Depois
há ainda os dicionários que resolvem refundar
a língua. Que nos jogam as palavras de todos os dias, mas as revelam
como encerrando outros sentidos, quer esta palavra esteja no lugar de
“significado” quer no de “direcção”. São dicionários,
então, que servem de jogo de baralhar e de cartografia para uma
viagem, mesmo que esta nem implique movimento do quarto ou da
cadeira.
É quase natural que seja Gonçalo M.
Tavares, um dos autores presentemente mais consagrados na literatura
portuguesa, e para mais a dita “erudita”, e cujo estilo austero é
reconhecido, em termos de vocabulário, sintaxe mas igualmente no
plano da expressão emotiva, a explorar as palavras enquanto objectos
passíveis de revelar facetas abscônditas. Não é território de
Tavares a exploração de emoções melodramáticas e bacocas, nem
tampouco o fausto barroco do vocabulário, mas uma espécie de
precisão que, de tão minuciosa e específica, desaperta os
contornos absurdos do que parecia sério, e a maior justeza do que
parecia negligenciável. A premissa d'O Dicionário do menino
Andersen é a decisão desta personagem, que enquadra os textos e
as imagens, em “inventar” um “dicionário novo, um dicionário
que entusiasmasse os seus amigos”.
Seguem-se então revelações tais como
a de que os fatos-de-banho são roupas que ainda não
cresceram, que um piano serve para dar som aos dedos, que a
escova de dentes põe as palavras mais brancas, que um
mosquito é um animal mal sintonizado, ou ainda que os
candeeiros de rua e das mesas-de-cabeceira partilham a mesma
filiação e se destinam à leitura de livros de formatos distintos.
Mas não são apenas “objectos concretos” aqueles que surgem
neste livro, já que as palavras, sendo elas mesmo concretas, também
podem descrever outras coisas, como a poesia, ou os actos de
rir, voar, diminuir.
Não é a primeira vez que Gonçalo M.
Tavares coloca as suas palavras num meio que se partilha com as
imagens. A série O Bairro, afinal, vive numa complexa mas
indestrinçável relação com as imagens semi-abstractas,
semi-figurativas, sempre flutuantes, de Rachel Caiano (cujo nome é,
a nosso ver, demasiado subvalorizado na apreciação dos livros, na
sua publicitação, etc.), colaboradora de outras andanças,
igualmente. Aliás, O Dicionário havia sido já publicado aos
poucos na revista Pais & Filhos, com algumas imagens de
Caiano, ainda que com diferenças para com este livro: há cortes nas
entradas, há entradas eclipsadas, e há desenhos novos.
Numa apresentação pública deste
projecto, o escritor explicava como pensava nas palavras como
objectos concretos, físicos, que pudesse agarrar e perscrutá-los
nas facetas menos conhecidas (como nos recordou essa imagem de um dos
contos de António Pocinho, “Tolok”). Não é de admirar,
portanto, que Madalena Matoso, na sua pesquisa pela geometria das
suas formas e reduzidas cores (vermelho e azul, algum preto, de
quando em quando um castanho, parco uso de halftones e tramas)
tenha chegado a um equilíbrio pela diversidade. Se existem imagens
que procuram uma correspondência quase imediata
(tartaruga, galo, óculos, toalha),
outras há que se dispersam em padrões mais alargados do raio de
acção das palavras retratadas (relâmpago,
diminuir, poesia, janela, vento).
Desta maneira, o Dicionário
não se apresenta de forma alguma com uma sequência homogénea, seja
nas palavras reinventadas, seja nos textos explicativos, seja nas
imagens. Estas tampouco se reduzem a meros retratos, apesar do que
foi dito atrás. Algumas são estáticas, mas outras movem-se, umas
apresentam um esquema de acção, outras desdobram um gesto, estas
mostram contrastes imediatos, aquelas relações inesperadas, aqui
revela-e o interior da barriga, ali oculta-se o outro lado.
Em
todo o caso, estes pequenos casamentos obrigam, como sempre, a
ponderarmos as origens comuns, grafadas,
do acto da escrita e do desenho. Apesar de tudo, este não é um
livro para ler em voz alta, não é uma poesia oral, é um acto de
escrita, tem esse peso e presença, e com elas irmanam-se às imagens
do mesmo modo. É um livro para ler e ver, e descobrir o que os une,
os separa e, acima de tudo, os mistura. A resposta é sempre a mesma,
porém: interpretar.
Se há intuito ou fito na prosa (e
poesia, e teatro, e) de Tavares, é um convite ao pensamento. Ainda
que a rede metatextual e intertextual d'O Dicionário seja
mais reduzida do que noutros casos, ainda assim será possível aos
leitores mais crescidos encontrarem pontes para toda uma constelação
de autores que tentaram derrotar os cursos habituais da linguagem:
Flaubert, Ambrose Bierce e a Mad magazine. No que diz respeito
aos mais pequenos, contudo, também pode ser um convite à acção de
estenderem o acto do dicionário para a restante língua ou os
objectos lá de casa. Por exemplo, se aprendemos que o fogão é o
representante do Verão da cozinha, e o frigorífico o do Inverno,
quem serão os representantes do Outono e da Primavera? E na sala de
estar? No quarto, na casa-de-banho? Se um sofá é uma caverna de
tesouros de pirata, porque não lançar missões de exploração e
resgate? E se há tosse com palavras complicadas e para se a evitar
mais vale utilizar palavras de uma só sílaba, não é bom
alistá-las e descobrir se funciona? Sim? Vá. Pois.
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