31 de março de 2011

3 Livros ilustrados por André da Loba.

“Il n’y a pas de détails dans l’exécution” é uma frase atribuída a Paul Valéry (desconhecemos se com razão ou qual a sua proveniência). Mas é um excelente ponto de partida para a leitura das imagens criadas por André da Loba para estes três projectos diferentes. As suas qualidades constantes fazem-nos encontrar no seu trabalho um estranho mas feliz equilíbrio entre duas propostas imagéticas aparentemente contrárias: se por um lado vemos composições planas, bidimensionais, nítidas, e que preferem uma composição arranjada, por vezes quase simétrica, uma estilização da representação e das figuras mais simplificada do que realista, quase podendo falar de minimalismo, por outro há uma intervenção subtil de texturização das manchas de cor, o que lhes instila uma certa ilusão de volume, e, por isso, de dinamismo, aliado a certos efeitos visuais que recordam técnicas de impressão não-industriais, como a serigrafia ou o stencil, com breves mas decisivos apontamentos de decorativismo pertinente.
Tratamos aqui das imagens para três livros: o poema O Arenque Fumado, de Charles Cros (pela Bruaá), a poesia de Bocage, em Antologia Poética (Kalandraka), e a de Eucanaã Ferraz em Bicho de sete cabeças e outros seres fantásticos (Pi). Em rigor, poderíamos separar os trabalhos que ilustram este último livro dos outros dois, já que a sua matéria original são pequenas esculturas, mas as regras da sua construção e a composição que se elabora das suas fotografias torna-a alvo de continuidade com as demais imagens, sem que essa alteração material implique uma diferenciação de efeitos, de relações com o texto ou de coesão de uma linguagem reconhecível.
André da Loba parece, de certa forma, ter um trabalho que se encaixa em certas tendências contemporâneas, muito informadas por um certo posicionamento, digamos, nostálgico, em relação a certos estilos anteriores da história da ilustração - pensamos em nomes afectos à ilustração colorida e estilizada dos anos 1950, sobretudo nos Estados Unidos, talvez Dahlov Ipcar, Bemelmans, Jim Flora, a animação de Bobe Cannon, alguns trabalhos de Rojankovsky? - mas dedicados a uma busca pessoal pela excelência, por novos campos de relacionamento entre texto e imagem, pela transformação do objecto total, pontos importantes numa contemporaneidade que não pretende, de forma alguma, estar presa a fórmulas. Bastará abrir as páginas da Blab! ou procurar catálogos de alguns dos autores usualmente afectos ao pseudo-movimento Pop Surrealism para encontrar outros artistas que utilizam os mesmos elementos, as mesmas tendências ainda que para os empregar de modos diferentes e, mais importante, com efeitos diversos. E a diferença é substancial.
Estes três livros, como a isso obriga a forma de um livro ilustrado no qual há claramente a precedência, até mesmo histórica, do texto (o texto de Cros é de 1872, e Bocage deveria dispensar explicações; apenas a poesia de Ferraz é nova, mas não o seu trabalho, nem sequer a sua presença em Portugal, como saberão os leitores do assombroso Desassombro, Quasi: 2001), colocam André da Loba no papel de um primeiro leitor, de um leitor-filtro, de um guia visual dos textos. Ele deve encaixar a sua vontade imagética com a dos textos, o que o afasta de meras tendências estilísticas superficiais, e o mergulha na responsabilidade de um tradutor. A sua ilustração, a um só tempo, condiciona e liberta o texto. Mas essas acções são como que duas faces do mesmo gesto: se condiciona, é porque sublinha e enfatiza uma qualquer dimensão do texto, como que “apagando” ou subalternando outras, para dessa forma a libertar, a essa primeira dimensão, de um modo mais visível.
Ana Margarida Ramos fala num seu artigo do trabalho do ilustrador sobre o texto como uma “reactualização do texto e a uma sua apropriação por parte do ilustrador”. O dizer de novo pela primeira vez de Tsvetaeva encontra aí dois pontos importantes: a relação com o tempo (o anterior/passado do texto, o actual do desenho) e a sua transformação na “língua” do ilustrador. André da Loba emprega as cores de um modo reconhecível, cores vivas-baças, vivas no seu tom, baças na sua expressão, trazendo desde logo uma patina de velhice, de tempo, de uso às suas imagens. Uma espécie de longa rodagem, que quererão talvez criar elos de nostalgia com experiências históricas da ilustração, como vimos. De novo: esta ligação do hoje com o ontem é mesmo uma tendência contemporânea, na qual este autor se inscreve na perfeição. Há uma curiosa e extrema tensão entre a abordagem minimalista - figuras reduzidas a contornos e formas simples, grandes áreas de cor, linhas suaves, composições centralizadas, uma ideia de volumetria esbatida - e decorativa - a textura das superfícies, o uso judicioso de pequenas marcas estilizadas para a representação de pormenores que desenham as figuras (um olho, uma boca, etc.).
A assinatura desde artista é muito vincada, espraia-se por toda sua matéria visual. Está no seu estilo, aquela “linguagem auto-suficiente” de que nos fala Barthes, e que “nasce das profundezas da mitologia pessoal e secreta do autor”, mostrando-se (quase) fora das transacções sígnicas habituais… é daí que partem os modos inusitados, pouco nítidos, directos ou literais, como André da Loba faz casar as suas imagens com os textos. Em relação ao bestiário de Ferraz há uma procura por uma clareza maior, com cada monstro descrito no texto encontrando um “corpo” físico, com gravitas (daí a utilização de pequenas esculturas de materiais recicláveis). Mas mesmo a composição faz complicar as relações. Veja-se o poema “Monstro”… ou devemos escrever apenas “onstro”, sendo o “M” da ilustração apenas uma ilustração? [ver imagem ao lado] Veja-se como as duas faces das várias fénixes [ver parágrafo anterior], no seu móbil, abre a leitura à sua eterna reencarnação. Como o lobisomem se esconde no homem como uma gaveta que se abre subitamente [última imagem]…
Em termos de composição, o autor tira quase sempre partido de grandes margens inocupadas pela imagem, submetendo a sua figura a um espaço maior do que parece. Ou então emprega as várias técnicas que colocam as figuras como que entre o espaço da página e um outro para além dela, tornando-o aberto, infinito, fluido. No caso do Arenque, estando a falar de uma imagem que é o próprio suporte, o efeito mantém-se, pela utilização da caixa-capa, ou das duas primeiras (?) páginas [ver imagem ao lado] que servem de ideia de um livro que depois se afasta deixando todo o peixe-escada vagar no seu próprio espaço livre…
E no caso de Bocage, que línguas se cruzam na união entre texto e imagem? Como, de “Apenas vi do dia a luz brilhante”, surge uma bojuda garrafa branca encerrando um pequeno barquinho (de papel!) vermelho? Será esse barco aquele que “Vagando a curva Terra” perdera o “doce agrado” da mãe e nessa imagem mostre o seu desejo de regresso e protecção? [ver imagem ao lado] Porque é que em “Marília, nos teus olhos buliçosos”, a página ilustrada se abre de um retrato da amada do soneto para dar lugar a dois pavões cruzando-se heraldicamernte? Serão eles (ele e ela) a Virtude e Formosura “dando as mãos”, nas cores, sob a pátina do semblante que víramos de Marília, também ela coroada? [ver imagens em baixo]Ou tratar-se-á de buscas ainda mais profundas e secretas entre a leitura do artista e sua forma de tradução?
Dos três livros, é natural que O Arenque Fumado, parente dos livros mecânicos, seja aquele que mais suscite acções específicas de leitura e performance nos leitores/contadores (aliás, ele é acompanhado de umas notas de performatividade de Coquelin Cadet), mas a verdade é que a dinâmica de transfiguração dos textos de Bocage, Cros e Ferraz, pelos instrumentos subtis e desviantes de André da Loba, torna qualquer uma destas experiências de leitura já de si um exercício de feliz desequilíbrio, tal como as escolhas estranhas do próprio bicho de sete cabeças do poeta brasileiro: “Se uma escolhe o seu caminho,\as outras vão por ali?”.
Notas: agradecimentos à Bruaá e à Kalandraka, pela oferta dos respectivos livros.



















3 comentários:

gambuzina disse...

a onda retro é resistente, muito anos 60,
gosto mas é dejá vú

Elisabete Fiel disse...

Gosto mesmo muito! Excelente trabalho!!! Aliás, o 1º livro já existe na Biblioteca da Escola Secundária de Campo Maior!!!

www.minerva.uevora.pt/bib-es-campo-maior/

Pedro Moura disse...

Cara Elisabete Fiel,
Apesar de compreender os orçamentos limitados das escolas, e esclarecendo que não ganho comissões (mas recebo cópias simpáticas, isso sim, de algumas das editoras), aconselho vivamente à compra dos outros... não haverá disciplinas que não os usem (Português, EVT, expressão corporal, inglês, etc.).
Obrigado.
Pedro