Nem por acaso, havíamos falado de dois
volumes “em biombo” que dois títulos da colecção Leporello da
NoBrow nos chegaram às mãos. Um dos livros “colecciona” ataques
de criaturas monstruosas nos altos mares, mostrando desde criaturas
mais ou menos generalistas, como dragões, narvais e lulas gigantes,
a figuras possivelmente específicas, como Cila, a tartaruga Zaratan ou o
pássaro Gandaberunda, e mostrando navios de vários momentos da
história, de gregos a vikings, de barcos mercantis holandeses a
hidroaviões franceses, de paddle steamers a juncos chineses.
O outro sobe uma montanha, de faces coberta de neve, do sopé ao
pico, e desce pelo interior da terra, escavando um buraco até ao
momento em que se encontram as profundezas do oceano. (Mais)
Ambos os ilustradores, o francês Nicolas André e o dinamarquês Kellie Strøm, são meticulosos, e trabalham em várias escalas, permitindo que se possa ver a imagem na sua totalidade, estendida e aberta, mas também meios-planos e depois planos de pormenor. Ambos os livros, ainda, estão impressos dos dois lados, e as capas são como que invólucros (como no caso dos Desconcertantes) que libertam os biombos. O de Strøm estende-se na horizontal, com um eixo idêntico – poderia mesmo ser colocado numa mesa e exibir-se -, o de André na vertical, mas com os eixos desencontrados, permitindo então uma manipulação/leitura contínua do objecto, de cima para baixo ou de baixo para cima, conforme a direcção. Strøm apresenta um número de cenas concretas (9, para ser exacto) cuja separação subtil se coloca no mar de forma natural, André procura antes uma continuidade ininterrupta, como se as actividades que vemos na superfície da montanha e no interior da terra fossem contemporâneas, levando a divertidos jogos de detecção e compreensão (que faz um túmulo egípcio numa caverna europeia? Ou será africana? E a montanha é tibetana, afinal, ou antes nos Alpes? Que têm em comum um Citröen Traction Avant, o Santo Graal e uma pérola?).
André aproxima-se muito de uma certa
tendência da ilustração francesa dos anos 1950, em que o uso do
pochoir estava em voga, e as suas personagens, muito
estilizadas, se espraiam nas mais diversas actividades, transformando
Beyond the Surface igualmente numa espécie de concentrada
enciclopédia visual. Já Strøm,
com a sua danada e intrincada trama de pontilhados, e a síntese das
cores tornada muito visível pelas linhas coloridas e separadas, já
para não falar do assunto, recorda tattoo art.
As partes interiores das
capas-invólucros, porém, revelam sempre uma camada de informação
que transformam o aparente lúdico objecto numa espécie de, de
facto, acto enciclopédico. Worse Things Happen at Sea mostra-nos
um shanty, isto é, uma balada tradicional do folclore dos
marinheiros anglófonos (a letra, as notas, informações, colhidas
da colectânea de Francis James Child), transformando assim os
“acidentes” das cenas na ilustração do fado dos homens do
mar... Quanto a Beyond the Surface, espalham-se toda uma série
de factos que rondam a história da humanidade, da espeleologia e do
montanhismo, e da literatura, revelando momentos importantes em que
se conquistaram cumes, do Etna ao Evereste, e abismos, de Lascaux a
Krubera, mostrando que, para o homem, assim o que está no alto,
assim está em baixo.
Nota final: agradecimentos a Marta Teives, pelo empréstimo dos livros.
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