15 de dezembro de 2015

Quero a minha cabeça! António Jorge Gonçalves (Pato Lógico)

Este é o segundo livro do autor nas mesmas circunstâncias que Barriga da baleia, isto é, um livro a solo, dirigido ao público infantil, e numa mesma preocupação ou geminação material com os livros criados na Pato Lógico. Não se estabelecendo de forma alguma com Barriga da baleia para criar uma “série”, partilhará porém alguns princípios comuns com aquele outro projecto, começando pela protagonista, uma menina pequena que se isola da família para mergulhar numa viagem solitária e algo melancólica de, a um só tempo, procura de si mesma e de regresso à vida familiar com uma nova perspectiva. (Mais) 

Nesse aspecto, poder-se-ia dizer que Quero a minha cabeça! obedece a toda uma série de “funções narrativas” previstas, se olharmos para a literatura infantil (e popular, tradicional, etc.) de uma maneira estruturalista. Sejam os contos coligidos por Perrault ou a Alice de Carroll, encontrar-se-iam muitas irmãs para este livro presente. O que importa, porém, é entender de que maneira é que António Jorge Gonçalves, entrando em diálogo directo com esses “esquemas”, procura articular os seus instrumentos pessoais, narrativos e visuais. Não estamos a falar propriamente de um “escritor” – indo para além da ideia de alguém que escreve letras, que produz matéria verbal num livro em colaboração, que inventa uma história, mas alguém que estrutura todos os elementos de uma narrativa numa proposta a interpretar – mas sem dúvida num autor que é capaz de articular esses mesmos elementos de uma forma suficiente que lhe permite depois fazer as explorações formais e materiais que deseja.


A protagonista é Céu, que perde a cabeça ora por castigo do seu “não!” ao pai (fora de cena, sempre, apenas sob a forma de frases, como os adultos em Peanuts) ora como consequência da sua casmurrice. Uma Céu começa então, com a ajuda de uma gaivota, à procura da sua cabeça, se bem que se cruze com muitas outras ofertas alternativas. Com efeito, a viagem de Céu levá-la-á a experimentar várias cabeças de empréstimo: de uma nuvem, uma flor, uma rocha. Todavia, nenhuma destas brevíssimas substituições servem para que Céu devenha algum desses objectos, ou sequer imagine onde levaria tal caminho. A sua resoluta recusa, marcada pelos “Nãos” bem assinalados nas páginas (a frase que se repete), sublinham a sua característica maior, a qual, mesmo negativa, a fará avançar continuamente. Teimosa como Alice, precisamente, Céu não tem qualquer desejo em se dissolver nas paisagens que atravessa, por mais que o autor “torture” a sua figura.

O “Não”, de resto, é o grande coração e motor da narrativa. É ele quem espoleta o caminho da criança e quem a faz caminhar para a próxima etapa. A associação desta ideia às fases das crianças é claríssima, mas em vez de a tornar um obstáculo ou um comportamento a criticar, o autor transforma isso numa possibilidade de movimento. Não há moralismo, é até paradoxal: a perda é castigo? Condição sine qua non de compreender o preço de substituir o “não” pelo “sim”? Tem de haver subida para haver queda, queda para subida? Não esqueçamos que também Max iniciara a sua viagem graças a um castigo pelo seu mau comportamento. E se ali o isolamento numa ilha de monstros o faria entender o que fazia falta, aqui a descida à barriga da bal… perdão, ao coração da montanha também fará a protagonista deparar-se com a derradeira questão.

O autor explora, como o fizera com Barriga da baleia, esquemas de composição das imagens, das próprias figuras e dos cenários, a partir de marcas gráficas que mimarão, de uma forma ou outra, os objectos que empregaria nos seus espectáculos ao vivo. O autor tem experiência de desenho ao vivo, com vários instrumentos e processos, mas se treinou a mão em modos digitais (depois de ter vasculhado tantos caminhos materiais), para estas abordagens dedicadas a um público mais novo regressou a objectos, coisas tangíveis, manipuláveis, atomizáveis, mas ainda assim passíveis de acumulações e combinações figurativas. Não deixa de ser surpreendente, portanto, que essa ânsia de recombinação de objectos tenha passado para o “lado do conteúdo” nesta história. As nuvens, o nevoeiro, a textura das rochas e da montanha compõem-se por minúsculas partículas. Os ramos das árvores, as plantas e as suas nervuras desenham-se em abordagens fractais. E depois o interior mágico da montanha, em quatro spreads sucessivos, parece deslumbrar-se em mandalas moventes.

Toda esta padronização atómica, este trabalho de filigrana gráfica, serve para sublinhar uma espécie de textura contrastiva com as restantes imagens, que se apresentam nos seus aplats mais habituais, mas sempre no traço nervoso e gestual do autor. Há também um crescendo ou progressão claríssima no que diz respeito às distribuições cromáticas, que se numa primeira fase – sem nunca, porém, seguir pistas naturalizantes – segue uma lógica cronológica e atmosférica, rapidamente ganha antes uma significação mais simbólica. Corroborado pelo ritmo dos spreads, que faz com que cada folhear nos apresente uma imagem de conjunto, uma unidade de sentido, e pela pautada cadência da repetição do texto verbal e os momentos de silêncio (ascensão num caso, queda no outro), Eu quero a minha cabeça! é um exercício maior de retórica holística do álbum ilustrado.   

Uma outra interpretação poderia ser tentada, mas afastar-nos-ia de imediato do seu universo “infantil”, e provavelmente roçaria alguns abusos interpretativos. Seria uma leitura informada por esquemas, como dissemos acima, composto de mitemas, elementos mínimos de mitos, mas em vez de os ler na sua relação com a literatura popular, arrastá-los mais para uma dimensão mística [se martelássemos a "Viagem do Herói" de Campbell sobre este livro, revelar-se-iam essas tais estruturas mínimas, já para não falar da "Teoria do Buraco" de Vonnegut!]. Afinal de contas, não poderíamos dizer que uma personagem chamada “Céu”, que perde a cabeça, e procura na ascensão a uma montanha mágica e depois numa descida ao seu coração, que vai negando ofertas materiais de várias personagens, para dialogar com uma personagem superior, e para mais guiada por um animal (psicopompo?), e que encontra um equilíbrio superior no fim – partilhando espaço com outras criaturas que parece terem aceitado as trocas combinatórias e materialistas possíveis -, constitui uma parábola?

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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