20 de dezembro de 2015

Jim Del Mónaco: O cemitério dos elefantes. Tozé Simões e Luís Louro (ASA).

Antes de entrarmos na leitura propriamente dita do livro temos de fazer um pequeno desvio teórico, já que não se pode ler este volume no vazio. 

A técnica de leitura crítica mais comum na ciência literária durante o século XX é o que se chama “close reading”, isto é, para seguir uma das suas definições, uma “observação cuidada, a leitura sustentada e concentrada de um texto” (Matthew Jockers), procurando compreender os mecanismos do seu funcionamento, construção de sentido, estilo, etc. Esta foi uma técnica empregue desde os anos 1930, com o surgimento do chamado Novo Criticismo, mas atravessaria várias instâncias e transformações à medida que foi informado pela desconstrução, os estudos culturais, o feminismo, os estudos pós-culturais, etc., cada qual expandindo a forma de atenção e a sensibilidade de como um texto respondia à textura social e cultural em que se integrava (em sistemas concêntricos sucessivos: cultura local, regional, nacional, linguística, artística, europeia, global, etc.). Estas questões, é preciso dizê-lo desde já, não são de todo impertinentes em relação à banda desenhada, uma vez que enquanto disciplina artística e texto, ela faz parte da esfera pública. Para mais, a ciência literária é uma das áreas que mais tem influenciado a crítica de banda desenhada, aspecto que nós assumimos pessoalmente, sendo essa precisamente a nossa formação (não perdendo porém a ideia de que sendo uma disciplina específica, e visual, tem instrumentos distintos da literatura). (Mais) 

Ora aquilo a que queremos chegar é que mais recentemente, graças a uma noção fundada por Franco Moretti, estabelecida em “Conjectures on World Literature”, o que é preciso acrescentar, mais do que substituir, é uma “leitura distante”. O que isto quer dizer, parafraseando (e simplificando, talvez) Moretti, é que é necessário olhar para além de um número fechado de textos (um “cânone”) e atingir um nível quer menor quer mais alargado que os próprios textos, que o teórico exemplifica em “mecanismos, temas, tropos – ou géneros e sistemas”. O autor aponta para o perigo de que esse tipo de leitura poderá apagar o texto em si numa enxurrada de outros textos, e de conjunturas, mas que esse é o preço a pagar em nome de uma compreensão de enquadramento mais alargado. Estamos em crer que a leitura deste derradeiro volume de Jim del Mónaco deve ser lido precisamente não de uma forma individual e isolada (se bem que seja necessário ler e perceber os seus “mecanismos, temas, tropos”), mas no seio de um contexto muito mais alargado, que não tome somente em conta o contexto imediato da banda desenhada portuguesa contemporânea, onde ele já não se destaca enquanto forma material, fórmula narrativa e estilística, ou sequer projecto autoral como poderá ter ocorrido na sua “vida primeira”, mas também se compreenda em duas visões historicamente alargadas ao máximo: por um lado, o desenvolvimento da banda desenhada nos últimos 20 a 30 anos em termos de representação cultural e maturidade política, e por outro, um cada vez mais cuidado entendimento da sua história, mergulhada no cadinho cultural mais lato, e não apenas “especializado” (ou seja, o seu “género” e os “sistemas” em que se encaixa).
Evitar então o tom celebratório de um mero “regresso”, como se essa fosse condição suficiente para que o gesto autoral e editorial seja visto de modo positivo e, as mais das vezes, acriticamente. Faremos pois, como noutros casos, tanto uma “leitura atenta” como uma “leitura distante”, mas sem procurar justificar o texto por condições externas: tão-somente aquelas que estão indicadas na própria criação.
Dizemos isto porque a primeira grande surpresa é algo a que podemos chamar de “a falta de distância” entre este novo volume e aqueles a que ele se associa na sua vida autoral. Ao passo que poderíamos fazer uma comparação com, por exemplo, os álbuns de Filipe Seems, de Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves, no sentido de termos os autores a revisitarem bem mais tarde uma personagem que fizera um momento da história das suas carreiras e até da banda desenhada portuguesa, essa comparação serviria para assinalar o modo como Silva e Gonçalves procuraram revisitar o seu projecto com sensibilidades e métodos de trabalho entretanto conquistados, ao passo que Simões e Louro pura e simplesmente revisitam as mesmíssimas fórmulas, e aparentemente sem preocupação de alterar os propósitos.
Estilisticamente, não há grande diferença. O traço de Louro segue a sua costumeira distorção física caricatural e grotesca, longe das primeiras aproximações a Torres, mais classicizantes e elegantes. Será eficaz nos momentos mais abstrusos e cómicos, nas transições que procuram uma surpresa de acção, mas acaba por fazer cair também no cómico os momentos em que se desejava alguma gravidade, eroticidade, calmia. As cores digitais podem ser competentes, mas servem uma economia de representação tão sumária, que não sobressaem de modo particular. Quanto às narrativas (este livro reúne quatro curtas aventuras, a maior não ultrapassando as dezasseis páginas), não são mais que breves anedotas, e não propriamente estruturas complexas, quase todas em torno de revelações súbitas que em nada estavam preparadas na diegese. As acções sucedem-se em fila, sem qualquer tipo de preocupação em buscar diferentes modos de apresentar o tempo, a necessidade das acções, as consequências das mesmas, o retrato emocional das personagens, etc. Aliás, grande parte das histórias tira partido narrativamente das legendas do narrador, e “didascálias”, e não propriamente das acções necessárias das personagens. Muitos dos elementos, sobretudo as “referências culturais” (a filmes, séries de televisão e outros apectos da contemporaneidade), são enfiados à última da hora ou de uma maneira tão gratuita que o seu hipotético fito satírico é falho. A catadupa de trocadilhos (os nomes das tribos, das personagens, etc.) é de tal monta que rompe o saco da pertinência.
Em contraste com outros títulos desta série, com o qual este deseja dialogar numa lógica de comemoração, O cemitério dos elefantes não é de forma alguma um eficaz acrescento às aventuras escapistas e juvenis de outrora. Nesse sentido, parece mesmo uma dessas tentativas falhadas de recuperar glórias do passado mas repetindo-lhes os mesmos problemas e não procurando compreender que transformações seriam necessárias para a sua pertinência actual (o caso de Astérix, de Corto Maltese, entre outros); já abordaremos essa repetição. No panorama actual da banda desenhada portuguesa, em que a oferta provinda de vários sectores, nomeadamente de plataformas editoriais menos volumosas que a Asa, mas possivelmente mais diversas e atentas às tendências da arte dos nossos tempos, este novo volume da personagem dilui-se quase de imediato em termos artísticos, literários e até de relevância cultural. O preço do “regresso” em nome da idolatria é alto. 
O problema maior está na matéria de representação da série, claro está. O colonialismo, a distribuição de papéis e poderes, a representação dos africanos. Luís Cunha, investigador académico da Universidade do Minho que tem dedicado alguns dos seus estudos à representação do negro na banda desenhada histórica e contemporânea portuguesa, fala de uma topografia da alteridade, no sentido de um discurso que retrata o outro (neste caso, o negro africano que entrava em contacto com a realidade de quem fala pelo esquema do colonialismo) a partir de um conjunto de traços que contemplam igualmente outras tantas características elididas
É curioso que se fale, por exemplo, de um “colonialismo de pantufas”, o que assinala precisamente o divórcio de Jim Del Mónaco de dialogar com a realidade histórica do colonialismo, português ou outro. Todavia, é precisamente por entrar nesse campo de fantasia leve, de brincadeira generalista, que acaba por contribuir ou confirmar os mitos existentes dessa mesma realidade. A de que, por exemplo, o colonialismo português não foi assim tão mau ou violento como isso, que existia um grau de contacto com a população local benfazejo, ou, pior ainda, que a nossa missão civilizadora era de facto positiva e inevitável – e é inegável, aqui como noutras paragens (veja-se o trabalho de Mark McKinney sobre a realidade francófona), a banda desenhada foi um importantíssimo instrumento de propaganda, aculturação e naturalização dessa realidade, sobretudo junto ao público mais popular (ainda hoje muitas pessoas pensam mais a história através dos mitos que conhecem dos discursos populares do que dos esforços políticos variados que tiveram lugar em vários momentos e paragens).
A forma como os africanos são representados mostra-os como naturalmente submissos. Repare-se que, para além das tribos aqui surgidas, todas elas representações tão paródicas como abjectas (sejam zombies ou taradas sexuais que afinal são alienígenas, são sempre selvagens), vivem sob a necessidade do apoio de médicos, cientistas, líderes europeus brancos e o seu providencialismo. Duas das aventuras, procurando temas tão espatafúrdios como afastados, dispensam mesmo personagens africanas locais: estes são apenas cenário como as árvores.
Poder-se-á dizer que ninguém fica bem na fotografia. Que tudo isto é sátira e todos são caricaturados. Que isto é apenas um scherzo. Certo. Todavia, mesmo esquecendo que o efeito da caricatura não é o mesmo conforme quem se expressa, quem é retratado e que relações de poder existem entre essas personagens, temos mais papéis individualizados e trabalhados nas personagens brancas (basta pensar na quantidade de personagens que são decalcadas de personalidades famosas) do que nas negras, substancialmente mais comutáveis entre si e variações dos supostos modelos (atente-se, por exemplo, aos instrumentos dos desenhos, na figuração individualizante, ou não, das personagens – as negras, independentemente dos seus papéis ou proveniências, e mesmo com diferenças de linguajar, têm os mesmos princípios físicos de representação). A subalternização dos africanos, contumaz numa veia da banda desenhada, portanto, não é jamais contrariada nesta obra. A assimetria da representação continua.
A questão da sexualidade mereceria uma análise mais pormenorizada (lá está, um dos tropos da obra), mas acreditamos que seria uma tarefa repetitiva e fastidiosa, já que não há qualquer subtileza nessa exploração. Bem pelo contrário, há um total abandono pela brejeirice mais primária, mas a qual, mais uma vez, sublinha uma distribuição estereotipada que não é contradita pelos autores: a sexualidade é província dos “selvagens” e das “mulheres”, não dos heróis.
Se crermos que – e que fique claro, não o cremos – a série durante os anos 1980 ou 1990 espelhava uma espécie de “inocência da sátira”, “própria do seu tempo”, repetir os mesmos mecanismos em 2015 é insustentável. Quando é que o estereótipo deixa de “ser do seu tempo”? Quando é que será correcto corrigi-lo? Haveria muito a aprender com obras até convencionais: apenas a título de exemplo, veja-se como Trafics en Afrique, o 18º volume das aventuras do inspector Bayard (de 2010), de Jean-Louis Fonteneau e Olivier Schwartz, segue passo a passo os mecanismos da “aventura escapista juvenil” clássica da banda desenhada franco-belga, mas sem repisar os mesmos problemas de representação, antes pelo contrário, dá espaço a um saudável reequilíbrio das relações.
A questão, para a colocar de modo simples, é a seguinte: se os métodos de estereotipificação que a série usa para supostamente gozar esses outros tipos de banda desenhada, cinema, televisão, etc. em que eles estão presentes são precisamente os mesmos, e não existe nenhum momento ou filtro que permita entender a distância irónica, mas somente surge como pastiche, não se estará a trilhar precisamente o mesmo caminho? A verdade é que não há, no fundo, qualquer diferença crítica. Como escreve Luís Cunha num dos seus textos, co-assinado por Rosa Cabecinhas (“A estética e o sentido: modos de representar o negro na banda desenhada contemporânea”, em Nação e Estado. Entre o global e o local.): “Do ponto de vista das mensagens implícitas e explícitas, a BD não revelou uma modificação tão notória como à partida esperávamos encontrar… ela não é muito diferente de boa parte da que foi publicada durante o Estado Novo.”
É natural que os defensores da obra poderão arrolar todos aqueles argumentos usuais: “não é para ser levado a sério”, “satiriza tudo e todos”, “estás a ser intelectualóide”, ou o pior de todos, “isto é só uma bedê” (dito tantas vezes pelos próprios que pretendem “defender” a área artística). Isso é, porém, uma falha de argumentação, na verdade, já que são respostas mecânicas e que não procuram ler os mesmos elementos que se apontam e tentar lê-los de modo diferente, digamos, positivo. O que será difícil.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

1 comentário:

José Sá disse...

Olá Pedro,
Quando começaste esta entrada pela definição de “leitura próxima”, eu de imediato associei que para mim esta obra seria logo à partida uma “leitura afastada”. Imagina a gargalhada ao perceber uns parágrafos mais adiante que esta piada fácil, salvaguardado o desrespeito, já tinha sido inventada pelo Franco Moretti. Certamente, cometi aquilo a que se costuma chamar de “plágio subconsciente”. Ora esta última noção também me parece muito ligada ao universo do “Jim del Monaco”, para dizer o menos da sombra que a percorre e que, penso, referes de forma timidamente sucinta, desde logo pela homenagem ao Daniel Torres que se percebe na reprodução escâncara da abordagem deste à linha clara, já ela própria uma vénia também a outros autores, como num “mise en abyme”, um truque optico também de outros tempos. Mas a lembrança automática de Roco Vargas e de Opium que bastam duma observação distante sem tocar as páginas do livro, pelo que percebo do pouco que vi e do muito que nos dizes, adensar-se-á (se não resistirmos) a cada aproximação da leitura por ter demasiados pontos de contacto com o universo satírico do autor catalão valenciano, percorrido por personagens clichés a debitar desenfreadamente lugares comuns a 100 vinhetas à hora.
Confesso que aprecio moderadamente os dibujos do espanhol e só mais um “poucachinho” a forma sortida mas equilibrada como ele distribui pancada entre o bem e o mal nas suas histórias. Esse equilíbrio é a chave, doses iguais de afrontamento revelam, paradoxalmente, respeito pelas personagens e pelo leitor. O Jim Del Monaco and friends sofre inevitavelmente na comparação e assim o retro dá lugar ao serôdio, duma vetustez confrangedora que não sobrevive à erosão do tempo, mas cuja análise, vê lá tu :-), tem importância relevante e não pode ser ignorada face ao sucesso aparente que a obra teve/tem(?) junto do público. As filas para as bancadas de autógrafos e volumes do “cemitério” que vi debaixo do braço no Amadora BD pareceram-me um indicador da adesão do público e revelam que, em comparação com um elefante, o passado é uma coisa muito mais difícil de ser enterrada por mais Kannemeyers que do outro lado apareçam a fazer-lhes um conguito.
Mais uma vez parabéns e obrigado pela lucidez e pela objectividade.
Aquele Abraço
José