22 de fevereiro de 2010

Repulsa. Alice Geirinhas (Ao Norte)

Uma das dimensões mais famosas e discutidas do filme de Polanski (Repulsa, 1965), que Alice Geirinhas retransforma em banda desenhada, é a dimensão do som amplificado. Numa das cenas mais intensas e famosas, a da entrada do violador imaginário no quarto de Carol, há mesmo ausência de música no momento imediatamente antes do mais dramático evento representado (duplamente fictivo). Quase toda a produção cinematográfica, seja ela de ficção ou documental, alternativo ou de estúdio, entrega-se sempre a estratégias relativamente expectáveis de gestão, ou melhor, de manipulação das emoções e das expectativas do espectador através da música. Haverá casos de mestria musical no cinema, que nascem de relações de intimidade criativa (Eisenstein e Prokovief, Hitchcok e Herrman, em menor grau e com destinos diferentes, Kieslowski e Preisner, Greenaway e Nyman), mas gerir essa tensão em silêncio musical, apostando no mergulho total nos sons “naturais” dos ambientes, que se tornam sinal opressivo dessa realidade, não é algo de comum no cinema “normal”. Curiosamente, é na esfera do cinema de animação que encontraremos um emprego dos sons naturais, dos objectos, na amplificação dos pequenos ruídos, diegéticos ou não, que encontraremos uma forma de moldar as sensações das personagens ou do próprio filme (penso sobretudo em Svankmajer ou Schwizgebel). (Mais) 


É inevitável que, ao longo da apreciação desta colecção de livrinhos editados pela Ao Norte, sob a direcção de Tiago Manuel, em que uma troupe de artistas gráficos reinterpretarão “O Filma da [Sua] Vida”, procuremos pontos de contacto, diferenciações, matérias que possam aproximar o discurso. Ora, a grande diferença do trabalho de Alice Geirinhas dos seus predecessores nesta colecção é o facto das palavras invadirem o plano de composição. Daniel Lima e Jorge Nesbitt já haviam empregue palavras, subtítulos no primeiro caso, diálogos no segundo. Mas Geirinhas faz espalhar as palavras por toda a imagem, usando vários tipos de letra, formatos e tamanhos, densidades e importâncias, regendo-se por uma pulsão verbal que contrasta em larga medida com o “silêncio” de alguns momentos de Polanski e até com o silêncio, excepto o circunstancial, da personagem Carol. Esse contraste reveste-se de uma outra ordem de importância, que tem a ver com a natureza do texto apresentado pela artista.

As escolhas que uma pessoa faz em determinadas circunstâncias são ditadas por essas mesmas circunstâncias. Não se trata de as julgar, pois temos a capacidade, enquanto seres humanos livres e capazes de aprendizagem e de alguma criatividade, de alterar as nossas escolhas à medida que avançamos no mundo, mas as escolhas que fazemos quando nos é perguntado “que livro levarias para uma ilha deserta?”, “qual é o teu filme favorito?”, “quem é o melhor músico para ti?”, etc., é capaz de se revestir de contornos diferentes conforme quem pergunta, onde pergunta e para que servirá essa resposta. Alice Geirinhas é a primeira autora nesta fiada de livritos a tornar clara e expressa a razão pela qual este filme de Polanski se reveste de uma importância pessoal para ela. Dessa forma, ela integra, para além da transescrita do filme, a sua história pessoal, nas duas primeiras páginas, quase cobertas apenas com a suas palavras, contando a primeira vez que viu o filme, ainda “uma rapariguinha de 15 anos”. O que se segue é um “mero” resumo do filme, ilustrando ora mais figurativamente ora mais esquematicamente as cenas descritas pelas palavras. Digo “mero” entre aspas, pois o próprio ritmo do texto, em frases mais ou menos curtas, algumas palavras moldadas como objectos tridimensionais, outras manuscritas cursivamente, umas embelezadas por serifas e rodopios de caderno escolar, outras ombrando-se entre si, diversas, em torno de apontamentos gráficos, e a linguagem desapaixonada – “Tocam à porta. Carol não abre. O namorado arromba a porta.”; “Carol arrasta-o num tapete até à” (antecedido por um plano da banheira cheia de água e seguido do plano da banheira com o namorado morto lá dentro, encontrando uma associação imagem-texto experimentada raras vezes pelos autores, mesmo os maiores, e aventada por Saint-Exupéry), “Carol mata-o/com a navalha de barbear” – tentam reconceber a distância emotiva da protagonista do mundo que a rodeia.

A diversidade dessas estratégias visuais das palavras é notável igualmente pelas formas da composição das páginas, jamais se repetindo em termos estruturais (com uma importante excepção, adiante discutida).

Apesar das palavas de João Paulo Cotrim, e a ligação que faz – bem vista e pensada – entre a técnica de grattage, a que Alice Geirinhas nos havia habituado nos seus últimos trabalhos a nível de banda desenhada e ilustração, e as fendas das paredes no apartamento de Carol, espelho das fendas entre a sua imaginação e a realidade, os conflitos internos dos seus egos, os não-ditos da infância jamais revelada e o presente em que o sintoma ganha um monstruoso corpo nas monstruosas acções, a verdade é que a artista apenas recorre em dois ou três momentos a essa técnica, e apenas para desenhar palavras – o título, uma descrição de cena, parte das legendas numa imagem. As restantes são linhas a marcador preto sobre branco, se bem que em alguns casos o preto quase invada toda a superfície da folha, em malhas densas de tramas, texturas invasivas, padrões com horror ao vazio, sombras e desfocagens. A autora informa-nos que utilizou mesmo stills do filme para a produção de certas imagens nesta sua tradução. Mas a tensão a que Cotrim alude está lá, entre esses pretos e esse brancos, nos brancos que irrompem pelo preto e nos pretos que irrompem pelo branco, tornado o mais nítido possível nas duas páginas em que, contrastadamente, vemos uma “racha” a atravessar a página, sem mais... numa primeira instância racha branca sobre folha negra (que se repetirá e encerrará o ciclo de imagens), numa segunda racha negra sobre folha branca, como se estivéssemos perante um exercício Malevitchiano, com um olhar que subisse de plano para “olhar para baixo”, e estabelecesse todas as possibilidades no seu intervalo.

Parte dessas possibilidades encontra-se no espaço de tradução – e distância – operada entre o filme e os desenhos, mas também a fotografia da história de Carol, a qual é passagem para o eventual trauma original, que nos é sempre inacessível, negado ou pura e simplesmente apenas propriedade de Carol, e aquilo que os desenhos de Geirinhas providenciam enquanto sintoma de acesso ao mundo da própria autora (que apenas nos interessa na medida em que são legíveis e interpretáveis na obra, e não enquanto especulação biografista). Este tema levar-nos-ia a um interessante debate entre a ontologia da fotografia, do filme e do desenho em relação ao tema da memória e do trauma (segundo lições de Cathy Caruth, por exemplo), mas essa discussão não pode ter lugar aqui.

A subida a que nos referimos é a transformação holística que Alice Geirinhas faz operar sobre o filme, tornando-o pessoalmente seu, fazendo ir da transescrita para uma verdadeira transubstanciação, que discutimos a propósito de Hamlet 1977, invertendo (ou espelhando de modo diferente?) o processo pelo qual Carol atravessa.
Nota: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro.

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