5 de novembro de 2013

Comic Versus Art. Bart Beaty (Univ. Toronto Press)

Devemos começar por confessar que este livro foi mal lido. A ansiedade e expectativa criada pelo seu lançamento levou à criação de uma imagem do que o livro seria, a qual, a uma primeira leitura, não se verificou, e deverá tê-lo tintado em detrimento das  suas efectivas conquistas. Uma segunda leitura procurou compreender a sua estrutura e argumentos, mas possivelmente feita com alguma distracção insustentável, para um projecto desta natureza. Logo, todas as considerações que se seguem devem ser tomadas com um grão de sal, pois poderão estar drasticamente erradas, por ter lido Comics Versus Art no interior de um desejo que não respeita o que o livro é, obrigando-o antes a algo que não quereria ser sequer… De resto, como havíamos dito anteriormente a propósito de The Art of Comics, o qual esperáramos ter lido em conjunção com este volume, alguns dos problemas verificados nessa outra antologia de ensaios são, até certo ponto, idênticos aos deste. Apesar de admirarmos profundamente o volume anterior de Beaty sobre a banda desenhada europeia, que fez um notável trabalho de um olhar panóptico - necessariamente parcelar, inevitavelmente com problemas de ausências e pequenos erros, etc., mas sem perigar o projecto no seu sentido global - queremos ver as ausências nesta discussão como mais marcantes. Todavia, esse não pode ser um argumento sólido.

O fito de Comic Versus Art é a “interrogação dos processos históricos e sociais” que levaram à diminuição do valor da banda desenhada enquanto forma cultural. Menos do que uma análise dos supostos elementos intrínsecos que seriam detectáveis e/ou analisáveis para defender (ou impedir) a compreensão da banda desenhada enquanto arte em si mesma, uma forma legítima, Beaty pretende antes tentar compreender os mecanismos que regem “as operações quotidianas daquilo que Pierre Bourdieu chamou de campo da produção cultural” (7). Naturalmente, Beaty centra-se em exemplos norte-americanos ou anglófonos, o que não se pode entender de modo negativo, como começámos a ajuizar, mas bem pelo contrário, como salutar e contextualizada circunscrição dos objectos a arrolar nesta discussão, de maneira a providenciar uma “maior especificidade analítica” (12). Aliás, e tal como que numa forma correctora à argumentação de Lafargue, que abordáramos antes, Beaty entende que as tradições diversas dos Estados Unidos, da França-Bélgica, do Japão, e de outros pólos particularizáveis (Itália, Espanha, Alemanha, Argentina, Coreia e Portugal) levaram a “especificidades históricas particulares”, as quais por sua vez “pugnam a desfavor de uma abordagem que procure totalizar o mundo da banda desenhada como um campo internacionalizado e único de produção cultural” (idem), o que ocorre, muito pelo contrário, noutro tipo de artes, das visuais ao cinema, passando pela literatura e a música, erudita ou popular. Ou seja, através de uma abordagem sociológica estrita, Beaty cria uma “discussão [que] foca o emolduramento discursivo mais alargado relacionado com o campo da banda desenhada enquanto um todo” (idem). Na conclusão, ele também admite que “a admissão deste campo [no mundo da arte] tem menos a ver com uma coerência estética do que com uma disposição social” (218).

O autor abre a discussão, na introdução, pela discussão desta tela, Untitled, 2004, da autoria de Lucy Mckenzie. O exemplo é extremamente judicioso. O que Beaty aborda tem inúmeras facetas, aliás, como cada capítulo deste livro. Muitos deles são na verdade ensaios autónomos, artigos publicados anteriormente pelas mais variadas publicações, e podem ser lidos ou até devem ser recebidos dessa forma, como escreveu Kailyn Kent, no Hooded Utilitarian (onde houve toda uma série de artigos que devem ser lidos e demonstrarão o grau de distracção ou desvio da nossa leitura; entre faits divers que poderiam ser resolvidos de outra forma). O seu conjunto cria uma arquitectura coesa, um objectivo comum e coerente. Se o que se pretende auscultar são os mais variados diálogos entre a banda desenhada e outras esferas mais culturalmente legitimadas, como as artes visuais ou plásticas, a tela de McKenzie abre desde logo os desequilíbrios e paradoxos que vão pautar essa conversa e encontro. A pintura dentro da pintura, que não é uma pintura, mas uma vinheta do Clic de Manara, vai levantar inúmeras possibilidades de interpelação. Por um lado, essa imagem interna vai ser entendida pela esmagadora do público exclusivo da pintora como uma “imagem encontrada”, quiçá anónima e automática, e que ocupa um lugar de representação generalista de uma cultura popular, de massas, de uma pornografia sexista e espartilhante do papel social da mulher, que a autora procura desmontar ao longo de alguns dos seus trabalhos. É possível que o público de banda desenhada, mormente os fãs de Manara, encontrem ali uma forma de homenagem, e não somente de reapropriação crítica, até mesmo porque se seguirmos as estruturas e estratégias da própria banda desenhada, mais do que “ler” uma mulher aborrecida num restaurante de gosto duvidoso com um quadro pornográfico nas paredes, podemos antes ver uma mulher aborrecida escapando na sua mente por uma fantasia sexual desabrida que se apropria daquela imagem… Tudo isto é previsto e discutido por Beaty para começar a entender as fissuras desse mesmo diálogo. Mas sempre integrado numa escala social maior. “Num enquadramento mais alargado, poderíamos dizer que a pintura implica uma reflexão sobre a colisão entre o mundo da arte [art world, utilizando o termo da teoria institucional da arte] e o mundo da banda desenhada [comics world] que passa despercebido ao seu primeiro público (das artes) e inacessível ao seu segundo público (da banda desenhada)” (6).

O livro terminará com um epílogo exclusivamente dedicado à figura de Chris Ware, como um caso paradigmático de conquista de novos espaços, para além do “mero” círculo da bd para toda uma sorte de públicos mais afectos ora às artes visuais, ora à literatura, ora ainda às considerações da história cultural, e por aí fora (é difícil não identificar um ou outro campo em que não possa haver um ponto de contacto persistente, pertinente e interpelante com a obra de Ware, da música à arquitectura, claro, mas também passando pelos preconceitos de representação e agência sexual, etária, racial-étnica, física, da gentrificação, etc.). Ware surge como “uma sinédoque do mundo da banda desenhada como um todo” (224), e isso funciona como pedra de fecho das suas discussões heteróclitas ao longo do livro. O que importa, para já, porém, é que Beaty assume aí alguns dos desafios de Comics Versus Art: “De certa forma este é um livro difícil de concluir. O processo de legitimação em que a banda desenhada está envolvida continua ainda em estado de processo” (212). Se Beaty identifica ao longo destas páginas toda uma série de “alterações discursivas importantes” (idem), elas revelam sobretudo paradoxos e não de forma alguma questões terminadas: “A memória, as alianças, e os juízos têm sido factores-chave na contínua exclusão simbólica da banda desenhada do domínio das artes consagradas, uma herança modernista que tem persistido até aos nossos tempos pós-modernistas” (7).

A organização dos capítulos segue um entrosamento muito inteligente entre factos cronológicos/históricos, desenvolvimentos sociais e transformação da percepção dos públicos assim como de alterações no domínio institucional e mercantil da banda desenhada. O primeiro capítulo retoma um dos grandes problemas nas abordagens a-históricas e selvagens que já haviam sido desmontadas há décadas por David Kunzle. A atitude de ir buscar à “arca” da História de Arte todo e qualquer objecto que pareça partilhar um ou dois elementos com a banda desenhada moderna servia de “carne para canhão” para aquele tipo de argumento de que “a banda desenhada sempre existiu” ou coisas quejandas. Essa atitude, até certo ponto, era compreensível na busca de qualquer canal para a legitimação cultural da banda desenhada, e “Um factor importante sobre formas de arte híbridas é que elas são muitas vezes reconhecidas enquanto obras particularmente complexas que unem elementos díspares, incrementando os valores associadas a esses elementos” (21). Portanto, ir buscar valores a outro lado era uma forma de justificar o da banda desenhada. Mas esse viria a ser, posteriormente, um caminho erróneo, com a emergência de posicionamentos mais críticos e verdadeiramente ancorados em saberes disciplinares – para começar, na História da Arte propriamente dita – mais sérios e realmente dentro das condições de possibilidade do tal diálogo interartes.
Beaty, sendo uma das suas especialidades a da pesquisa histórica cultural norte-americana, vai seguindo toda uma bibliografia dos livros e artigos que, durante um longo período histórico, procuraram argumentar de uma forma ou outra sobre esta forma de arte (Martin Sheridan, Colton Waugh, Thomas Inge, Bill Blackbeard, Jerry Robinson, Maurice Horn, art spiegelman, David Manning White e Robert H. Abel, David Kunzle, Will Eisner, Scott McCloud, Aaron Meskin). Discutem-se quais as conquistas de cada um mas também quais os problemas inerentes a essa argumentação, sobretudo no que diz respeito aos enquadramentos disciplinares, conduzindo portanto à ideia da impossibilidade de uma definição definitiva, e antes atentando à necessidade da contínua negociação conceptual com a produção histórica, as alterações axiomáticas da cultura e o confronto com outras experiências, sociais e/ou artísticas (uma não é independente da outra, mas apenas o dizemos em termos analíticos). Esta discussão entrosa imediatamente com um confronto com duas outras noções, paralelas, complementares ou opostas - conforme o posicionamento - à da banda desenhada: os “picture books”, ou livros ilustrados infantis, e os livros de artista. Tudo isto numa argumentação clara que leva à (quase) conclusiva conceptualização da “banda desenhada enquanto produto de um mundo social particular, mais do que um conjunto de estratégias formais” (43).

O problema primeiro que o autor tenta dominar, então, é um que assume os contornos da praga ou de um vírus difícil de erradicar A “definição”, Santo Graal ainda desta área. Por uma razão social e histórica, a falta de legitimação da banda desenhada noutras esferas mais intelectualizadas obriga aos proponentes de um discurso mais balizado sobre esta arte - assumamos o termo sem reservas, cabendo o ónus da sua negação aos próprios detractores - discursar largamente sobre o que a compõe, que características, formais ou não, possui, como se organiza social e economicamente, etc. Mas uma definição é, por definição, fechada, um círculo desenhado que não permite porosidades ou movimentos de fuga e invasão intempestiva, e nós seguimos antes - se não na totalidade, pelo menos em parte - a proposta de Noël Carroll no sentido em substituirmos a própria necessidade da “definição” por uma “descrição histórica”, isto é, uma narrativa que toma em conta os desenvolvimentos históricos e os exemplos reais do que constitui a tradição que hoje é chamada de “banda desenhada”. Isto impede a que se digam, portanto, aqueles disparates de considerar a Coluna de Trajano ou murais antigos egípcios “banda desenhada” - o que não impede, porém, a pertinente leitura desses ou outros objectos históricos como se fossem banda desenhada, ou com os instrumentos analíticos propostos por ela - e levará a uma melhor compreensão porque razões certos usos e circulações distinguem livros infantis ilustrados (picture books) de banda desenhada propriamente dita - mesmo que essa mesma distinção abra espaço, absolutamente necessário, de objectos que poderão participar dos dois territórios, ora confundindo-os ora oscilando, ora até mesclando-se ainda com elementos de outros campos ainda.

Por exemplo, Beaty discute, a dado momento, o falhanço da inscrição da banda desenhada na categoria dos “livros de artista”. Os argumentos que cita são sólidos, sem dúvida, e vão ao encontro do que ele próprio já previra na discussão sobre a teoria institucional da arte. Mas se Beaty tivesse elegido como objectos de estudo para este ponto em particular o projecto de Matt Mullican e Lawrence Weiner, In the Crack of the Dawn, ou alguns dos títulos da Frémok ou de determinados artistas que misturassem as águas (conhecesse ele o Pinguim de Batarda…), em vez da argumentação abstracta isolada encontraria objectos concretos, exempla, que poderiam descrever - lá está - o campo de forma bem diversa. Não obstante, a leitura deste capítulo (de todos) deverá ser feita com cuidado, pausada, acompanhando as razões de cada definição proposta, e sempre tendo em mente que haverá sempre a possibilidade da nossa posição contemporânea vir a ser revista.

O capítulo sobre Roy Lichtenstein – e a sua apropriação de imagens de banda desenhada - tenta deslindar uma questão que tem sido, fora dos círculos mais especializados, e sobretudo no que diz respeito à banda desenhada, debatido vezes sem conta. No entanto, a esmagadora maioria das discussões tem sido feita sem estar ancorada no entendimento teórico necessário, no diálogo que a Pop Art estabelecia entre a Alta Cultura, em que se inscrevia (não sem problemas de resistência de certos círculos), e a Baixa Cultura, a que pertenciam os objectos de que Lichtenstein “colhia” os seus materiais de assunto, sem que no entanto colocasse em perigo essa mesma dicotomia, mas pelo contrário, a confirmasse de certa maneira. Beaty tem um entendimento diferente, encontrando nesses gestos uma reinscrição da relação entre os conceitos de autonomia da grande arte, cujo último expoente havia sido o Expressionismo Americano, e os objectos imagéticos que pululavam pela sociedade de então. O cômputo final, algo que se verificará analogamente noutros capítulos, é que a sua leitura apenas salienta os paradoxos que esta mesma relação estabeleceu.

Um outro capítulo aborda a particular e mitificadora busca do “autor” no pólo de produção norte-americano, elegendo-se as figuras de Carl Barks, Jack Kirby e Charles Schulz como tutelares desses papéis, necessários para depois “dar luz” à ideia de autoria na própria banda desenhada. Mas essas construções de heróis solitários estão pejadas de aspectos cegos. No que diz respeito a Carl Barks, por exemplo, e a forma como ele se destacaria de um modo tão especial da maquinaria da Disney, Beaty quer demonstrar os mitos insuficientemente elaborados em torno do artista, pela apresentação de uma imagem o mais cristalina possível: “Claro, as bandas desenhadas eram produtos da máquina corporativa de entretenimento da Disney” (80), e é nesse quadro preciso que surge o gesto autoral específico daquele autor tão amado: “Barks reconhecera que a máxima expressão do seu talento necessitava dessa intersecção das personagens instantaneamente reconhecíveis da Disney e a sua própria capacidade de explorar as possibilidades do formato do comic book” (81). Muitas vezes estes factores contextuais são esquecidos, como se os talentos de Barks fossem uma dádiva divina conspurcada pela máquina comercial, ou pior, subsumidos a ela, mas a verdade é que não há factores independentes. Nos processos hodiernos da “recuperação da memória”, daqueles volumes em capa dura, e caixas de arquivo, com belas introduções e excelente papel, criam-se imagens prístinas e isoladas mas que fazem esquecer em parte essa história da produção, pouco salutar para a precisão histórica e até a textualidade original dos trabalhos. “O subsequente reconhecimento das suas bandas desenhadas como uma forma de auto-expressão criativa, em vez dos objectos pulp produzidos em massa é o que permite que sejam publicados de novo de formas integrais” (82). Quer dizer, ao serem arrancados do quotidiano dos jornais diários, das antologias baratas, das revistinhas de banda desenhada vendidas a meio tostão, e serem re-apresentados em respeitáveis tomos coleccionáveis e que embelezarão qualquer estante que se preze, demonstra “a necessidade dos fãs de alterarem a base da sua reputação [neste caso, Schulz, mas podendo ser aplicado transversalmente] de algo enraizado na fama popular para outra que premeia os conhecedores da história da forma” (99). O objecto original é transformado, mas é compreensível nessa busca pela legitimação cultural e artística: “Esta estratégia é um elemento importante no processo de distanciamento do trabalho da cultura de massas do seu público original” (95).

O caso Kirby levanta outras questões, que se prendem com as relações de trabalho, os contractos, a criação de marcas registadas que dão poder e dinheiro às companhias que têm a sua propriedade mas a secundarização dos seus criadores. “Significativamente, foi através da demonstração junto a outros artistas do perigo dos contractos corporativos que Kirby seria elevado para além das limitações da maquinaria do entretenimento. De uma forma muito simples, a história de Kirby, o artista, fundamenta-se menos nos seus talentos visuais do que no seu estatuto de perdedor [underdog] num sistema vicioso de conformidade e jogos de poder que afirma de uma forma utilitária a mitologia do artista enquanto oprimido por uma máquina corporativa desinteressada e maquiavélica” (91). A leitura de Hand of Fire poderá dar uma imagem relativamente diferente, mas o que Beaty estuda aqui é a tal construção mitificadora do herói-autor (e que a série Genesis, e outros gestos, vão "endeusando"), e nessa relação ele tem de ser secundarizado pela máquina corporativa (o que não deixa de ser verdade, bastando pensar na forma como Stan Lee se move ainda hoje para surgir como criador quase solitário de toda a nova Marvel, sem Ditko ou Kirby).

Se dissemos acima que a leitura e consideração dos capítulos de Comics Versus Art poder ser feita de forma separada, autónoma, na verdade também se poderia dizer que determinadas linhas de fuga de um capítulo são complementadas por as de outro. Aquela questão das novas edições “de luxo” vem associar-se a uma outra, que tem a ver com a transformação dos formatos e estratégias comerciais (as “graphic novels”), dos locais de venda (a conquista das livrarias generalizadas) e da recepção crítica (crítica propriamente dita, espaço nos jornais, prémios, lugar na academia, etc.). Estas questões prendem-se sobretudo a um foco literário. “O que seria necessário para que um comic book ou uma tira pudesse ser vista sob a mesma luz que os grandes romances ou dramas da tradição ocidental?”. Essa é a pergunta ideal e hipotética que Beaty explora no quinto capítulo, que nasce de uma consideração alongada sobre as adaptações da literatura pelos Classics Illustrated, para atravessar Krazy Kat, a produção da EC, e a canonização académica de Maus. A retoma da consideração das novas edições tem aqui uma pequena inflexão: “Significativamente, cada um dos muitos esforços de republicação [dos títulos da EC, seja os Tales From the Crypt ou o Frontline Combat] posicionava a produção da EC como uma colecção completa, sugerindo que seria a linha integral que assumia importância na história da indústria dos comic books norte-americanos” (109). Faz também esta estratégia (e outras e formas de discutir a história) parte da mitificação e revisionismo de que a EC, artistas específicos ou certas produções são alvo. No entanto, foi também um leitorado “de elite” da EC que começou a fundar fanzines e espaços de discussão auto-formados que levaria à emergência dos primeiros sustentados discursos críticos sobre banda desenhada, pelo menos naquele país (Squa Tront, Potrzebie), e que levaria ao estado actual de recepção mais intelectual. Ao olharmos para Maus, é fácil escutarmos a reacção de se tratar de uma “obra-prima”, “de génio”, etc., mas a questão mantém-se: “será a obra-mestra de banda desenhada o resultado de transformações na forma, ou terá sido esta categoria criada pela capacidade dos académicos reconhecerem certos modelos teóricos e críticos num trabalho exemplar como este?”. Beaty responde: “O sucesso de Maus tem de ser pensado em relação, pelo menos, ao desenvolvimento de novas estratégias de publicação e de marketing da parte dos livreiros, a emergência de uma cultura visual cada vez mais pós-moderna e, no que diz respeito ao círculo académico, as influências gémeas dos Estudos Culturais e do pós-modernismo no momento em que ele foi lançado” (126). De novo, são múltiplos factores que estão em jogo, e não deixam de ter consequências paradoxais, já que se Maus surge como “obra-prima”, isso tanto pode parecer um ponto a favor da legitimação geral da banda desenhada enquanto meio, como pode não apenas a isolar confirmando a menorização do “resto”, assim como assinalar categorias que não são próprias a este campo. “Maus demonstra a persistência de normas estéticas estabelecidas no mundo da arte, ao mesmo tempo que prova a possibilidade de que trabalhos singulares de banda desenhada podem ser reconhecidos como obras-primas fora das limitações da ‘elite sem poder’ dos fãs” (128).

O caso de Gary Panter ilustra, no capítulo 6, um exemplo-chave que vai permitir a discussão sobre um determinado tipo de produção de banda desenhada, associada a uma linha editorial que vai da RAW à Blab! e que tem fortíssimas afinidades com vários círculos de produção artística fora dos circuitos mais formalizados e elevados, a saber, o de todos aqueles grupúsculos e/ou pequenos movimentos e designações múltiplas que se podem agrupar como “lowbrow art” (e que têm na revista Juxtapoz talvez o seu órgão de divulgação mais famoso e de maior circulação, drasticamente diferente de uma revista como a Artforum, por exemplo).

O capítulo 7 dedica-se a um aspecto importante do mercado da banda desenhada: a comercialização especializada das publicações, os rituais de coleccionismo específico, o surgimento de coisas como o Overstreet Comic Book Price Guide (e a forma como não respondem, ou respondem mal, aos desenvolvimentos posteriores com a emergência das “graphic novels”, os livros alternativos, os fanzines e mini-comics, etc.) ou a Wizard Magazine, a bolha da especulação dos anos 1990 em torno dos comic books, a loucura das capas alternativas e outras “raridades artificiais” (170), os leilões da Sotheby’s que começaram a incluir material desta esfera. Tudo isto levando a novos paradoxos: por um lado, “o fenómeno dos i [sucintamente: o comic book específico recebe um “grau” conforme o seu valor e estado, e depois é selado numa caixa de plástico, que o protege totalmente, mas impede de ser lido] reificam a sua posição no reino do comércio puro”, mas por outro, “os preços da arte não medem somente o valor da arte como o constroem” (181). A consideração destes mercados, que passa também pelos designer toys, merchandising do mais variado, etc., não deixa de ser extremamente pertinente, já que, ao contrário de outras áreas, “leitores, fãs, coleccionadores, investidores, e connoisseurs são todos pontos distintos de um contínuo comum no seio do mundo da banda desenhada” (154). Se nos permitem a nota pessoal, é algo difícil de debater: um professor de literatura tem livros, de textos primários e secundários; um crítico de cinema tem uma videoteca (ou dvdteca, etc.); um artista tem materiais de referência; mas seja quem for associado à banda desenhada tem necessariamente de ser visto como “coleccionador”, com toda a fetichização e reificação dos objectos particulares, e do seu conjunto enquanto tal, que isso implica.

Finalmente, o último capítulo centra-se sobre “o lugar da banda desenhada nos museus”, elegendo a exposição Masters of American Comics como seu nódulo central, assim como a figura de Robert Crumb, mas percorrendo toda a história em busca de exemplos pertinentes de comparação. Se a uma primeira abordagem pode parecer ser uma excelente forma de legitimação, a consciência histórica, cultural e social destes gestos pode relevar fracturas nessa noção. Recuando a outro ponto que Beaty havia discutido antes no livro, muitas das exposições – quer no seu sentido literal quer também no sentido figurado (quando, por exemplo, surgem artigos e dossiers “especiais” em jornais ou na televisão, evidenciando a sua ausência durante o ritmo habitual do ano) - da banda desenhada em mundos da arte, ela surge enquanto “o ‘Outro’ da arte, provindo da cultura de massas” (25). As estratégias de ocupação destes espaços foram variegadas, primariamente centradas na iconografia e aspectos sociológicos da banda desenhada mais popular, demorando algum tempo até abordarem a banda desenhada como tal (integrando os seus aspectos de circulação, de formatos, de materialidades, da sociabilização autónoma, da história própria, etc.). Correntemente, acompanha outras tendências que parecem não estar relacionadas - “Significativamente, a abertura do espaço dos museus à banda desenhada coincide com a conquista de proeminência tanto da teoria cultural do pós-modernismo e a lógica económica do blockbuster” (187) – mas o autor examina os aspectos em que esses movimentos se espelham e se nutrem mutuamente. Beaty cita um artigo contundente e certeiro de Doug Harvey, que discute o aspecto pouco musculado da exposição, não apenas em relação à sua presença no(s) museu(s), mas pelo seu momento histórico, menos significativo do que teria sido há 50 anos, e terminando com o repto de que, tendo essa exposição falhado, de certa forma, em providenciar uma “experiência em primeira mão da sua manifestação mais poderosa e convincente”, termina: “para isso, tens de te virar para as funny pages” (208).

Bart Beaty não menciona jamais algumas das experiências mais radicais, experimentais, ou outros nomes que preferirem, para se falar de experiências que nascem no seio da banda desenhada - e não de aproveitamentos externos de certos elementos ou estratégicas “comunicativas” da banda desenhada por outras disciplinas artísticas, etc. -, o que seria a nossa expectativa pessoal numa discussão mais centrada em características “intrínsecas”, ou até perigosamente “essenciais” da banda desenhada passíveis de apreciação estética, informada pela cultura contemporânea, a filosofia da arte do nosso tempo, e por aí fora. Mas como foi dito, não é essa a senda de Beaty. Essa é antes a interrogação dos mecanismos sociais que levaram ao diálogo que de facto existe, um exame à sua história, ao seu momento presente, e as razões do seu estado. Beaty não faz futurologia, mas nas considerações sobre Ware, discutivelmente o mais inventivo autor dos últimos anos, e mais influente e consagrado (organizou exposições, foi alvo, delas, fez dezenas de colaborações com historiadores, escritores, realizadores, editou antologias, tem quase “carta branca” nos seus projectos, etc.), o autor pretende ver, não uma pedra de fecho, mas pelo menos uma pedra-de-toque: “a culminação de um longo processo de legitimação e consagração da forma da banda desenhada que permitiu algumas bandas desenhadas e alguns artistas a entrada no mundo da arte”. Sublinhe-se “alguns”, e compreenda-se as razões desse intervalo e fractura.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e ao autor, pela ajuda em obtê-lo. 

3 comentários:

José Sá disse...

Caro Pedro,

Assim como há dias comentava relativamente às diferentes leituras do American Splendor no formato original e no formato de antologia, fico agora a pensar (sempre divaguei sobre) se as obras se distanciarão assim tanto de si mesmas conforme o formato em que são lidas que obriguem um crítico a fazer duas análises conforme o suporte, ou, pelo menos, a estabelecer/esclarecer os aspectos distintivos das diferentes leituras. Não imagino que não tenhas alguma vez discorrido sobre isto mais profundamente e que não tenha dificultado o teu trabalho.
Obrigado e Abraço.
José

Pedro Moura disse...

Essa é uma excelente questão, e que é abordada parcialmente por Beaty. O Pascal Lefèvre também tem um artigo sobre isso, intitulado ""The Importance of Being 'Published'. A Comparative Study of Different Comics Formats", em «Comic Culture», se bem que seja sobretudo sobre formatos diferentes - ele fala de Baudoin, por exemplo - e não sobre formatos diferentes sobre um mesmo "texto". Mas lá está, eis uma pergunta típica de estudos da materialidade da literatura: "é um 'mesmo' texto se estiver num formato/veículo/suporte diferente? Pode parecer fácil (ou estúpido) responder a e esta questão, mas não é.
Tomemos o "Maus" como exemplo. Hoje as pessoas falarão de "graphic novel" para aqui e para acolá, que é um "livro" bom, etc & tal, criando a ideia de que sempre existiram livros de banda desenhada come esta natureza/forma, e que o spiegelman havia pensado nesse fito desde o início, e até com o sucesso que teria, quando na verdade ele ia publicando capítulos quase parecidos com comic books, finíssimos, pequenos, e enfiados numa antologia de bd experimental que não vendia assim tanto pelas ruas de Nova Iorque... Por outro lado, hoje podemos comprar volumes de capa dura e um design impecável do "Peanuts" ou do "Donald Duck" do Barks, e fazer hossanas sobre a magnum opus desses génios, mas não nos podemos esquecer que o primeiro é uma tira que ia saindo nos jornais, dia a dia, e o outro eram histórias curtas, de um período curto, de revistinhas baratas da gigantesca Disney... E a recepção de todos esses objectos vai ter de ser necessariamente diferente. Não apenas o comportamento físico (é bem mais difícil ler na retrete os tomos de capa dura, ou levá-los para a praia no cesto com as tupperwares de fruta), mas a própria fruição sócio-cultural do livro: a forma como se compra, como se lê, como se coloca na estante, como se permite às crianças/filhos/convidados que os mexam, etc.
Irá a crítica estar atenta a essas transformações? Dificultará isso o trabalho? Essa é uma excelente questão, mas penso que a melhor resposta é ir lendo os textos (de todos) e ver até que ponto é que essa dimensão inflecte a pesquisa e a crítica.
Obrigado!
Pedro

José Sá disse...

Decalcado duma expressão semelhante que te será cara como crítico: não é o formato que faz a obra, mas sim a obra que faz o formato. Quero com isto dizer que já gostava do Barks quando o lia em formatinho e das histórias "do Disney" são das dele as quais me lembro melhor.
Quanto à portabilidade dos formatos, só levo para a retrete jornais e revistas, nunca bd(!), excepto a "Tarja Preta" e somente devido às instruções de leitura fornecidas no editorial eheheheh...
José