Este
rápido post (mas quem queremos enganar?) vem na esteira da leitura e diálogo com Pedro
Franz, a propósito do seu último trabalho e dissertação de
Mestrado. No envio desses mesmos materiais, o artista teve a
gentileza de agregar ainda outras publicações, como o último
número do jornal Suplemento, e o primeiro de Altamira. Mas a grande
surpresa foi o envio de três pequens publicações do artista
Fernando Lindote. Para todos os efeitos, estes três cadernos são
trabalhos de uma banda desenhada “explodida” por dentro,
não-narrativa, não-sequencial, onde por vezes mesmo a figuração
entra em crise, mas nem por isso abdica de estudar a potencialidade
das séries formais ou conceptuais, e as variações/mutações
internas. (Mais)
O
artista brasileiro parece ter trabalhado também nos campos do
cartoon
editorial, mas a sua prática de artista visual estende-se já desde
os anos 1980 e atravessando toda uma série de disciplinas
(performance, instalação, vídeo), em consentaneidade com a prática
artística contemporânea. Importante também neste campo é o facto
de que na sua primeira adolescência, Lindote trabalhou no atelier de
Renato Canini, o “segundo pai” do Zé Carioca, e que havíamos
estudado, pelo menos em parte, num nosso artigo académico primitivo.
No
seu trabalho artístico, Lindote apresentou, em várias exposições,
tais como 1971
– a cisão da superfície
(2012) ou D.C.I.
(Dispositivo de Circulação de Imagem)
(2014), como parte integrante e intrínseca, pilhas de publicações
que os visitantes poderiam levar consigo. Algo que já foi
experimentado por muitos outros artistas, sem dúvida, transformando
essas mesmas peças em esculturas ou instalações “mutáveis”
conforme a visitação (Pedro Franz seguiria o mesmo método no seu
projecto). Pelo que entendemos, existiriam cinco publicações
distintas, todas elas impressas em papel barato, quase de jornal, em
quadricromia, e em pequenos formatos próximos aos das revistas
encontráveis nas bancas no Brasil, desde ca. 26 x 18 cm (próximo de
um comic
book
norte-americano) a entre 13 x 20 cm. (o clássico “gibi”). Aliás,
de acordo com as informações dadas por Pedro Franz, um sexto título
era disponibilizado numa banca verdadeira, de um jornaleiro, exterior
mas próxima ao espaço expositivo.
As
publicações em si não parecem ter título, mas no interior surgem
informações de autoria, citando “desenho” e “concepção”
(do próprio Lindote) e “editoração” e “edição” noutros
casos (de Fernando Leite). 1971
– a cisão da superfície
surge numa das publicações, e parece-nos que, oficiosamente, cada
um deles terá um título específico, mas ele não se encontra na
própria publicação. Seja como for, se todas elas podem ser
consideradas como parte de um conjunto maior, passível de uma
leitura conjunta (um pouco à la Building Stories
de Chris Ware, se bem que neste caso os elos narrativos, conceptuais
e figurativos sejam bem mais convencionais e fortes), ao mesmo tempo
elas possuem individualmente características materiais e de
estratégias de representação específicas, o que as torna
autónomas entre si.
De
facto, a publicação menor, impressa em papel amarelo, parece
apresentar variações em torno de um mesmo tema figurativo, a saber,
o papagaio, vogando entre representações o Zé Carioca e a de um
papagaio realista (se bem que um tem um charuto na boca, quiçá de
uma publicidade conhecida, já que as imagens da personagem da Disney
são facilmente identificáveis nas suas fontes: Canini, claro está,
mas não só). O traço parece ser sempre da mesma lavra, desenhos
toscos em contornos inacabados, com sobreposições várias e
apontamentos de cores “selvagens”. Uma das vinhetas da capa
mostra o edifício do Congresso, mas de pernas para o ar. Haverá
aqui uma forte tentação em fazer uma leitura relativamente óbvia e
bacoca de um comentário em relação ao estado da política do
Brasil...
A
outra publicação a que tivemos acesso, também de formato “gibi”,
parece ser menos concentrada em termos de “temas” e “objectos”
figurados, vogando pelas mais dípares presenças (personagens
humanas, paisagens urbanas minimalistas, um retrato de um homem mais
realista, um astronauta, vinhetas ocupadas por figuras geométricas
simplificadas, outras por fragmentos de personagens Disney, e ainda
objectos semi-abstractos e semi-tecnológicos, recordando, em parte,
o trabalho de C.F., por exemplo. Muitas das vinhetas apresentam
rectângulos vazios nos cantos, recordando as legendas e didascálias
típicas da banda desenhada, reforçando assim a ideia de um desejo
em narrativizar em abstracto aquilo que jamais se chega a
concretizar. Não há propriamente um ciclo de recorrências aqui,
que permitisse criar sequer um “fantasma” de narrativa, mas a
própria existência num diagrama típico da banda desenhada abre
essa possibilidade.
Finalmente,
a maior publicação, parece apresentar planetas, corpos cósmicos e
monumentos mais ou menos figurativos, por vezes incluindo cor, outras
espraiando-se em toda a páginas mas dividido pelas vinhetas enquanto
super-estrutura. Também aqui surge o Congresso e um Zé Carioca
truncado, tal como na contra-capa há duas vinhetas que estabelecem
uma rima visual entre um avião comercial por sobre o Congresso e um
Zeppelin sobre uma formação rochosa conhecida por mesa. De Zardoz
a Kirby, e com fugas para essas referência do mundo real, esta
revistinha abre ainda outras formas de manipular a informação e as
associações a que o leitor-espectador é convidado.
Além
disto, em termos de conteúdo, mas também de materialidade, espectro
cromático e até de estratégia de “migração de dispositivo” e
relação com leitor-espectador, as publicações de Lindote são
muito aparentadas a um projecto de Matt Mullican e Lawrence Weiner,
In
the Crack of the Dawn,
que já citámos em duas ocasiões neste espaço. Não há como saber
se existirão ou não contingências que permitissem uma maior
aproximação, fora de uma entrevista ao artista, mas os elementos
coincidentes são notórios, revelando-se algumas preocupações
análogas, se bem que o projecto dos dois autores norte-americanos
reflicta mais assuntos relacionados com espaço, urbanidade e
abstraccionismo, do que o voo mais amplo de Lindote.
Aliás,
um dos aspectos que o próprio Lindote aponta é de que, se numa
primeira abordagem a relação com o espectador é a mesma para com
uma escultura-instalação, mesmo que haja um grau de interacção
possível que leva aquele a alterar a forma do objecto à medida que
o tempo passa e os visitantes levam as revistas, num segundo momento
dá-se o “acesso a outras imagens contidas nessa espécie de
interior da escultura” (Lindote, parafraseado por P. Franz), e
espoletando um processo de circulação maior. Quase que se poderia
dizer, se nos recordarmos da noção de Ph. Dubois do dispositivo,
que haveria aqui uma “migração de dispositivos”, se bem que do
ponto de vista estritamente da banda desenhada – de que não parte,
uma vez que a prática, mundo social e institucional de F. Lindote é
o das artes visuais – haveria antes um “regresso” ao
dispositivo convencional: a circulação de um objecto reproduzido de
consumo individual e de leitura.
De
resto, essa amplitude temática, figurativa, material, compositiva,
está em consonância, parece-nos, com a sua prática artística, que
igualmente elege ocupações do espaço das mais diversas formas, e
configurações que tanto nascem da bidimensionalidade da pintura, em
superfícies planas ou anfractuosas, como na integração de objectos
tridimensionais que as expandem e teatralizam.
Para
P. Franz, a noção que as “HQs” de Lindote lhe parece mais
despertar é a do infranarrativo de Th. Groensteen. Não existindo
“coerência imediata” entre as imagens, para mais figurativas –
sombras e excertos do Zé Carioca, pedras-totems flutuantes -, a sua
integração numa maquinaria (dispositivo, técnica, estrutural)
típica da banda desenhada convida a uma leitura sequencial e
narrativizante da parte do leitor, mesmo que a construção do
sentido jamais atinja um nível fechado e decidido.
Nota
final: agradecimentos a Pedro Franz pela oferta das publicações e
todas as informações.
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