Este é o segundo livro do autor nas mesmas circunstâncias que Barriga da baleia, isto é, um livro a
solo, dirigido ao público infantil, e numa mesma preocupação ou geminação material
com os livros criados na Pato Lógico. Não se estabelecendo de forma alguma com Barriga da baleia para criar uma “série”,
partilhará porém alguns princípios comuns com aquele outro projecto, começando
pela protagonista, uma menina pequena que se isola da família para mergulhar
numa viagem solitária e algo melancólica de, a um só tempo, procura de si mesma
e de regresso à vida familiar com uma nova perspectiva. (Mais)
Nesse aspecto, poder-se-ia dizer que Quero a minha cabeça! obedece a toda uma série de “funções
narrativas” previstas, se olharmos para a literatura infantil (e popular,
tradicional, etc.) de uma maneira estruturalista. Sejam os contos coligidos por
Perrault ou a Alice de Carroll,
encontrar-se-iam muitas irmãs para este livro presente. O que importa, porém, é
entender de que maneira é que António Jorge Gonçalves, entrando em diálogo
directo com esses “esquemas”, procura articular os seus instrumentos pessoais,
narrativos e visuais. Não estamos a falar propriamente de um “escritor” – indo para
além da ideia de alguém que escreve letras, que produz matéria verbal num livro
em colaboração, que inventa uma história, mas alguém que estrutura todos os
elementos de uma narrativa numa proposta a interpretar – mas sem dúvida num
autor que é capaz de articular esses mesmos elementos de uma forma suficiente
que lhe permite depois fazer as explorações formais e materiais que deseja.
A protagonista é Céu, que perde a cabeça ora por castigo do
seu “não!” ao pai (fora de cena, sempre, apenas sob a forma de frases, como os
adultos em Peanuts) ora como
consequência da sua casmurrice. Uma Céu começa então, com a ajuda de uma
gaivota, à procura da sua cabeça, se bem que se cruze com muitas outras ofertas
alternativas. Com efeito, a viagem de Céu levá-la-á a experimentar várias cabeças
de empréstimo: de uma nuvem, uma flor, uma rocha. Todavia, nenhuma destas
brevíssimas substituições servem para que Céu devenha algum desses objectos, ou
sequer imagine onde levaria tal caminho. A sua resoluta recusa, marcada pelos “Nãos”
bem assinalados nas páginas (a frase que se repete), sublinham a sua
característica maior, a qual, mesmo negativa, a fará avançar continuamente. Teimosa
como Alice, precisamente, Céu não tem qualquer desejo em se dissolver nas paisagens
que atravessa, por mais que o autor “torture” a sua figura.
O “Não”, de resto, é o grande coração e motor da narrativa. É ele
quem espoleta o caminho da criança e quem a faz caminhar para a próxima etapa. A
associação desta ideia às fases das crianças é claríssima, mas em vez de a
tornar um obstáculo ou um comportamento a criticar, o autor transforma isso
numa possibilidade de movimento. Não há moralismo, é até paradoxal: a perda é
castigo? Condição sine qua non de
compreender o preço de substituir o “não” pelo “sim”? Tem de haver subida para
haver queda, queda para subida? Não esqueçamos que também Max iniciara a sua viagem graças a um castigo pelo seu mau comportamento. E se ali o isolamento numa
ilha de monstros o faria entender o que fazia falta, aqui a descida à barriga
da bal… perdão, ao coração da montanha também fará a protagonista deparar-se
com a derradeira questão.
O autor explora, como o fizera com Barriga da baleia, esquemas de composição das imagens, das próprias
figuras e dos cenários, a partir de marcas gráficas que mimarão, de uma forma
ou outra, os objectos que empregaria nos seus espectáculos ao vivo. O autor tem
experiência de desenho ao vivo, com vários instrumentos e processos, mas se
treinou a mão em modos digitais (depois de ter vasculhado tantos caminhos
materiais), para estas abordagens dedicadas a um público mais novo regressou a
objectos, coisas tangíveis, manipuláveis, atomizáveis, mas ainda assim passíveis
de acumulações e combinações figurativas. Não deixa de ser surpreendente, portanto,
que essa ânsia de recombinação de objectos tenha passado para o “lado do
conteúdo” nesta história. As nuvens, o nevoeiro, a textura das rochas e da
montanha compõem-se por minúsculas partículas. Os ramos das árvores, as plantas
e as suas nervuras desenham-se em abordagens fractais. E depois o interior
mágico da montanha, em quatro spreads
sucessivos, parece deslumbrar-se em mandalas moventes.
Toda esta padronização atómica, este trabalho de filigrana gráfica,
serve para sublinhar uma espécie de textura contrastiva com as restantes
imagens, que se apresentam nos seus aplats
mais habituais, mas sempre no traço nervoso e gestual do autor. Há também um crescendo ou progressão claríssima no
que diz respeito às distribuições cromáticas, que se numa primeira fase – sem nunca,
porém, seguir pistas naturalizantes – segue uma lógica cronológica e
atmosférica, rapidamente ganha antes uma significação mais simbólica. Corroborado
pelo ritmo dos spreads, que faz com
que cada folhear nos apresente uma imagem de conjunto, uma unidade de sentido,
e pela pautada cadência da repetição do texto verbal e os momentos de silêncio
(ascensão num caso, queda no outro), Eu
quero a minha cabeça! é um exercício maior de retórica holística do álbum
ilustrado.
Uma outra interpretação poderia ser tentada, mas
afastar-nos-ia de imediato do seu universo “infantil”, e provavelmente roçaria
alguns abusos interpretativos. Seria uma leitura informada por esquemas, como
dissemos acima, composto de mitemas, elementos mínimos de mitos, mas em vez de
os ler na sua relação com a literatura popular, arrastá-los mais para uma
dimensão mística [se martelássemos a "Viagem do Herói" de Campbell sobre este livro, revelar-se-iam essas tais estruturas mínimas, já para não falar da "Teoria do Buraco" de Vonnegut!]. Afinal de contas, não poderíamos dizer que uma personagem
chamada “Céu”, que perde a cabeça, e procura na ascensão a uma montanha mágica
e depois numa descida ao seu coração, que vai negando ofertas materiais de
várias personagens, para dialogar com uma personagem superior, e para mais
guiada por um animal (psicopompo?), e que encontra um equilíbrio superior no
fim – partilhando espaço com outras criaturas que parece terem aceitado as trocas
combinatórias e materialistas possíveis -, constitui uma parábola?
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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