22 de abril de 2015

The French Comics Studies Reader. Ann Miller e Bart Beaty, eds. (Leuven University Press), por Hugo Almeida.

Nota inicial: conforme indicado quando falámos brevemente deste título, e recuperando uma experiência anterior, a resenha crítica deste volume académico fica a cargo de outro jovem investigador, Hugo Almeida, a quem passamos a palavra, e a quem agradecemos a atenção, naturalmente. 

Esta é uma colecção dedicada aos estudos francófonos de banda desenhada, com o propósito de os traduzir para inglês e providenciar alguma contextualização. É um projecto que se justifica pelo inglês ser usado como língua franca no meio académico, mas também pelas décadas de avanço que a esfera franco-belga teve em matéria de estudos de banda desenhada. Nesse sentido, é uma publicação necessária, que se sucede a outras, como a tradução para inglês de obras de Thierry Groensteen, The System of Comics (co-traduzida por Bart Beaty, um dos editores desta antologia) e Comics and Narration (esta traduzida por Ann Miller, também editora deste volume), ou The Origins of Comics de Thierry Smolderen (também co-traduzido por Bart Beaty). The French Comics Studies Reader difere destas três publicações no sentido em que fornece uma perspectiva mais alargada sobre o trabalho de autores francófonos. Para este volume foram seleccionados artigos académicos completos, bem como excertos de livros dos autores. É um esforço que gostaríamos de ver também em relação à investigação escrita em japonês sobre banda desenhada, na sequência de outros esforços, como um número recente do International Journal of Comic Art dedicado à banda desenhada asiática contemporânea. (Mais) 

Projectos desta natureza são a melhor maneira de evitar que se re-invente a roda, ou seja, que se gaste tempo e recursos a redescobrirem-se conclusões. A constituição de uma base bibliográfica comum também permite que os resultados e discussões de cada lado possam ser avaliados e desenvolvidos por toda a comunidade académica. Este livro é um passo significativo nesse sentido, ao traduzir não só textos contemporâneos, mas também uma série de análises iniciais que podem servir de ponto de partida a muitas discussões que se repetem na literatura de ambos os lados.

Tal como é mencionado na introdução do livro, a literatura francófona e anglófona constituem duas esferas de influência, que no caso dos estudos de banda desenhada resultaram em práticas relativamente distintas. Apesar de haver sempre sobreposição nos temas estudados, o estudos de banda desenhada em França afirmaram-se principalmente com a investigação de questões ontológicas e formais (os mecanismos narratológicos, estéticos e convenções semânticas várias da banda desenhada), ao passo que na literatura anglófona, o desenvolvimento inicial e legitimação dos comics studies fez-se através de ferramentas e objectivos relacionados com os estudos culturais. Estas tendências não são de todo determinantes e, por exemplo, do lado anglófono tem-se observado um interesse crescente nos mecanismos da banda desenhada, que beneficiará dos textos aqui presentes.

Sendo que os textos seleccionados fazem parte de uma bibliografia extensa que inclui os anos 60, a sua qualidade geral é elevada. Os textos estão organizados em quatro secções temáticas: a origem da banda desenhada e suas definições; estudo das suas formalidades; crítica de banda desenhada; e comentários à indústria da banda desenhada franco-belga. A organização dos textos dentro de cada secção sugere um diálogo entre os vários autores e pontos de vista, tentando reproduzir (imaginamos) a evolução que cada discussão teve ao longo do tempo. Neste sentido, tem uma perspectiva histórica que não se reflecte necessariamente numa organização cronológica dos textos.

A primeira secção do livro, dedicada às origens e definições, inclui textos produzidos desde os anos 60 até à nossa década. Destaca-se um texto de Gérard Blanchard de 1969, em que a argumentação é, por vezes, pouco clara, mas que sugere uma série de relações e pontos de partida, inaugurando uma discussão sobre a relação da banda desenhada com outros dispositivos visuais. A sua argumentação inicial sugere que a nossa capacidade de inferir narrativas a partir de imagens é reminiscente das necessidades dos nossos antepassados como caçadores-recolectores, que teriam que seguir pistas visuais para descobrir o percurso ou posição de potenciais presas. Este cenário seria explorado mais tarde por Neil Cohn. Com acesso a desenvolvimentos conceptuais e metodológicos posteriores, Cohn propõe que na base da banda desenhada não estão apenas códigos estabelecidos por convenção (como muitos artistas e investigadores sugeriram entretanto), mas também dispositivos cognitivos fundamentais que regem a nossa compreensão narrativa de sequências de imagens.

A partir desta introdução, Blanchard situa a prática contemporânea de banda desenhada num continuum histórico de actividades humanas diversas, apontando para um cruzamento constante entre imagens e comunicação verbal (escrita e oral). A sucessão de formas narrativas neste continuum tem dois problemas: por um lado, a existência de uma genealogia é sugerida ao longo do texto, mas nunca fundamentada abertamente; por outro, o autor não distingue o desenvolvimento de formas que integram texto e imagem, do desenvolvimento de narrativas visuais (a distinção é feita mais tarde num texto de Groensteen). Apesar de não estar explicitado, as observações deste texto relacionam-se com uma discussão mais geral sobre essencialismo nas artes. Ao apontar a ocorrência repetida (e portanto “natural”) de cruzamentos entre modos de comunicação, o autor enumera uma série de exemplos que contradizem a tendência de regimentar e separar texto e imagem como se fossem modos completamente imiscíveis.

Os textos mais conseguidos desta secção são, a nosso ver, os da autoria de Thierry Groensteen e Thierry Smolderen. Os dois textos com que Groensteen contribui são abrangentes no seu tratamento da questão ontológica na banda desenhada. O primeiro texto refuta definições de banda desenhada taxativas ou prescritivas, e que invariavelmente remetem a banda desenhada para a categoria do sub-género literário ou da paraliteratura. No segundo texto, Groensteen percorre cuidadosamente vários ângulos da questão ontológica. Estes incluem a progressão histórica de definições e nomenclaturas para as “imagens em sequência” (histórias aos quadradinhos, comics, romances gráficos, etc.), mas também os desafios levantados pela descentralização da sua produção, o impacto do digital na sua difusão, e a exploração de novos territórios materiais e conceptuais na banda desenhada, que contestam necessariamente definições absolutas.

O texto de Smolderen propõe re-situar o nosso entendimento de banda desenhada na sua origem como meio “híbrido,” aqui entendido num sentido lato não só como a integração de imagem e texto, mas também como meio no qual se misturam e desenvolvem estratégias gráficas de várias proveniências. As novas linhas de pesquisa que sugere poderão ter repercussões significativas não só do ponto de vista teórico, mas também na prática de banda desenhada, práticas que encorajam a exploração de formas não convencionais de representação. 

A segunda secção, dedicada aos mecanismos da banda desenhada, segue directamente das discussões sobre a sua definição. Aqui, podemos ainda identificar a procura de uma “essência” da banda desenhada, em particular a partir de comparações com a pintura. É o caso do texto de Pierre Sterckx, cuja argumentação se sustenta em observações relativamente superficiais sobre dinamismo e movimento, e do texto de Jacques Samson que, ao defender a inclusão da banda desenhada no cânone das artes visuais, acaba por sugerir também uma ruptura entre a banda desenhada “moderna” e a tradicional, o que poderia resultar numa espécie de branqueamento histórico.

Jan Baetens e Pascal Lefèvre contribuem com dois textos sucintos sobre as dimensões do texto e paratexto (elementos periféricos à história presentes na capa, contracapa, lombada, etc.) na banda desenhada, que informariam aprofundamentos posteriores sobre como texto e paratexto influenciam leituras, ao dirigir os leitores para interpretações e expectativas específicas.

Mais uma vez, Groensteen contribui com um dos textos mais significativos desta secção, em que desconstrói a noção de sequência como veículo de narrativas e enumera uma série de processos não-narrativos que podem ocupar uma colecção ou série de imagens, sem que estas se tornem “narrativas”. Talvez mais importante, parte destes processos para questionar a narratividade intrínseca da banda desenhada, assumida em muitas análises e definições. Sem se comprometer, deixa em aberto a possível qualidade contingente e não-essencial da narrativa na banda desenhada.

Incluída nesta secção está ainda um texto seminal de 1976 de Pierre Fresnault-Deruelle, publicado no agora mítico número 24 da Communications, a famosa revista de estudos semióticos das décadas de 1960-70, dedicado em exclusivo à banda desenhada. Este texto desenvolve algumas ideias gerais sobre forma e composição, das quais podemos ver ecos em autores posteriores como Groensteen e Benoît Peeters. Em particular, é referida uma ideia repetida por muitos artistas e textos posteriores (mesmo em autores anglófonos como Charles Hatfield), sobre a dupla função da página como unidade compositiva que procura coerência interna, e como veículo de uma sequência de unidades narrativas descontínuas.

A terceira secção é dedicada à crítica e análise de obras específicas. Destacamos um excerto de Bruno Lecigne e Jean-Pierre Tamine que correlaciona o uso do preto e branco por Moebius e Tardi com os movimentos hiper- e neo-realistas na pintura. Esta comparação serve de pretexto para discutir o tratamento que estes autores fazem de preocupações transversais na cultura, em particular questões típicas do pós-modernismo como a referencialidade e a simulação.

Nesta secção, ainda estão presentes três interpretações diferentes de As Jóias de Castafiore de Hergé, uma das obras mais estudadas por autores francófonos. De Michel Serres é traduzido um ensaio cuja forma recapitula o ruído semiótico e a proliferação de informação (verbal, visual, sonora) que o autor identifica como temas da obra. Já Benoît Peeters e Serge Tisseron discutem, a partir de pontos de vista opostos, o significado do elemento feminino na obra de Hergé. De Harry Morgan e Manuel Hirtz, é traduzido um excerto de The Apocalypses of Jack Kirby, onde relacionam leitmotifs recorrentes na obra do artista com o pensamento gnóstico.

A quarta secção, dedicada a comentários à indústria de banda desenhada franco-belga, é a mais curta da antologia e talvez a maior surpresa de todo o volume. Destacamos um texto historicamente importante de Luc Boltanski de 1975, que correlaciona as alterações sociais que se sucedem no pós-Segunda Guerra com as transformações observadas na indústria da banda desenhada e suas audiências a partir dos anos 70. É um texto incisivo, que fornece uma série de pistas para uma discussão mais alargada sobre a relação da banda desenhada com normas culturais, e em particular o seu papel como agente sociopolítico, desenvolvido noutras tangentes por autores como Éric Maigret (2012), ou Michael Demson e Heather Brown (2011). Ainda assim, parece-nos que o autor é por vezes demasiado determinista na leitura que faz das condicionantes sociais à volta de uma prática artística.

Destoando de todo o livro, o texto de Barthélémy Schwartz presente nesta secção é um comentário moralista e incoerente às relações de poder entre editoras e autores.

Os textos escolhidos para este volume retratam várias perspectivas que se foram construindo ao longo de mais de quarenta anos no seio das publicações francófonas. Por esse motivo, nem todos os textos reflectem posições actuais na área. Essa é uma consequência necessária para uma antologia que tenta reproduzir (ou sumarizar) a evolução dos estudos francófonos de banda desenhada para um novo público. Achamos que este modelo de curadoria de textos é preferível a outro mais direccionado sobre perspectivas específicas, pelo menos num gesto inicial como este. Muitos destes textos têm uma importância estrutural para todo o corpo de conhecimento dos estudos de banda desenhada. A sua divulgação para lá da esfera francófona é, por isso, um passo importante na consolidação desta área de investigação. Esperemos que gestos semelhantes, ou com direcções mais específicas, se repitam. 

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