A produção de livros
ilustrados, sobretudo aqueles que se dirigem em especial, mas não
exclusivamente, a um público infantil, em Portugal, tem conhecido nos últimos
anos, como se sabe, uma curva ascendente no que diz respeito à sua qualidade
global. Há uma cultura visual que se tem tornado cada vez mais premente, uma
dedicação ao burilar do texto atenta às várias dimensões sociais complexas da
contemporaneidade, alianças mais cuidada entre texto e imagem ou à articulação
das imagens na sua possibilidade de leitura, a materialidade dos próprios
livros, a coordenação de políticas editoriais e de colecções mais coerentes,
assim como a fundação de uma cultura no seu pleno sentido. Se as condições de
trabalho, profissionais e financeiras, se alteraram, imaginamos que com dificuldades
ainda sentidas, em termos de recepção crítica e da fundação de uma “comunidade
imaginária” apreciadora é garantida. E os balanços podem ser positivos, se
seguirmos as atentas palavras e ideias críticas
de Andreia Brites, no seu artigo “O perigo do eterno retorno”, na revista Blimunda (no. 32, de Janeiro deste ano). (Mais)
É portanto nesse panorama
colectivo que novos gestos podem surgir que, a um só tempo, não se diluem numa
oferta variada, mostrando as suas anfractuosidades particulares, vívidas, salientes,
e são por essa mesma oferta sustentados, considerando-o como cadinho cultural
dialogante. Com efeito, não se podem considerar factores isolados para criar
juízos de valor – um “bom desenho” (seja isso o que for), uma “boa história”
(seja isso o que for) – e muito menos externos à obra (o autor é conhecido por
x, esta colecção também tem y, é da editora z, etc.). Como diz Yolanda Reyes em
“Como escolher boa literatura para
crianças?”, a questão não é não haver uma boa e final resposta para essa
pergunta, mas sim o facto de não haver “receita”. Isto é, o factor que
determina o que é um bom ou mau projecto arrolará vários factores que nascem,
porventura, nas idiossincrasias do próprio leitor (ou ouvinte), passando pelo
quadro ético e social dos pais ou responsáveis pela criança, que ditarão, pelo
menos em parte, a Weltanschauung na
qual querem que o seu filho cresça e pela qual se oriente, a todos os outros
intervenientes da sociabilização (família alargada, amigos, escola, mediasfera,
sociedade em geral), e, finalmente, pelo pólo de produção que leva à emergência
do livro em si.
Tudo isto para dizer que
são necessárias por vezes todas essas condições se alastrarem para até mesmo se
permitir que emerja um livro da natureza de Com três novelos (o mundo dá
muitas voltas). Todas as suas características materiais e editoriais
apontam para que se trate de um livro para a infância: é um álbum ilustrado
publicado pela Planeta Tangerina, desenhado por Yara Kono, o texto é
apresentado de modo sumário em cada página, a concentração de personagens é
grande, a retórica simples e dirigida. Mas ao mesmo tempo é um livro cujo
alcance político, social, humano, ultrapassa essas “limitações genéricas”, que
muitas vezes servem de baias a leitores apressados, que passam a julgar os
livros por ideias feitas, enquadramentos também eles genéricos, ou também aos
leitores “fãs”, que as mais das vezes apenas repetem abordagens superficiais de
emoções e sensações igualmente preconcebidas (“estilo inconfundível”, “uma
história incomparável”, “sensibilidade magnífica”, “uma obra para todas as
idades” e outras frases de circunstância válida para alhos e bugalhos).
Aparentemente, Com 3 novelos é um livro contado na
primeira pessoa, de alguém que se recorda da sua infância, e cujos pais se
viram obrigados a partir de um país oprimido por problemas para um outro, de
língua e cultura diferentes. Se certas realidades se alteram imediatamente – no
novo país, “todos os meninos vão à escola” e a ruga da testa do pai desaparece
-, outras lentamente começam a parecer-se, a ganhar um mesmo valor de opressão –
há uma monotonia cinzenta no país que os acolhe, uma uniformidade qualquer que
dá a entender certos princípios preocupantes, ao ponto da ruga, mesmo que
pequena, regressar.
Tudo é apresentado de um
modo bastante oblíquo, elíptico. É certo que uma nota editorial no final do
volume aponta uma série de pistas (“Baseada em factos reais”, etc.), datas e
países, associando a primeira pessoa do livro a uma história vivida, a uma
memória real e transmissível, mas até que ponto é-nos permitido lançar uma
leitura autobiográfica num livro que não contêm os elementos que a isso
permite? Ou melhor, tudo é feito precisamente para que se possa fazer uma
leitura dupla (ou tripla), entendendo-o tanto como uma autobiografia
individual, como uma máquina desejante na qual se poderiam espelhar as
experiências de centenas de famílias, experiências que, se em Portugal
corresponderão a uma geração passada que ainda poderá estar em contacto com os
mais jovens, noutros locais poderá estar, ainda,
em curso. Daí que não haja uso de nomes próprios, pormenores da vida familiar,
circunstâncias específicas, mas uma apresentação sumária da situação e dos
agentes, para que se possa imaginar uma maior completude da parte dos leitores.
A nota a que nos
referimos fala sucintamente das realidades oprimidas do Portugal de Salazar e
da Checoslováquia após a sua Primavera de 1968, precisamente mostrando que para
atingir Primaveras e Liberdades (duas palavras-chave no livro), é preciso, como
diz o título “muitas voltas”.
Mas para além da história
imediata, podemos dizer que é como se este livro falasse de um esforço de
democratizar por dentro. Há uma certa
alegria de estar num novo país, que será certamente visto melhor do que aquele
de que se viu obrigada a fugir: há aí mais espaço, literalmente mas também no
sentido de convidar à acção. Mas esta não parece ser suficiente ou
suficientemente variada, e então é aí que o gesto de tricotar, com os elementos
existentes (e isto é importantíssimo), se torna esse acto de expansão, de
democratização. O próprio acto, no seu aspecto técnico – a colaboração de duas
agulhas coordenadas, a convergência de novelos diferentes para criar uma
tessitura unidade e coesa, etc. – poderá ser lida como uma metáfora desse
esforço. Aliás, corroborado pelo facto de que o tricotar rapidamente passa a
outras mãos: nos spreads finais, não
é apenas a mãe da protagonista que tricota, mas outras mães, pais, jovens, e
crianças a brincar com os novelos de lã e as agulhas. O resultado, a partir das
três monótonas cores, são cruzamentos extremamente variados, dos mais simples
aos mais minuciosos e intricados, levando a uma variedade que anuncia a
coincidente Primavera.
Como seria de esperar,
esta história não se esgota na sua matéria verbal. As imagens confirmam o texto
mas vão mais além ou dão-lhe uma padronização vívida. As guardas preparam a explosão
de cor, ou das três cores (mais preto), mesmo que sejam esbatidas, sóbrias. A folha
de título prepara “as armas”. E todas as imagens são compostas ou atravessadas
por padrões – pontinhos, linhas paralelas, cruzes em quadradinhos, linhas
picotadas, quadriculados, combinações de letras tipográficas para criar padrões
– que recordarão os esquemas de ponto. As figuras humanas, mas também os
objectos, têm uma qualidade de combinação das formas que recorda os papéis
recortados, as manchas separadas de serigrafia ou os carimbos, em que cada
membro, tronco, cabeça, parece ter sido construído solitariamente e depois
combinado para a formar. Isto traz uma qualidade lúdica às formas que não
apenas combina com o tom “infantil” da narrativa, como espelha em parte a
combinatória do seu tema. Alguns apontamentos, claríssimos, de colagem (quer de
material “encontrado” quer de elementos gráficos criados pela própria) aumentam
esse grau de dimensionalidade.
Nota final:
agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário