Como é natural, acompanhar todos e
quaisquer livros produzidos nos últimos anos de vários quadrantes
geográficos e estilísticos não é possível, mesmo que haja razões
para, ao nos interessarmos por um determinado autor, ser desejável
acompanhar de maneira sustentada o seu percurso. Há quase dez anos,
faláramos de La Torre Blanca, de Pablo Auladell. E apesar de
nos cruzarmos aqui e ali com o seu trabalho de ilustrador e de autor
de bandas desenhadas, foi preciso atravessar um deserto para ter a
oportunidade de desembocar num projecto de grande fôlego. Este
volume com mais de 300 páginas é uma adaptação livre do famoso
poema de John Milton. Tendo começado num momento que se veria
interrompido, e fruto de transformações internas, esta é a sua
forma final. Desta feita então, Auladell empresta as suas figuras
quasi-andróginas, pequenos títeres de grafite, para dar corpo a uma
encenação que ronda a vontade e autonomia, o amor e a entrega, a
glória e a solidão, a distribuição de poder e o sonho, ou até
mesmo a mais profunda natureza humana, levada a cabo por seres que,
em princípio, estariam longe das suas paixões. (Mais)
Uma das transformações
necessariamente operadas pela própria existência das estruturas
clássicas da banda desenhada é a claríssima inscrição de
Lúcifer/Satanás como protagonista deste livro, mesmo que o
arco principal das acções sejam desencadeadas sobre ele, e
não por ele. Para além das necessárias alterações de um
poema épico para a uma obra de banda desenhada (a eliminação da
matéria textual, a redistribuição do que “sobra”, a redução
de 10 para 4 livros, etc.), é Satanás quem surge na capa, quem abre
a sequência de imagens e quem ocupa a maior parte dos episódios do
livro. Significativamente, todavia, se é ele quem abre a narrativa –
com conhecimento do poema, ou na retrospectiva desta leitura, os
leitores aperceber-se-ão de quem são as personagens que acordam no
quarto do Céu -, não é ele quem a fecha, sendo esta atenção
votada antes aos, afinal, novos protagonistas do mundo que Milton
descreve: o homem e a mulher, Adão e Eva, expulsos do Paraíso pelo
arcanjo Miguel, e que colocam assim em movimento todo o edifício da
História humana (do ponto de vista teológico ou mitológico ou
poético).
Existem inúmeros pormenores de acções
e conversas que são eliminados, como é de esperar, mas o objectivo
de El paraíso perdido não é, de forma alguma, criar uma
versão “de consulta fácil” que evitasse a leitura do poema.
Pelo contrário, é um livro que exige a leitura do texto original
para que depois se compreenda o alcance das suas transformações,
ainda que estas, como veremos, não sejam demasiado vanguardistas,
por assim dizer.
Não faz sentido aqui analisar ou
estudar os sentidos de um texto literário tão complexo e com uma
história crítica tão longa e espessa (já para não falar da sua
existência textual, em renovações constantes). Não é nosso
propósito, nem capacidade teríamos para o fazer. Não há dúvida,
porém, que esse é um caminho quase necessário de modo imediato, um
estudo comparado ou genealógico de como o texto de Milton é
versado, como um líquido, por Auladell, e como esse líquido ganha
nova forma. A adaptação operada pelo autor espanhol não é, de
forma alguma, uma que procure fundar novos modos de o fazer, isto é,
não há disrupções significativas na ontologia da banda desenhada
(não se trata do Castelo de Kafka versado por Deprez, nem da
manobra de diversão de John Caldigate de Trollope por Simon
Grennan, ou a aventura de debilitação da forma da Cidade de
Vidro de Auster por Karasik e Mazzucchelli). Aliás, há pelo
contrário uma maior concentração nos acontecimentos,
subsumindo-se, portanto, os versos de Milton a um programa narrativo
claro: a batalha e queda de Satanás e os “seus” anjos, a busca
por uma solução no Abismo, a conspurcação do Paraíso, a queda do
Homem, o castigo segundo aos (agora) demónios e a expulsão do Éden.
Apesar de se manter a voz do narrador poético, nas suas invocações,
sob a forma de legendas, a navegação das vozes das personagens por
balões de fala e legendas deslocadas espacialmente, e uma estrutura
cronológica não-linear, que respeita a original de Milton, a
concentração imagética-accional torna este livro mais centrado nos
acontecimentos e na causalidade dos episódios. Nem toda a trupe de
personagens está presente, ou algumas figuras tornam-se bastante
secundárias, não ganhando a voz que continham no texto original,
mas mais uma vez isso é fruto da criação de uma “história”
perseguida neste volume.
Aliás, a causalidade é precisamente o
ponto nevrálgico da versão de Auladell. Algumas das suas escolhas
entre texto, imagem e espaços da diegese são claros quanto a esse
propósito. Se algo se torna claro, é a própria indecisão de quem
seria o “último culpado”: o próprio Lúcifer, pela sua soberba
ou amor de uma liberdade total? O Homem, por não se precaver da sua
queda adivinhada? A Mulher, por ser retratada como mais permeável à
adulação? Deus, por provocar afinal os mecanismos que levariam a
tal desfecho? Esta é uma decisão que caberá ao leitor deste
livro (do poema, os instrumentos encontrar-se-ão no texto e na sua
crítica). Lúcifer não surge propriamente como uma figura salvífica
ou prometeica, mas tampouco as promessas de Deus e dos anjos parecem
claras. Todas elas apresentam os seus defeitos, e até as figuras do
Pecado e do filho que teve com Lúcifer, a Morte, surgem como
personagens singulares em busca dos seus papéis, à la Pirandello.
Independentemente das muitas citações de bolso arrancadas a
Paradise Lost, o confronto do leitor com as figuras de tinta
(versos ou desenhos) deslocará personalidades menos uniformes.
O poema original foi alvo, durante a
sua “vida activa” (isto é, sob a direcção do seu autor), de
várias edições ilustradas, umas mais famosas que outras e, como se
sabe, seria extremamente influente na História da Arte. Auladell
conhecerá sem dúvida essa história, tal como a própria
desenvoltura da pintura ocidental, da qual bebe claramente ao longo
destas páginas. A própria abordagem pictoral, atmosférica,
nebulosa, e onde se notam todos os apontamentos dos pincéis
arrastados e grafite, uma paleta drasticamente reduzida e em que as
presenças têm um valor também simbólico, aqui e ali alguns
craquelées, ou efeitos de tramas de impressão (eventualmente
“erros” de resolução mas que contribuem para a flutuação
material das imagens), a diferença contrastante entre os balões de
fala, coloridos sem gradientes, as letras não diferenciadas entre
cada personagem, somente apresentando-se caligráficas e sem serifas
para as falas e romanas para as legendas, tudo isso enfim, convida a
uma leitura sobretudo plástica. Acresce a isso a própria figuração
e composição das imagens em si, que poderão recordar nomes tão
distintos como Ghirlandaio, Piero della Francesca, Rafael, entre
tantos outros. O arcanjo Miguel, por exemplo, surge muitas vezes em
planos aproximados, a três-quartos, a olhar directamente para nós,
recordando muitos retratos renascentistas onde uma súbita intimidade
e humanismo é apreendida. Auladell segue os mesmos processos, mas
para criar mecanismos de alguma distância, o que consegue pelas
posições hieráticas de quase todas as personagens, e o leque
relativamente estreito de emoções expressas pelos rostos. Mas essa
natureza bebe igualmente de outros momentos da história da arte: as
figuras muitas vezes abandonam essa elegância renascentista esperada
para se entregarem a distorções físicas monumentais,
anti-anatómicas, de escorços impossíveis, ou até épicos, que
poderão recordar William Blake (um dos ilustradores do poema de
Milton) ou Modigliani. Alguns dos espaços, com poucos objectos
dispostos teatralmente, poderão tanto recordar os cenários de um
Bosch como de um De Chirico.
Estes, sejam as abóbodas celestes
emergindo das nuvens, o jardim do Éden disposto esquematicamente, ou
os planos de conjunto dos exércitos angelicais, seguem sempre regras
de disposição clássicas e tiram partido da perspectiva
atmosférica, que dá um ambiente aveludado e difuso a tudo
(independentemente dos “lados” a que passem a pertencer: Céu,
Inferno, Abismo, rios infernais, Éden, espaços no meio). Em parte,
a ambivalência das personagens está presente igualmente nas
mutações delas, com os rostos entrando e saindo de formas mais
aquilinas, bestiais, crescendo de tamanho, assumindo de forma mais
visível as paixões que os animam. No que perdemos de acesso às
mentes e espíritos das personagens, ganhamos na sua vontade anímica
e formal de escapar dos grilhões dos seus papéis, e na
redistribuição das suas fortunas. Estando longe do Conte
démoniaque, de Aristophane, é porém uma forma curiosa de jogar
com as figuras infernais para fazer pensar na condição humana, de
modo mais decidido do que outras abordagens mais fortuitas às
“mesmas personagens” e/ou “histórias”, que poderão ocorrer
na banda desenhada mais popular.
Estas referências todas – e tantas
mais poderiam ser arregimentadas! - não servem, como se poderia
esperar, para dar algum tipo de gravitas à obra de Auladell,
uma espécie de patina emprestada que fosse um garante de qualidade.
De uma certa maneira, recorda antes uma espécie de diálogo de
referências visuais, com uma memória da arte ocidental, que recorda
os livros de gravura de Frédéric Coché, no qual se jogam ligações
mais ou menos nítidas, mais ou menos teatralizadas, mais ou menos
instrumentalizadas para oferecerem uma corporealidade aos conceitos
esgrimidos pela “história”. Também poderíamos discutir como
Deus é representado como uma espécie de tonitruante Marlon Brando,
uma majestade a um só tempo real, distante, poderosa e
suficientemente amaneirada para se perceber como inspira ódio e
desejo de liberdade da parte dos anjos revoltosos e obediência da
parte dos que se manterão no reino celeste.
Onde narrativamente há uma busca por
uma clareza e relação nítidas entre acontecimentos e personagens,
as imagens procuram criar essa visualidade mais difusa. Contudo, até
pelas escolhas de composição de página do autor, estamos perante
um projecto mais convencional do que poderia ser. El Paraíso
Perdido, de Auladell, é menos “moralista” do que
“ambiental”. Apropriado à distracção do século XXI?
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