30 de dezembro de 2015

Kong, The King. Osvaldo Medina (Kingpin Books)

Kong é, em larga medida, um devaneio do seu autor pelas terras da homenagem a um dos mais famosos ícones do cinema popular norte-americano de todos os tempos. Mas Kong, the King não é propriamente uma adaptação de um outro texto (fílmica): é apenas a plataforma textual que o autor emprega para fazer valer os seus próprios instrumentos. Se o rugido do imenso gorila era o grande símbolo da outra personagem, a “mudez” deste livro mostra em grande parte a tranquilidade pedida por Medina. (Mais) 
Em muitos aspectos, sobretudo pelo tom do livro, Kong não destoaria dos projectos das Graphic MSP, no sentido em se criar uma história perfeitamente linear, dedicada, concentrada, onde as emoções exploradas não são demasiado complexas e se cria um ambiente “bem-disposto”. A “universalidade” do livro é ainda mais garantida pela ausência de matéria verbal, facilitando (como se verificou, de resto) a sua edição exterior.

A história de Medina utiliza o cadinho do filme original de 1933 (e possivelmente aproveitando aspectos dos outros remakes), mas está mais interessada nas suas largas pinceladas do que em elementos específicos e históricos. Parte dessa abertura ou desinteresse, dependendo do juízo de valor que se entender nessa relação com o(s) filme(s), está patente na quantidade de informações “cinéfilas” ahistóricas espalhadas na narrativa de banda desenhada, que bebe mais de um imaginário genérico, estereotipado, suficientemente familiar, do que de uma visão interna dos mecanismos de qualquer experiências em particular (a incómoda adaptação de Kong à vida da cidade pode ser reminiscente de Tarzan’s New York Adventure, ainda com Johnny Weissmuller, por exemplo). Parte desses estereótipos estão presentes, mas se alguns são desmontados e apresentados de modo diferente – nomeadamente, Kong passando de gorila a “selvagem ingénuo”, escondendo pequenos aspectos divertidos que vão sendo explorados -, outros mantêm-se – como o do produtor, que deveria estar demasiado próximo do judeu caricatural para o conforto de leitores contemporâneos.

Temos portanto uma equipa de filmagens à procura de elementos exóticos e filmados num local remoto do “mundo civilizado”, mas em vez de encontrarmos uma estranha cultura humana e selvagem com um ritual em torno de um monstruoso símio, encontramos somente uma natureza indomável e perigosa, cujos riscos são minimizados pela súbita aparição de Kong, um homem de aparência africana (ainda que tão mitificada quanto as das tribos de King Kong), tão simpático e dedicado à natureza benéfica quanto pronto a corrigir aquela vista como maldosa (quer dizer, em Kong, reitera-se a ideia de que as cobras são más e os passarinhos bons, instilando vontades morais na natureza). Esse encontro leva a que ele seja “convidado” (pelo engano, mais do que pela captura) a viajar até aos Estados Unidos – tão míticos como a ilha de onde partiu – e entrar numa lufa-lufa que o faz atravessar vários palcos das indústrias do entretenimento. Ao mesmo tempo, esse confronto com um mundo material diferente vai colocá-lo contra pequenos desafios a nível moral e ético (os vícios surgem como uma panóplia expectável: o fascínio pelo jogo, a luta, o dinheiro, o conforto material, os divertimentos nocturnos, o sexo, o tabaco e o álcool, a fama, etc.),mas que Kong supera da maneira mais simples, dada a sua “inocência primitiva”. Kong não chega, no fundo, jamais a perceber o fundo desses prazeres para os aceitar sequer superficialmente.

A história é assim uma sucessão de episódios de contraste entre a suposta inocência e ingenuidade de Kong e todos os aproveitamentos interesseiros de quem o rodeia na “América”. No fundo, a personagem em si não tem qualquer curva de aprendizagem – não estamos perante uma história de redenção, mas tampouco de queda da inocência ou algo assim; o regresso de Kong à sua ilha mostra-o tão-somente interessado em partilhar a “aventura”, mas sem lhe alterar a natureza. Esta é imutável, o que em si mesmo é um comentário perante o que se entenderá ser o âmago dessa existência, em contraste à do “mundo” (isto é, a sociedade moderna, industrial, maquinal, abandonada aos prazeres do entretenimento, etc.).

A candura de Kong está associada a uma existência infantil, que se vai mostrando incólume – apesar da sua participação recorrente em filmes e projectos de publicidade – à passagem pelos “pecados do mundo moderno”. Daí que se explique as suas saudades e o irreprimível regresso.

Primeira obra a solo de Osvaldo Medina, o autor faz o seu desenho concentrar-se numa certa rapidez e desenvoltura (treinada exaustivamente na produção de filmes de animação, nos quais o autor trabalha como profissional), o mais provável com pincéis que deixam visíveis a urgência da passagem do seu pulso, em que muitas das formas (seja de personagens ou de objectos) são compostas de modo sumário mas decidido, complementadas depois por pinceladas de pormenor e aguadas a cinzento que trazem sombra, textura, dimensionalidade e concentração das formas. O equilíbrio entre vinhetas buriladas (sempre à mão) e a ausência delas, composições ortogonais versus splash pages e double spreads utilizados parcimoniosa e significativamente, e um sem número de recursos gráficos e visuais que tornam a navegação da obra dinâmica e variada, facilitam igualmente a leitura de Kong, tornando-o num livro de grande acessibilidade. 

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