Este livro tem dois prefácios. Um pela mãe, Aline Kominsky-Crumb, o outro pelo pai, Robert Crumb. A mãe garante que este projecto não se trata de mais um gesto de “crumbsploitation”, e acreditamos nela. O pai explicita que o fito não é simplesmente “gabar o talento” da filha, mas dar a conhecer a evolução progressiva “de uma pessoa, através do meio do desenho”. E é verdade. Se bem que como todos os pais, forçosamente babados por quaisquer mínimos talentos que os seus filhos tenham, os Crumb o demonstrem também em relação à sua Sophie, não há qualquer dúvida, porém, que este é um projecto incrível e inédito.
Muitas vozes surgirão salientando o facto de que os desenhos de Sophie Crumb, ou que a sua arte enquanto autora de banda desenhada (Bellybutton Comix), não são matéria de grandes méritos ou elogios, e, em parte, não deixarão de ter razão. Parte daquilo que tem levado à sua produção e publicação poderá dever-se a uma “magia” emprestada pelo glamour dos pais, é bem possível... Se bem que algumas desss vozes também negariam os encantos da abordagem tosca e flutuante de Aline Kominsky, e até se atreveriam a confundir o percurso dessa artista pela relação que teria mais tarde co Crumb.
Todavia, a chave deste projecto não se prende somente ao facto desta artista em particular ter como apelido um dos nomes mais sonantes da banda desenhada moderna norte-americana, e de impacto a nível global e trans-geracional. Existem muitos livros sobre o desenho infantil (usualmente acompanhados de abordagens pedopsicológicas ou terapêuticas), tal como existirão muitos livros que reunem pelo menos parte do acervo da criação de um artista, englobando os importantes anos de desenvolvimento, se calhar até mesmo do período infantil (recordemo-nos do projecto de Balthus, Mitsou, mas estamos aí num território bem diverso). E os elementos reais aqui implicados – o livro pertencente a uma pessoa que de facto trabaha o desenho, pais extremosos que guardaram e preservaram os desenhos da sua filha, e sempre a incentivaram a fazê-los, nem que fosse por força das circunstâncias de imitar o trabalho dos pais, autores famosos que têm acesso a platafomas editoriais condignas – levam a que se tornasse possível a edição de um livro que reune mais de 250 desenhos de uma mesma pessoa, desde os seus 26 meses de idade até 2010 (Sophie Crumb nasceu em 1981, pelo menos segundo o pai). É aí que reside a magnitude deste projecto: um só local mostrando 20 anos de desenvolvimento de uma personalidade visto pelo prisma dos seus desenhos. Pouco importa se se trata de uma artista de facto magnífica e inultrapassável, ou se de uma produtora relativamente medíocre de desenhos, banda desenhada, etc. É de facto um projecto inédito (pelo menos, nos limites dos nossos conhecimentos) e é até pela quase “banalidade” desta produção que se torna um livro importante. Quantas vezes teremos nós oportunidade de ter nas mãos uma ferramenta – pois é assim que o olhamos – desta natureza?
Alguns desenhos parecem de facto incríveis – mas afirmamo-lo não sendo especialistas no desenho infantil (e até acreditando que os especialistas encontrarão, com os seus instrumentos específicos, projectivos, analíticos, cognitivos, interpessoais, etc., muita matéria de estudo e espanto). Apenas sabemos que muita da inteligência e capacidade de observação que as crianças têm apenas são surpreendentes porque nós, os adultos, nos esquecemos de olhar o mundo com a mesma maravilha. Mais, é provável até que algumas das características que apontamos nestes desenhos sejam mais “normalizadas” do que esperamos, e o indiquemos por estarmos informados pela nossa própria perspectiva formatada de adultos (com todos os perigos e limites que isso acarreta). Mas se acreditarmos que haverá uma associação profunda e real entre a arte – entendida como uma produção especial humana que pretende expressar algo de íntimo, espiritual e existencial para além da banalidade quotidiana – e a personalidade – o que contorna uma pessoa, então este livro terá certamente muito sumo a fruir...
Um desenho aos dois anos e meio mostra um porco com poucas linhas e riscos sobrepostos, usando três lápis de cor diferentes, mas a forma como as faz cruzar e sobrepor-se oferecem-lhe uma tridimensionalidade curiosa. Outro desenho a mesma época, a esferográfica, mostra a mãe a apanhar brinquedos do chão, e é a curva das costas da mãe dobrada que se torna o centro de atenção. Aos três anos parece usar um pincel, começa a representar genitais nas figuras e consegue fazer um retrato simples mas perfeito do pai. Aos quatro começam a ser introduzidos elementos cinéticos e sígnicos da banda desenhada: pequenos riscos de expressão, gotas de líquidos, linhas cinéticas, de som, corações icónicos e balões de fala (com ajuda, provavelmente para algumas das letras, se bem que já escrevesse). Aos cinco anos começamos a ver desenhos narrativos (se bem que o da cobra já o seja) ou conceptuais, com composições complexas, e um em particular (pg. 43) mostrando a mesma personagem repetida sete vezes, ou sete personagens idênticas mas de tamanhos diversos (o acto de repetição figuratico sendo um dos elements basilares da criação da banda desenhada). Antes dos seis, começa a fazer desenos à vista, sobretudo de pessoas, ou procura repetir personagens de televisão. Aos sete mostra paisagens e interiores com secções (cortes) ou verdadeiras sequências narrativas (uma menina transformando-se numa fatia de pizza). Entre os 9 e os 10 anos está a criar verdadeiras bandas desenhadas, com algumas noções e composição, e capas de comic books fictícios (nisto não há que nos admirarmos de ser filha de quem é, já que o pai criava pequenas revistas de banda desenhada com os irmãos), imitando bastas vezes estilos ou figuras de trabalhos clássicos, desde os Fleischer a Pat Sullivan/Otto Messmer e John Irving, passando pelas típicas bonecas infantis femininas. A partir daí vemos a adolescência, com muitas das típicas fantasias gráficas associadas, a exploração da cultura “contra” seja de que espécie for, as primeiras experiências com alguma aspiração estética, os primeiros passos na autobiografia, e páginas e páginas dos mais livres sketchbooks e diários gráficos (encerrando-se com o nascimento do filho). Mas também, centralmente, a angústia que todas essas escolhas lhe trazem por saber que a primeira forma como a lerão será a de ser filha da “lenda” (palavras dela), mostrando assim estar plenamente consciente de que para trilhar um caminho próprio, terá algures de quebrar amarras ou corta o fio... No entanto, algum egocentrismo (necessário num artista) roça momentos de incompreensão e opacidade. Por exemplo, o adjectivo “crazy” foi acrescentado pela própria Sophie, mas em que será ela mais “louca” que os demais criadores? O que será essa palavra senão uma relativa ilusória auto-mitificação (como todas, enfim)?
Não sendo um livro que em si encerra uma beleza substancial – não é esse o seu propósito -, ainda que encontremos momentos de vislumbre de beleza, e todo ele componha também uma espécie de novela aos sacões (é, nesse aspecto, um Bildungsroman real, sem a fluidez da narrativa literária, mas com peças verdadeiras), e que termina num momento de felicidade pessoal (o nascimento do filho e a conquista de um momento finalmente calmo), é no próprio gesto e estrutura, e eventuais efeitos e leituras que poderá desencadear, que este livro nos parece ser um contributo, senão decisivo, pelo menos considerável.
8 de março de 2011
Sophie Crumb: Evolution of a Crazy Artist (Norton)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:42 da tarde
Etiquetas: Autobiografia, Ilustração, Territórios contíguos
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