Como vimos no caso de Drawing from life, neste campo em particular, a nomenclatura é um verdadeiro problema. Isto é, não se trata somente de uma questão levantada e que, após uma mais lenta, menos lenta e deliberada selecção e confronto de argumentos, necessários e suficientes, atinge uma sua solução, resposta, definição. Um verdadeiro problema abre-se a outros tantos. Eduardo Salavisa não procura com este livro trazer soluções, respostas e definições que terminem a discussão, mas sim colocar esse mesmo problema à nossa consideração, guiar-nos por alguns dos eventuais modos de resolução ou pelo menos de contributo regulado de pesquisa, e depois abandonar-nos à nossa sorte e capacidade em extrair destes exemplos uma ideia, por mais vaga que ela seja, coesamente forte dos Diários de Viagem, ou Diários Gráficos, ou Cadernos de Esboços, ou Cadernos de Campo, ou Cadernos de Procura Paciente (cf. Corbusier), ou Mini-Estúdios (na expressão de Rui Lacas). Ou até Livro de Artista, já fazendo cair um outro peso de e sobre estes objectos. Essa falta de fechamento revela uma sensibilidade maior ao intervalar, e não uma falta de rigor na construção de categorias.
Disse “este campo em particular”, mas essa é já uma afirmação estranha, pois verificamos que não é sequer fácil entender que campo será este, e se ele é de facto particular; parece estender metástases e abrir-se em rupturas e excepções e diferenciações em todos e quaisquer dos seus poros.
Diários de viagem é não apenas uma excelente antologia como uma publicação rigorosa e que procura um profundo respeito pelo objecto. Isto é, a própria dimensão desta publicação leva em conta o lado objectual dos diários. Apesar da pobre resolução da capa (um fac-símile de um diário real, presume-se), procura-se mimar essa dimensão não só de objecto único, nem de objecto a usar, mas objecto usado. A paginação no interior também dá conta dessas especificidades: quando duas páginas de um qualquer diário gráfico se estendem por duas páginas deste livro, a espinha é partilhada por ambos, levando assim a um ritmo de leitura e estrutura o mais acabada possível.
A ausência deste ou daquele outro artista nesta antologia não é um argumento crítico à mesma; é óbvio que qualquer escolha revela sempre de potencialidades, circunstâncias, amizades talvez, mas jamais poderemos perder de vista o facto de que uma escolha revela uma perspectiva que se adivinha acertada e que a escolha efectiva cumpre melhor ou pior essa mesma perspectiva prometida. A questão aqui é plenamente respondida. Haverá preferências de cada um de nós, mas elas revelarão mais das nossas inclinações, conhecimentos, do que de um verdadeiro ajuizamento dos trabalhos, já que o “erro” – facto repetido por muitos autores – é uma classe de ideias que não tem cabimento num diário; ele pura e simplesmente não existe, sendo o diário antes o local máximo do processo, seja este estocástico, tentativo, diletante, distraído, ou até mesmo totalmente aleatório (o que é difícil de aceitar: nenhum gesto é aleatório, emerge sempre de nós).
Mais, e de novo em contraste com Drawing from life, Eduardo Salavisa, enquanto editor, não procura estabelecer quaisquer categorias, classes, hierarquias, e atravessamos estes 35 autores contemporâneos numa estranha e diversa fluidez, atravessando várias idades, empregos, atitudes, proficuidades, aproximações, belezas... “Quotidiano” retorna assim ao seu sentido etimológico, de interrogativo, e cujas respostas são tão diversas como cada secção de artista, cada página dos diários, cada nova leitura nossa dessas mesmas páginas...
Essas questões desdobram-se nos aspectos de transitoriedade versus reprodução enquanto “obra”, devaneio momentâneo versus expressão autoral, circunstancialismo versus uma natureza perene da arte, e confrontam vários modos de entender a plenitude, o desenho, a construção da marca, as fronteiras entre a escrita e o desenho, aqui mais diluídas, ali mais nítidas ainda que se complementando entre si.
As questões continuam a desdobrar-se nos site e blog de Salavisa, de onde se poderá partir para os blogs e sites de quase todos os convidados do livro (onde se apresentam essas plataformas). Ou talvez seja este livro uma cristalização, em papel, das questões ali abordadas. A dimensão pedagógica não é de todo descurada, mas nunca transformada em dogma ou princípios de matéria fechada. Veja-se o excelente texto de introdução, a bibliografia generosa, a colação de experiências-chave de Delacroix, Khalo, Hopper, Le Corbusier, Picasso e Hugo Pratt (o único sem imagens, imaginamos que por razões dos detentores dos seus direitos) como ponto de partida ao pensamento que engloba (não “encerra”) estes Diários.
Para quem teve a oportunidade de folhear, com tempo e prazer, cadernos de artistas, ou vasculhar as frases soltas de blocos de notas de escritores, ou simplesmente espiar um caderninho de um amigo, sabemos que existe sempre um prazer estranho, misto de descoberta que podemos anunciar e segredo que desejamos guardar, a cada nova página virada. Tenho as minhas próprias experiências, que prefiro manter in pectore, mas noto que os gestos de divulgação de Jennifer New e de Eduardo Salavisa nascem desse mesmo prazer, aliados à possibilidade de revelar, mesmo que brevemente, esses prazeres únicos através destas colecções. O livro de Salavisa é mais livre, pelas razões apontadas e, por isso, mais livre torna a nossa leitura e fruição. Manuel João Ramos, por exemplo, tem as suas magníficas Histórias Etíopes editadas (Assírio & Alvim), mas as poucas páginas neste volume parecem dar-nos de facto um olhar mais solto, imediato, dos blocos de construção da sua obra. É aí que reside a fortaleza de Diários de Viagem. Dar-nos a ver publicamente um segredo, mantendo-o como segredo. Notas sobre imagens escolhidas: seria impossível e contraproducente mostrar imagens de todas as pessoas indicadas por Salavisa (ficam de fora, com pena, Francisco Vidal, António Jorge Gonçalves, Pedro Mamede, Simonetta Capecchi, Manuel San Payo), fica aqui uma menor e rápida selecção. Uma de Salavisa, por dar as notas de cor naquilo que, imaginamos nós, tem mais vida; uma paisagem de João Catarino, por ter perdido as fronteiras dos objectos, e as cores invadirem em manchas aquele território que deveria estar fronteirado pelas linhas; as paisagens de metro de Mina Anguelova, por trazer cores líquidas e mal-comportadas em contracorrente ao cansaço das figuras.
16 de março de 2009
Diários de Viagem. Desenhos do quotidiano. Eduardo Salavisa, ed. (Quimera)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:49 da tarde
Etiquetas: Academia, Portugal, Territórios contíguos
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5 comentários:
RECOMENDADISSIMO !! achei o livro fantástico. Devorei cada pormenor.
oh, por favor, ganhem o hábito SAUDAVEL de manter um diário de viagem. de viagem do dia-a-dia. de viagem da vida...
por favor.
Devo adiantar, que Eduardo Salavisa, publicou no BDjornal #9 um texto que, segundo nos disse na altura, serviu de arranque para este trabalho
Já ouvi muitos elogios ao livro "Diários de Viagem. Desenhos do Quotidiano" mas uma reflexão como esta, nunca. Não sei se estas coisas se agradecem, mas estou-lhe agradecido. É reconfortante saber que o leu com atenção e sentido crítico.
É verdade, Jorge,a solicitação do artigo serviu-me de estimulo para continuar.
A recolha e impressão são fantásticas. O conteúdo do melhor deste género. Está na Feira do Livro na Quimera. Aproveitem e comprem que foi o que fiz. Depressa antes que esgote.
Muito bom! Adoro e recomendo o Livro.
Quanto à critica... continua a estar ao mais alto nivel, como sempre.
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