4 de novembro de 2013

The Superhero Reader. C. Hatfield, J. Heer e K. Worcester, eds. (UP Mississippi).

Este livro é, à semelhança de Arguing Comics e de A Comic Studies Reader, que nasceram do trabalho de Heer e Worcester, uma colectânea de artigos, capítulos, pequenos textos, papers ou excertos de livros, monográficos ou não, que no seu conjunto servirão de primeira abordagem para o seu tema. Neste caso em particular, é um foco na banda desenhada de super-heróis, mormente norte-americanos, os quais perfazem uma das mais visíveis e conhecidas faixas de produção desse país. É nesse sentido que os editores pediram a colaboração de Hatfield, cujo Hand of Fire demonstrara, pelo menos em parte, a sua capacidade de gerir uma discussão transversal e ancorada em disciplinas académicas do mainstream. Ou seja, mesmo para leitores que acompanhem ou estejam familiarizados com toda a bibliografia reunida neste volume, ele providencia uma estrutura cartográfica e organizadora da matéria, que poderá ajudar à sua releitura ou mesmo ensino. Para os outros, é uma plataforma unificada de apresentação, que pode depois ser complementada pela leitura das obras completas, dos trabalhos conexos citados ou, claro está, das obras primárias utilizadas como objectos de análise e/ou exemplo.

Com razão, imediatamente na introdução os editores assinalam o “potencial expressivo, a adaptabilidade metafórica e a durabilidade histórica do género dos super-heróis” (xi), o que só por si exige que se criem discursos académicos consolidados no saber disponível e não somente nas imediatas impressões quer dos seus fãs - usualmente defensores acríticos, omissos nas suas considerações históricas e contextualizadas, e demasiado envolvidos numa entrega emocional para compreenderem as dimensões que devem ser criticadas - quer dos seus detractores - que não conseguem conceber a possibilidade de existirem obras estimulantes, inperpelantes, críticas, no seu interior, ou a sua pertinência enquanto máquina narrativa. Se se aceitar que, para bem ou para mal, esta tipologia de personagens, e o género que constituem, criam um objecto que “espelha, e talvez mesmo molde, valores culturais e morais” (xiv), eles devem ser interrogados nas máximas valências possíveis. É isso o que este volume faz.

O livro está dividido em três secções, sempre com pequenas introduções que ajudam a navegar e a entrosar as várias linhas de discussão. A primeira dedica-se a “considerações históricas”, reunindo, por um lado, trabalhos de investigadores actuais que publicaram trabalhos estimulantes sobre a história do género, ora mais generalistas, como Peter Coogan, ora específicas às condições sócio-económicas do mercado, como Gerard Jones, políticas, como Walter Ong, ora ainda a considerações sobre género/sexo (Trina Robbins) e o contributo decisivo da cultura dos fãs para a re-construção e revitalização do género literário (Will Brooker, do último capítulo de Batman Unmasked) e, por outro, de textos de várias épocas que se tornariam fundamentais, desde o elogio pessoal de Jules Feiffer (The Great Comic Book Heroes) às críticas baseadas na psicologia social (Frederic Wertham, que, não é escusado dizê-lo, apesar dos problemas de análise e generalizações abusivas aqui e ali na sua obra, é mais “odiado” pelos fãs do género do que integrado e compreendido no que tinha razão da sua investigação em Seduction of the Innocent). Essa compreensão e ancoramento histórico é extremamente importante, para que não se generalizem, digamos, os “traços de personalidade” de certas personagens que existem há décadas, e que sempre se adaptaram às circunstâncias de produção e moralidades consensuais do seu tempo, quer em termos de acções quer em termos de filosofia dos seus papéis sociais (e também, em termos de representação social, cultural e económica, como é explorado, com humor, por esta infografia do Hulk, cujo projecto pode ser visto aqui).

Mais curioso ainda, nesta secção, é a agregação de um excerto da novela Gladiator, de Philip Wylie (de 1930), sobre uma fantástica personagem com poderes extraordinários e que, supostamente, terá sido uma das raízes conceptuais imediatas do Super-Homem de Siegel e Shuster. Um aspecto importante nesta colectânea, e isso sente-se particularmente nesta secção, é que a organização e disposição dos textos não segue uma linha cronológica de produção dos textos, mas antes uma ordem lógica do desenvolvimento do género. De forma a que, neste caso seguindo a própria cronologia do género, a leitura dos ensaios dos historiadores, marchetada pelos documentos mais antigos, vão fazendo consolidar uma imagem, se não exaustiva, pelo menos suficientemente completa. Alguns dos excertos são curtíssimos e focadíssimos, outros espraiam-se mais, mas sempre com essa ideia de imagem coordenada em mente.

A segunda secção foca “Teoria e Género”, e temos artigos preparatórios como o trabalho incontornável de John G. Cawelti sobre “fórmulas literárias”, textos de R. Jewett e S. Lawrence, R. B. Rollin, R. Reynolds, K. Kukkonen, assim como Hatfield (um excerto do livro sobre Kirby), Geoff Klock (do seu ainda excelente How to Read Superheroes and Why) e Scott Bukatman (com um artigo completo sobre a multímoda relação entre os super-heróis e o espaço urbano). Se na introdução os três editores explicitam o facto deste ser um “género narrativo codificado” (xiv), ao que poderíamos acrescentar o advérbio “altamente”, são estes ensaios da segunda parte, no seu conjunto, que procuram encontrar os elementos desse código. Talvez não tanto definições fechadas e finais, mas antes descrições o mais completas de todos os elementos que usualmente compõem a fabricação destas personagens, em termos icónicos e narrativos, ontológicos e políticos. Contribuindo então para a forma com que eles são igualmente re-interpretados quer para fins puros de entretenimento e “criação de mundos imaginários” quer conceitos passíveis de integrar entendimentos mais alargados do mundo, como se prevê na palavra “mitologia”, tantas vezes empregue. Todavia, em relação a esta mesma palavra, estes ensaios, mais uma vez, ensinam que ela deve ser usada com parcimónia, cuidado analítico e rigor científico (como o faz, pensamos, Reynolds em Superheroes: A Modern Mythology).

Aquilo que sobressai na leitura destes textos, porém, é a tal especificidade conceptual e intelectual que pode nascer da leitura e fruição do género. Não é apenas uma questão superficial e de espectacularidade que emerge deste género que o diferencia, positivamente (isto é, sem detrimento de nenhuma parte comparável, mas sem o diminuir tampouco), mas a maneira como dialoga com a cultura em geral, como reinventa ou reaproveita outros géneros e posicionamentos dos leitores, como obriga a pequenas alterações estéticas ou cognitivas. O ensaio de Kukkonen, por exemplo, emprega conceitos que nascem no seio da narratologia, sobretudo o conceito de “mundos narrativos” [storyworlds] tal como propostos por Marie-Laure Ryan, para, ao aliá-lo ao universo dos super-heróis (o título do artigo remete para a famosa saga da DC, “Navigating Infinite Earths”), fazer compreender os modos cognitivos com que os leitores lidam com informações contraditórias, a tal gestão paradoxal das continuidades, retcons, reinvenções, enfim, “as versões contrafactuais mutuamente incompatíveis dos seus mundos narrativos” (161), que ocorrem regularmente nesta esfera de produção, e que já havíamos debatido antes. Isto alerta, portanto, para uma complexa manipulação de compossibilidades (como diria Leibniz, abordado por Jeff McLaughlin em Comics as Philosophy) em relação a estas estruturas narrativas altamente complexas, o que complica uma mera rejeição pelo seu conteúdo adolescente e comercial. Como escreve o autor, “Os mundos narrativos, neste sentido, não são tanto representações do conteúdo do texto, mas representações de conteúdos que julgamos ser importantes ou pelo menos notáveis” (159). Há uma participação da parte do leitor que complexifica uma mera ideia de “leitura passiva”…

A terceira e última sessão é dedicada à “cultura e identidade” e reúne trabalhos sobre mulheres, com textos de Gloria Steinem e Lillian Robinson (muitas vezes buscando os elogios possíveis na criação de personagens positivas no que diz respeito a representação sexual e agência política e até de acção, arrolando-se a Mulher Maravilha, a Princesa Xena e Buffy), um texto muito pessoal que defende a força de Batman como camp, por Andy Medhurst, antes da sua transformação “ultra-macho” dos anos 1970, questões de raça, por Adilifu Nama, e masculinidade, por Jeffrey Brown, Lorrie Palmer e uma muito pessoal reminiscência de Henry Jenkins, que bebe tanto da autobiografia desse investigador académico como do conforto que ele encontrava nas fantasias dos super-heróis para ponderar sobre a morte.

O ensaio de Medhurst, retirado de The Many Lives of the Batman, é particularmente iluminador. Se bem que tenha sido escrito muito antes dos Batman de Nolan, ele pode ou deve ser agora re-lido à luz da nova ênfase dada pela produção contemporânea, que eliminou totalmente qualquer sombra de humor dessa personagem, como se não fosse possível retirar alguma dimensão risível de um homem que se veste de morcego. O autor alerta para o facto de que o “problema do camp [conhecido conceito tratado por Susan Sontag, por exemplo] é que se trata, acima de tudo, de um discurso de experiência e não de análise” (243), o que permite precisamente leituras múltiplas da personagem. A “correcção” que Medhurst cria, a um só tempo, em relação às leituras de Wertham e dos seus detractores, demonstra como a interpretação e uso (no seu sentido de Estudos Culturais) não pode ser fechada de qualquer maneira.

Quase todos os ensaios desta secção abordam com rigor e cuidado e sapiência muitos daqueles temas que os defensores acríticos do género dizem ter sido tratados com “maturidade” no seio da produção mainstream, como se o uso de uma personagem negra eliminasse problemas de representação racial, o colocar personagens femininas em uniformes coloridos impedisse a subordinação da mulher face aos modelos masculinos, ou a opção de termos um ou outro herói homossexual ou lésbica significasse uma abertura comprometida e o término da heteronormatividade. As mais das vezes, na verdade, o que se provocam são acções de cosmética que apenas sublinham com maior intensidade esses problemas de distribuição de representações, e como o género é atravessado maioritariamente por modelos normativos.

Jenkins parece ecoar as palavras de Umberto Eco quando diz “podes abandoná-los [aos super-heróis] durante décadas a fio, mas depois regressar a um comic book da DC, e seres apresentado de novo aos protagonistas onde aproximadamente os havias deixado” (297). Ora, se é verdade que, sobretudo após as décadas de 1980 e 1990, uma qualquer personagem poderia - e parafraseamos o super-herói que se queixa em Planetary no. 7 - ter crises de identidade, depressões nervosas, mudanças de sexualidade, e descobrir que as suas vidas eram todas mentira, a verdade é que existe sempre uma linha vermelha que os mantém num estado praticamente inalterado (e não apenas por serem propriedades intelectuais de empresas que desejam explorá-las comercialmente, mas por serem construídas com os tais elementos perenes). De certa forma, será essa “essência” que se vê iluminada, preservada e tornada analisável com estes textos.

Nota final: como sempre, agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

5 comentários:

José Sá disse...

Caro Pedro,
Sem dúvida, as decisões editoriais dos produtores de banda desenhada de grande tiragem não fugirão de decisões análogas tomadas para toda a indústria do entretenimento ou, já agora, de qualquer outra indústria. O tratamento político dado às "questões fracturantes" e a sua representatividade no universo da bd, como seria de esperar, não está fora deste mundo, ao contrário dalgumas das suas personagens, e reproduz a dimensão social e evolução moral das mesmas questões em dado momento. As conclusões coincidiriam, talvez, com qualquer estudo sobre um universo mais abrangente por nada disto representar qualquer tendência divergente ou tique idiossincrático circunscrito ao universo da BD.
Discordo da arrumação que se faz muitas vezes do fã acrítico e do crítico isento. Compreendo bem as diferenças entre um "crítico" e um "fã" e essas classificações para mim bastam e prefiro-as sem quaisquer outros pleonasmos e tautologias atreladas que dificultem o entendimento das causas (e efeitos) analisado(s) através duma abordagem metódica pelos primeiros ou que impeçam a compreensão dos efeitos pela transmissão empírica das impressões dos segundos. Sendo que estou claramente no segundo grupo, e falando um pouco das minhas impressões, da minha experiência pessoal, discordo respeitosamente :-) da generalização feita por Umberto Eco - a que se cola aos textos do Jenkins - se mantenha actual após a viragem do milénio. Na minha opinião, essas noções de normatividade para personagens com 80 ou menos anos de história é, respeitosamente, muito imediata e desfasada das acelerações tecnológicas em progressão geométrica a que assistimos e das transformações da organização social que eventualmente irão produzir. Estaremos a viver um novo período vitoriano (a história dar-lhe-á um nome qualquer, mas as comparações são evidentes entre os dois períodos no que toca a revolução tecnológica e globalização), o que me faz desconfiar muito dessa normatividade e perenidade.

E depois, ainda referindo-me ao regresso de um leitor aos super-heróis após um longo abandono (um pequeno aparte, quase sério), as questões de normatividade e perenidade estão a ser postas em causa ao longo das décadas por erros de continuidade retroactiva que eliminam a coerência às personagens e por fórmulas/opções de continuidade que retiram coesão à história. Narrativas sem coerência e coesão dificilmente sobreviverão pela perenidade, passo o pleonasmo. Ou fui só eu que abandonei o Aranha por não o aguentar "one more day" :-)????
Obrigado e um abraço.
José

Pedro Moura disse...

Olá.
Quanto ao teu primeiro parágrafo, nada tenho a dizer, pois são essas mesmas questões que são abordadas neste livro. Ninguém diz que esta área é "pior" ou "melhor" nessa dimensão que outras, mas convenhamos que existe, por comparação a outros ramos do entretenimento, mormente o cinema, muito menos pensamento.
A arrumação e adjectivação do "fã acrítico" e do "crítico" faz sentido na medida em que nem todos os fãs são acríticos - muitos dos aspectos, por exemplo, que tento abordar em termos estilísticos e artísticos são-me ensinados precisamente por fãs críticos, artistas opinativos, etc. E um crítico nunca é "isento", pois nem saberia o que isso significa. Dele é ser o mais sólido possível na sua argumentação. A relação do Jenkins a Eco (eu é que faço essa ligação, atenção, e seria do primeiro ao segundo, e não como a tua frase parece indicar) é meramente superficial, mas terá a ver com esses ritmos ou períodos que alguns leitores, como eu e tu, pelos vistos, teremos de abandono e regresso recorrente desse universo em particular, onde encontraremos sempre alguns - não todos, claro - factores perenes, familiares e, porque não?, confortáveis por isso mesmo.
Quanto aos problemas da produção contemporânea em relação à continuidade, teríamos de ver casos concretos. Não li "One More Day", apesar de saber o que se trata, e parece-me apenas mais uma dessas estratégias de voltar a servir o mesmo prato com um novo molho quente... Then again, eu sou um fã quase incondicional do nó górdio do "Final Crisis", por isso...
Pedro

José Sá disse...

Olá Pedro,

Também em relação ao teu primeiro parágrafo e à comparação que fazes, em defesa da honra :-) da 9ª indústria, quero pensar que a banda desenhada como "arte sequencial" estará mais perto do abstracto, enquanto o cinema estará mais perto da realidade. Isto, se quisermos entender a bd como forma de arte entre a pintura e o cinema. Lembro-me das coisas que ouvi e li sobre Tàpies e Mondrian e a sua busca, pela síntese, da metafísica e da natureza e o desejo de se afastarem, mormente em Tàpies, das amarras do real e das expectativas.
Em razão disto, sempre me pareceu, comparando o mainstream dos comics com o do cinema (e deste convivi de perto), que o cinema teve sempre mais necessidade de se justificar.
Abraço,
José

Pedro Moura disse...

Olá, novamente
Só uma coisa: eu nunca, nunca, falo de "9ª arte" (então 9ª indústria, nunca tinha ouvido); escrevi mesmo um ensaio sobre o meu desapreço dessa expressão. Mas avancemos.
Não consigo pensar dessa forma arrumada de uma arte estar aqui ou ali, ou entre esta e aquela outra forma: Cada uma tem características formais diferentes, mas, mais importante, uma história particular, uma recepção social diferenciada, e redes de relação entre elas. O cinema não teve nada que se justificar, uma vez que a sua transformação numa disciplina digna de pensamento, mesmo que paulatino, foi relativamente rápida desde o seu aparecimento, ao passo que a banda desenhada ainda hoje tem dificuldades em fazer singrar aquelas conquistas que entretanto tiveram lugar nesse domínio.
Já que no diz respeito ao "abstracto", isso é quase "natural", já que não estamos a falar de uma arte indexada ao real (mesmo que as opções da fotografia não sejam lineares e imediatas), mas antes de um qualquer grau de expressão pessoal, de gesto do artista, etc.
Pedro

José Sá disse...

Estou contigo, também não sigo os top charts das artes :-). Compreendo por que tens de ser objectivo nas definições que empregas. Já eu, sou só um comentador que aprecia muito o que escreves e que se pode dar ao luxo de brincar um pouco mais com os termos. Por isso a 9ª indústria por oposição à 7ª, pois que, conforme escrevo no comentário e seguindo o tema do post, comparava a vertente comercial mainstream das duas actividades e não a totalidade das duas formas de arte.
Abraço,
José