28 de dezembro de 2013

Lisboa. David Pintor (Kalandraka)

Através do Google Earth conseguimos hoje ver, de rabo assente e à frente do computador, grande parte das ruas de Lisboa, até mesmo atravessá-las usando os comandos possíveis (Alfama continua inavegável, como soe). Os tours virtuais de muitos museus, ou outras instâncias, vem alargar de forma positiva a acessibilidade àqueles que não a possuem, mas será sempre uma experiência diminuída. E os guias turísticos, livros de fotografias, vídeos, etc., serão sempre uma ferramenta útil, de apoio, informação, preparação. Tudo isto é muito “útil”, sem dúvida, tudo isto concorre para uma maior “informação”, é certo, mas não é esse sempre o propósito dos livros, nem é isso o que os artistas perseguem nem o que os leitores desejam.

A palavra “visita” parte do verbo videre, isto é, “ver” ou “observar”, por isso tem menos a ver com uma presença física do que uma acção complexa que ela implica. E se num momento o emprego de imagens associadas à viagem e ao seu testemunho procurava devolver um peso de verdade verificável, de concretudes objectivas, de Matthew Paris e Duarte de Armas a Melton Prior, a chegada dos “cadernos de viagem” viriam impor outras inflexões, olhares que moldariam as formas pela imaginação. De Delacroix a Salavisa, cadernos que testemunhariam um desenho que começa a responder a outras pulsões (informados por todos os desenvolvimentos das artes visuais e da filosofia das artes). Constantin Guys seria um curioso caso de transição, talvez, e que nos remete para as considerações de Baudelaire no seu famoso ensaio, “O pintor da vida moderna”, no qual debate a forma como um artista pode encontrar os sinais de uma beleza eterna precisamente onde inscreve os sinais, exteriores, da beleza passageira, do dia.  

O diário de viagem, ou caderno de esboços, ou diário gráfico, é um espaço onde os artistas podem moldar precisamente as impressões que cada momento de observação lhes permite, para captarem o que há de passageiro, de distinto e exclusivo desse preciso momento, de maneira a que, quando devolvidas, essas formas permitam aos espectadores-leitores vislumbrarem algo que atinge uma maior profundidade. Tal como profunda pode ser a água escondida pela superfície de um passeio coberto de calçada portuguesa.

Os actos de transformação espacial e imaginativa que David Pintor exerce sobre Lisboa recordam algumas das paisagens maravilhosas propostas por Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves nos livros de Filipe Seems. Uma Lisboa transformada em Veneza feérica, mas mais mágica que Lisboa e Veneza juntas: uma cidade onde há uma pequena enseada em frente às escadas da Assembleia, onde as “ferraduras” das portas da estação do Rossio são transformadas em vitrinas de um Oceanário, na qual botes conseguem navegar pela calçada ou pelo macadame, e a ventania sacode a pala de Álvaro Siza. Uma cidade cheia de roupa multicolorida a secar às janelas, atravessada incessantemente por cardumes-bandos de sardinhas aladas com cores de cerâmica, e cujos eléctricos parecem criaturas animadas de Miyazaki, espreitando por um beco de Alfama ou por detrás de um arbusto dos jardins da Gulbenkian.

Baudelaire, naquele mesmo texto, dizia que Guys “desenha de memória, e não de um modelo”, e talvez pudéssemos dizer o mesmo de Pintor, na medida em que o artista galego não exerce somente os seus dotes de observador no momento em que desenha nos diários, mas vaza neles impressões que nascem noutro local e momento, faz atravessá-los desde logo por um filtro. O seu traço é muito estilizado, uma intersecção entre um desenho de assinatura muito vincada, feita de elementos preexistentes e repetidos, e uma abordagem mais gestual, expressiva, que responde à moldagem do que é visto aqui e agora. Um encontro entre Loustal e Mariscal. As cores são sólidas e planas, mas procuram responder aos desafios de alguma da luz que se exibe por Lisboa, nos reflexos entre o Tejo e as fachadas brancas dos prédios nas colinas, os telhados laranjas e inclinados e os cobos no chão.

O autor revela igualmente um vivo interesse em inscrever em muitos dos seus desenhos um pequeno avatar auto-representativo: o próprio artista, sempre de chapéu, no próprio acto de desenhar. Não como perspectiva conduzida do que nós também vemos, mas como personagem numa acção, seja ela a do desenho, a do descanso que o prepara ou o segue, ou as aventuras de deslocação, de fiel bicicleta ao lado, que unem os pontos visitados. Cada duas páginas apresentam-nos uma imensa paisagem, uma série de panoramas diversificados, que ora nos revelam um cantinho, um pormenor, ora uma alargadíssima vista sobre as margens do rio.

Nalguns momentos, incorremos na ideia de que talvez esta Lisboa seja mítica e feérica demais. Coberta ou composta por ideias desde logo fabricadas antes de as visitar. Ou sensibilizada para mostrar aquilo que se desejava encontrar à partida. Feita de esplanadas em sítios inusitados, cafés em todas as esquinas, cobos da calçada prístinos e prontos a serem colhidos, e ruas limpas e solarengas, sem nenhuma outra figura humana que não o próprio desenhador. Tememos estar perante uma fantasia que esvazia Lisboa de algumas das suas características próprias. Talvez menos felizes, que desejaríamos corrigir, quem sabe, mas próprias, dela e irrepetíveis. Ou seja, há um ligeiro perigo de Lisboa surgir como uma colecção de “postais” [Mais: quatro impressões são oferecidas no interior do livro, com esse propósito separável]. Mas se as olharmos, às ilustrações, como retratos individuais onde se encontram uma visita-observação e um acto de moldar a imaginação do artista, que vão muito para além da “utilidade” dos postais, talvez o possamos percorrer como um pequeno guia de descobertas.

Nota final: agradecimentos à editora pela oferta do livro.

3 comentários:

José Sá disse...

Olá Pedro,
Desde logo, este livro e a tua crítica recordaram-me a minha condição de imigrante nesta cidade e o olhar que ainda tenho sobre ela. Curiosamente, anteontem dava um passeio pela Graça e chegado ao Miradouro da Senhora do Monte - senti-me contraditoriamente feliz por aquele local ser um quase segredo para os turistas e não mais para mim - recordei-me desta tua entrada e ao percorrer aquela vista imensa e onírica de Lisboa associei-me às personagens do "The Arrival" do Shaun Tan que logo mereceu uma referência perante aquele fim de tarde. Achando agora talvez ridícula a imagem, naquele momento ainda cofundido no espírito do "The Arrival", senti-me, qual Gregor Samsa, metamorfoseado num estranho insecto voador de olhos compostos em outros milhares de olhos que conseguia ver em todas as direcções. Não sendo este "Lisboa" um livro banda desenhada - não é, pois não? No fim da arte, só o crítico nos poderá apontar o caminho :-) - estimula-nos a prosseguir por algumas, que ajudem a recriar/justificar o nosso real num ambiente mais agradável. Como este e ainda mais, o livro de ilustração infantil "Océano" que nos trouxeste recorda-me o local onde trabalho para os lados da Portela ;-) e os diferentes tipos de visão que ele me/nos permite sobre as pessoas e a cidade e em como tudo se transforma se nos damos a todos um momento sem ansiedade, isolados da aglomeração, que permita alargar a nossa habitual visão de túnel.
Obrigado e em 2014 "no pares, sigue, sigue". Parece um desejo egoísta da minha parte, mas, e basta perceber a poesia que dedicaste a esta tua última entrada, não é.
Abraços,
José

Pedro Moura disse...

Desejo-te também a ti, à meia-dúzia de leitores do Lerbd, um bom 2014, assim como agradeço as palavras.
Não divulgues em demasia o miradouro, não vão construir cafés caros lá em cima (deixemos os turistas presos nos locais habituais), e aproveita bem a possibilidade dos passeios. Se me permites a nota pessoal, na adolescência trabalhei como "moço de recados", a trocar correspondência e burocracia por toda Lisboa, e sobretudo deslocava-me a pé, pois tinha de percorrer várias zonas. Isso deu-me um acesso e um conhecimento sobre a cidade que invejo agora (pois esqueci-me de muitos dos nomes das ruas, que sabia de cor), e que não me faz esquecer que Lisboa tem muito para descobrir, mesmo por aqueles que cá vivem ou nasceram (como as pessoas que têm "medo" - literalmente, escutei esta palavra - de ir ao Martim Moniz, quanto mais outras zonas).
Bom passeio!
pedro

José Sá disse...

Meia-dúzia de leitores? :-))) Não te subestimes. Poderão não ser os mais afectuosos, talvez pensem demasiado as palavras, mas basta uma (rara) entrada mais "fracturante" e pim! mostram logo a atenção que te dedicam. Bem merecida, diga-se, mesmo que não a digam, e, pela sua pontualidade, bastante reveladora. Quem tem qualidade pode sempre contar com o interesse do próximo. Acho ;-)
José