André
da Loba não concorda com Rita Taborda Duarte. “Concorda” deriva
do latim concors,
concordis,
isto é, “coração” (cor)”
+ juntos” (com-).
O coração de Loba não está junto ao coração de Duarte. Por essa
razão, talvez, este Rotura
e ligamentos,
que poderia ser descrito apressada e sumariamente como “volume de
poesia ilustrada”, são na verdade dois volumes, um de poesia de
Taborda Duarte, outro de desenhos de da Loba, encadernados de maneira
a perfazerem um só volume, um corpo geminado, siamês. Caberá ao
leitor ou leitora manipular o livro de maneira a que, lendo os poemas
e vendo os desenhos, acerte o ritmo de cada um desses corações e,
com os ritmos resultantes, chegue a resultados harmónicos, díspares,
contrastantes, complementares, dissonantes, coincidentes. Há aqui um
Tristão e uma Isolda, como veremos, resta saber se há noite que os
una. (Mais)
Os
desenhos de André da Loba não estão propriamente para os poemas de
Rita Taborda Duarte numa lógica de ilustração, enquanto respostas
ou embelezamento deles. Mas tampouco são os textos da poetisa (de
resto, alguns deles já éditos) escritos de uma forma que os
vazasse num projecto “ilustrado”, o que a autor perseguiu noutras
ocasiões, quer enquanto escritora de literatura ilustrada infantil
(sobretudo com os seus magníficos projectos acompanhada de Luís
Henriques) quer enquanto poetisa onde a imagem ou a materialidade do
objecto-livro não é de somenos. O que ocorre em Roturas
e ligamentos
é uma conjunção, um dar as mãos, que não procura maior
intimidade do que essa, mas cujo entrelaçar dos dedos convida de
imediato a que percorram um caminho paralelo.
No
que diz respeito aos poemas, não somos nós as pessoas mais
indicadas a fazer uma leitura crítica. O livro em si apresenta-se
com três blocos: “Roturas”, “Ligamentos” e “Fractura
exposta”, cada um deles com conjuntos de textos que são mais ou
menos coesos em termos estilísticos e temáticos. Os dois primeiros
constituem uma unidade na divergência, até pelos próprios títulos,
onde em primeiro lugar se auscultam as razões de distância entre um
“eu” que fala e um “tu” que recebe os poemas, e depois,
mantendo a mesma economia narrativa entre essas hipotéticas
personagens, se procuram as razões antes da aproximação, mormente
erótica. O terceiro livro apresenta “instantâneos” (que
recordando-nos uma obra de António Pocinho), em que o poema, a um só
tempo em abstracto mas enquanto objecto concreto, conhece revelações
associadas directamente ao acto fotográfico.
Uma
família vocabular relativamente restrita atravessa todos os poemas,
recordando um António Ramos Rosa ou uma Maria Velho da Costa,
igualmente nas suas dimensões eroticizantes. Mas também o universo
semântico parece vogar em temas mais ou menos restritos: o jardim, o
dicionário, a cama e os eus lençóis, o inevitável corpo e as suas
paisagens e transmutações, cigarros, cachimbos e fumo, folhas de
outono e o Tejo ao fundo, talvez imóvel, e o próprio acto de
escrita e todas as suas fases de labor.
São poemas que poderiam ser ditos “de amor”, que constatam a sua
existência, que assumem mesmo a banalidade da sua existência e das
suas faces/fases. Não se pode, porém, falar de um tom propriamente
confessional, uma vez que a linguagem procura antes efeitos como de
que descrições objectivas. Não no sentido de uma intencionalidade
absoluta de chegar à “verdade”, mas de transformar o descrito
num objecto, com dimensões próprias, peso, textura, passível de
ser deslocado (repare-se no emprego constante de artigos definidos). Isso talvez explique as decisões tipográficas de deixar espaços
pouco naturais na disposição da página: se há casos que podem dar
conta de uma indentação que corresponderia a uma pausa na
oralidade, na leitura, há outros momentos em que se afasta apenas um
ponto, um adjectivo, uma proposição, uma oração inteira,
isolando-os como pequenas pedras.
Os
desenhos de André da Loba seguem um registo quase industrial,
em que as figuras são reduzidas a contornos e porções
diferenciadas apenas suficientes para uma descrição sumária dos
objectos “a ver” (“homem”, “árvore”, “maçã”,
“pulmão”), ou de acções decorrendo explicativamente: “tíbia
quebrando-se”, “maçã que é comida”, “maçã que apodrece”,
“vulcão que expele fumo”, “homem que se torna pedra numa
cama”, “homens combatendo fundem-se em bolha”, “orelhas
formando-se e transformando-se em borboletas que esvoaçam”, etc.
Mesmo a natureza é reduzida a objectos formatados e de manipulação
imediata. O uso de diagramas, esquemas sequenciais, e mesmo questões
de composição, empregando vinhetas marchetadas em planos maiores,
cortes de secção, por exemplo, aumentam esse grau de “ilustração
científica” ou “técnica”, afastando a prática do autor,
portanto, da mais banal e delicodoce das ilustrações para a poesia
que muitas vezes ocorre. Todavia, se tivermos em conta aquela
objectividade a que nos referimos, a concretude das referências e a
recorrência dos objectos, então entender-se-á que há um eco
perfeito entre imagens e texto. Pelo menos a promessa de que haverá
algures um ritmo comum para ambos os corações.
Na
verdade, há mesmo alguma coincidência dos “objectos”. Há
homens e mulheres, mesmo que apenas em três casos haja uma
exploração visual da relação de um com o outro. Há borboletas de
asas abertas, novelos de cabelos, camas e lençóis em desalinho, um
tabuleiro de xadrez, lábios e ossos, rosas e nuvens, pedras, frutos,
árvores de outono, artifícios verdes, fumo e quedas.
Falámos
acima, a propósito da “parte do texto”, de paisagens e
transmutações providenciadas pela ergonomia do corpo humano,
isolado ou em conjunção com outro. Não será de surpreender,
portanto, que na “parte da imagem” André da Loba – de resto,
também isso ponto recorrente na sua obra – explore tamanhos
cruzamentos e mutações. Se podemos identificar uma personagem
masculina e umas quantas femininas (ou interpretar estas como sendo a
mesma mas em “fases” distintas), os seus corpos atomizam-se em
divisões, fatias, secções, elementos: cabeças flutuam,
substituem-se, dobram-se, perdem-se no alto no topo de pescoços
extensíveis, corações estilhaçam-se, tíbias rompem e corpos
tombam, voam, combatem, explodem, fundem-se.
Podemos
encontrar pontos do âmago da divergência do sentido. Rita Taborda
Duarte escreve que “as palavras da poesia não passam de
borboletas/esmagadas/na página do coleccionador://não podem voar”
(“A Palavra no Poema”). Repete não gostar de metáforas e de não
as empregar, ou de pelo menos não as querer demasiado arrumadas,
familiares, prontas. André da Loba, num dos spreads, mostra uma
mulher a ler um livro e, paulatinamente, a mergulhar o rosto nele e,
assim, a levantar voo vertical. Uma vez que o livro permite um
folhear duplo que coloque qualquer poema junto a qualquer imagem,
poderíamos imaginar um momento de maior distância, onde outras
combinações permitiriam, quem sabe, estreitamentos. O título duplo
do livro, então, mesmo que nascendo da conjunção apenas
dos poemas, revisitará o projecto como um todo.
Por associação superficial de uma forma, este livro estaria
eventualmente na senda de um projecto de José Carlos Fernandes, mas
onde neste se procuravam efeitos de recombinação sempre narrativa e
talvez mesmo re-territorializante, Roturas
e ligamentos
almeja – questão será: conseguirá sempre? –
des-territorializar permanentemente a relação entre as imagens e os
textos, presos num leito comum, mas deixando visível a espada que os
divide.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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