cognitivas, isto é, pré-pessoais, e são
depois estudadas como categorias específicas. Os sentimentos estão associados,
como que bordados, na tessitura do pessoal, do biográfico. As emoções, por sua
vez, são sociais, aprendidas, construídas ou tecidas, nunca na solidão. (Mais)
A palavra família
também poderia ser vista quer do lado da linguagem de todos os dias, agregada a
problemas de uso, de programas ideológicos específicos, de automatismos
culturais, quer do lado de uma reflexão mais cuidada, e que permitisse um
pensamento mais matizado (e se fôssemos pela etimologia, ficaríamos horrorizados). Amores de
família é um livro paradoxal na abordagem a essa mesma palavra, uma vez que
tanto poderia ser compreendido como uma colecção de situações diárias, quase
banais, sem grandes tremores, e por outro é uma pequena e profunda revolução no
entendimento dessa mesma noção.
A noção de família, como qualquer outro factor social
complexo, foi ou é alvo de revisitações e reformulações contínuas, associadas
às transformações que têm lugar na sociedade em que emergem, sejam elas do foro
económico, político, moral, cultural ou até tecnológico. Factores de trabalho
(labor) reprodutivo e doméstico são absolutamente centrais, mas entrosam-se com
muitas outras linhas de desenvolvimento. É curioso que, por vezes, se lhe
acrescente o qualificativo “tradicional” para descrever uma sua determinada
configuração, esquecendo-se que essa mesma “configuração tradicional” terá a
sua própria história e, muito provavelmente, que ela corresponderá a uma
distribuição bastante recente. A expressão particularmente idiota de “família
nuclear” ainda mais recente e inoperativa é, uma vez que tem um alcance
extremamente reduzido.
Uma definição é, por
definição, a especificação de condições suficientes e necessárias para que
um termo faça sentido. Assim, para definirmos “família”, mesmo tendo em conta
que não se trata de um martelo, uma cadeira ou uma palavra passível de ser redefinida em jogo, teríamos de encontrar
quais são os seus elementos suficientes e quais os necessários. Quanto aos
segundos, parece-nos ser claro: é preciso que haja pessoas envolvidas.
Suficientes, talvez as linhas que aliem aquelas numa rede qualquer que, sob a
tempestade das emoções que se vão formando entre si, se mantenha enquanto tal.
O novo livro das palavras de Carla Maia de Almeida, e
ilustrado pelas imagens, àquelas adicionando significados, por Marta Monteiro,
é uma espécie de armadilha que capta esses elementos no seu voo. Se se pensar
que estes temas não têm lugar nos livros infantis, então o que se anda a colocar
neles? Afinal, se cremos que o acto de leitura – própria ou acompanhada – é desde
logo um dos mais fundamentais exercícios de cidadania e de busca pela autonomia,
é fundamental que certos valores e modelos de pensamento sejam explorados desde
logo. Claro está que poder-se-á considerar que os “valores” de Amores de família não são aqueles que o
leitor x ou y quererão passar no processo eleito de aculturação, mas afinal de
contas a decisão de se escolher este livro (estes gestos, estas formas, estas
posições) são desde logo garante de maior democratização daquele processo de
autonomia e cidadania, afinal. Juízo de valor? Sem dúvida.
Os textos são, a cada duas páginas, autónomos. Há uma
distribuição para cada pai, de maneira a compreender distribuições não só de
funções, mas de humores, de capacidades, de talentos, de fontes de aprendizagem,
o que é corroborado pela colocação das personagens “principais” em lados
distintos das composições na maior parte dos casos. Quando forçoso, há um tio
ou tia, há avós. Sendo somente descritivos das personagens que se apresentam, a
coincidência entre os nomes e os “pais visíveis” é mais adivinhada que segura. Não
há, porém, aliança narrativa entre essas famílias, e muitas pistas de representação
visual apontam para localizações e culturas distantes entre si (possivelmente numa
roça de São Tomé e Príncipe uma cena, seguramente numa aldeia Quechua ou Aymara
outra, várias nas sociedades do mundo ocidental). O facto de os nomes de todas
essas personagens serem oriundos dos mitos greco-latinos (há uma navegação
estocástica por esses papéis e nomes) é mais uma desculpa do que uma procura
por correspondências de exactidão. Talvez pensando nas relações familiares
existentes entre essas personagens clássicas, nem sempre pautadas pelo
equilíbrio, o amor incondicional e o respeito mútuo, mas muitas vezes
atravessadas pelos ciúmes, a violência, a morte e a vingança, é curioso que
sejam recuperadas para outras vivências, mais ao rés-do-chão e atentos.
Também há uma diferença entre a emoção e a paixão. A
paixão é mais “animada”, exteriorizante, expressa de modo “visível”, convidando
à acção e bastas vezes associada a esforços políticos. Os deuses exerciam-nas,
e nos tempos que correm elas também se arvoram de maneira a que a bandeira da “família”
se alargue. As configurações familiares aqui passam por variações de um mesmo
gesto. Existem famílias “ditas” tradicionais (ora pois), aquelas que contam com
a presença de várias gerações ou ramos filiais, mas também aquelas que se
alargam por segundos casamentos ou uniões; há ainda aquelas formadas por dois
pais ou duas mães; as que passam por processos de adopção ou de acolhimento; e
ainda aquelas que terão dois progenitores de dois enquadramentos étnicos e/ou
culturais diferentes. O gesto que os une, claro está, é o mel que os une
precisamente uns aos outros, para que se compreenda o que quer dizer família.
Tal como no caso de Todos
fazemos tudo, de Madalena Matoso, ainda que sem a dimensão
ludo-combinatória, e recordando O livro do Pedro no seu “combate ameno”, temos também a importante faceta de todas
as personagens estarem no meio de acções, e estas não estarem predeterminadas de
modo algum. Aliás, uma outra dimensão importante de notar é a da escala social,
não havendo neste livro apenas famílias de “classe média”. Algumas parecem
mesmo pertencer a escalões superiores, e outros tantos a classes trabalhadoras,
em alguns casos até mesmo bem limitadas em termos de recursos financeiros. Isso
torna o projecto politicamente mais interessante ainda, claro, uma vez que não
está a tomar decisões sobre a justeza ou a qualidade do amor conforme as
classes, seja em que direcção (num eixo vertical?) for. Se o “capital económico”
e até o “cultural” pode ser alto ou baixo, o “capital familiar” é maximal em todos os casos.
Suficientes, cada destas pessoas de papel, necessárias, cada
acção que os junta em família.
Nota final: este volume pertence ao acervo da Oficina do
Cego, após doação da editora por ocasião da exposição Rodapé. Agradecimentos a
todos os intervenientes.
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