Kong
é, em larga medida, um devaneio do seu autor pelas terras da
homenagem a um dos mais famosos ícones do cinema popular
norte-americano de todos os tempos. Mas Kong,
the King não
é propriamente uma adaptação de um outro texto (fílmica): é
apenas a plataforma textual que o autor emprega para fazer valer os
seus próprios instrumentos. Se o rugido do imenso gorila era o
grande símbolo da outra personagem, a “mudez” deste livro mostra
em grande parte a tranquilidade pedida por Medina. (Mais)
Em
muitos aspectos, sobretudo pelo tom do livro, Kong
não destoaria dos projectos das Graphic MSP, no sentido em se criar
uma história perfeitamente linear, dedicada, concentrada, onde as
emoções exploradas não são demasiado complexas e se cria um
ambiente “bem-disposto”. A “universalidade” do livro é ainda
mais garantida pela ausência de matéria verbal, facilitando (como
se verificou, de resto) a sua edição exterior.
A
história de Medina utiliza o cadinho do filme original de 1933 (e
possivelmente aproveitando aspectos dos outros remakes),
mas está mais interessada nas suas largas pinceladas do que em
elementos específicos e históricos. Parte dessa abertura ou
desinteresse, dependendo do juízo de valor que se entender nessa
relação com o(s) filme(s), está patente na quantidade de
informações “cinéfilas” ahistóricas espalhadas na narrativa
de banda desenhada, que bebe mais de um imaginário genérico,
estereotipado, suficientemente familiar, do que de uma visão interna
dos mecanismos de qualquer experiências em particular
(a
incómoda adaptação de Kong à vida da cidade pode ser reminiscente
de Tarzan’s
New York Adventure,
ainda com Johnny Weissmuller, por exemplo). Parte desses estereótipos
estão presentes, mas se alguns são desmontados e apresentados de
modo diferente – nomeadamente, Kong passando de gorila a “selvagem
ingénuo”, escondendo pequenos aspectos divertidos que vão sendo
explorados -, outros mantêm-se – como o do produtor, que deveria
estar demasiado próximo do judeu caricatural para o conforto de
leitores contemporâneos.
Temos
portanto uma equipa de filmagens à procura de elementos exóticos e
filmados num local remoto do “mundo civilizado”, mas em vez de
encontrarmos uma estranha cultura humana e selvagem com um ritual em
torno de um monstruoso símio, encontramos somente uma natureza
indomável e perigosa, cujos riscos são minimizados pela súbita
aparição de Kong, um homem de aparência africana (ainda que tão
mitificada quanto as das tribos de King
Kong),
tão simpático e dedicado à natureza benéfica quanto pronto a
corrigir aquela vista como maldosa (quer dizer, em Kong, reitera-se a
ideia de que as cobras são más e os passarinhos bons, instilando
vontades morais na natureza). Esse encontro leva a que ele seja
“convidado” (pelo engano, mais do que pela captura) a viajar até
aos Estados Unidos – tão míticos como a ilha de onde partiu – e
entrar numa lufa-lufa que o faz atravessar vários palcos das
indústrias do entretenimento. Ao mesmo tempo, esse confronto com um
mundo material diferente vai colocá-lo contra pequenos desafios a
nível moral e ético (os vícios surgem como uma panóplia
expectável: o fascínio pelo jogo, a luta, o dinheiro, o conforto
material, os divertimentos nocturnos, o sexo, o tabaco e o álcool, a
fama, etc.),mas que Kong supera da maneira mais simples, dada a sua
“inocência primitiva”. Kong não chega, no fundo, jamais a
perceber o fundo desses prazeres para os aceitar sequer
superficialmente.
A
história é assim uma sucessão de episódios de contraste entre a
suposta inocência e ingenuidade de Kong e todos os aproveitamentos
interesseiros de quem o rodeia na “América”. No fundo, a
personagem em si não tem qualquer curva de aprendizagem – não
estamos perante uma história de redenção, mas tampouco de queda da
inocência ou algo assim; o regresso de Kong à sua ilha mostra-o
tão-somente interessado em partilhar a “aventura”, mas sem lhe
alterar a natureza. Esta é imutável, o que em si mesmo é um
comentário perante o que se entenderá ser o âmago dessa
existência, em contraste à do “mundo” (isto é, a sociedade
moderna, industrial, maquinal, abandonada aos prazeres do
entretenimento, etc.).
A
candura de Kong está associada a uma existência infantil, que se
vai mostrando incólume – apesar da sua participação recorrente
em filmes e projectos de publicidade – à passagem pelos “pecados
do mundo moderno”. Daí que se explique as suas saudades e o
irreprimível regresso.
Primeira
obra a solo de Osvaldo Medina, o autor faz o seu desenho
concentrar-se numa certa rapidez e desenvoltura (treinada
exaustivamente na produção de filmes de animação, nos quais o
autor trabalha como profissional), o mais provável com pincéis que
deixam visíveis a urgência da passagem do seu pulso, em que muitas
das formas (seja de personagens ou de objectos) são compostas de
modo sumário mas decidido, complementadas depois por pinceladas de
pormenor e aguadas a cinzento que trazem sombra, textura,
dimensionalidade e concentração das formas. O equilíbrio entre
vinhetas buriladas (sempre à mão) e a ausência delas, composições
ortogonais versus splash
pages
e double
spreads
utilizados parcimoniosa e significativamente, e um sem número de
recursos gráficos e visuais que tornam a navegação da obra
dinâmica e variada, facilitam igualmente a leitura de Kong,
tornando-o num livro de grande acessibilidade.
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