24 de fevereiro de 2016

Hieronymus. Marcel Ruijters (Knockabout)

Neste breve corpo de três biografias em banda desenhada de artistas visuais ou plásticos, entramos em território holandês, com um pintor de uma época mais recuada, e com um autor que, contemporâneo, já revelou o seu contínuo interesse por uma “língua antiga”. Espécie de biografia inventada – dada a ausência de dados biográficos sólidos, com poucas excepções pontuais e em segunda mão, sobre o pintor Jeroen van Aeken de ‘s-Hertogenbosch, mais conhecido por Jerónimo ou Hieronymus Bosch -, Marcel Ruijters opta por subsumir toda e qualquer pesquisa inerente ao título à ideia de perseguirmos o trajecto de um pintor na sua ascensão e conquista de algum nome. Hieronymus não reconta toda a sua vida de fio a pavio, mas inicia-se na vida adulta do pintor. E não procura criar nenhum mecanismo de explicação definitiva dos seus mais famosos quadros, os quais não perfazem, na verdade, a maioria do que se lhe pode atribuir com segurança: a esmagadora dos quadros que sobreviveram de Bosch são na verdade de matérias convencionais religiosas. Nesse sentido, e até pelo uso “mágico” que o autor da banda desenhada faz dos seus quadros, aqui e ali mostrando a sua feitura, mas obliquamente, e incorporando nas ideias internas de muitas personagens as estranhas e distorcidas criaturas que parecem criar um imaginário “Boschiano”, Hieronymus contribui sobremaneira para a manutenção de um certo mito. (Mais)

O “afastamento da realidade” da parte de Bosch não pode ser visto como um problema de valor da arte, uma vez que ele é mesmo função de uma abordagem que contemplaria a integração da fantasia (positiva ou negativa) na própria compreensão do mundo, sobretudo se tivermos em conta um enquadramento de crenças e expectativas informadas por princípios e narrativas religiosas que muito dificilmente conseguiremos entender hoje, dado o grau de laicização e racionalismo que impera (inclusive nos próprios crentes, os quais, mesmo esperando uma recompensa de vida após a morte, não temerão um Inferno físico e tortuoso). É certo que existem teorias que pretendem ver nas imagens mais fantásticas do pintor holandês uma tradução de visões místicas (tremendas), soluções alquímicas ou até alucinações provocadas por substâncias alcalóides (como a hipotética ingestão de pão bolorento com cravagens, levando ao ergotismo, ou “fogo de Santo António”, como é citado no texto), mas a imputação de uma categoria como o “surrealismo” num contexto medieval é errónea, uma vez que não tem em conta precisamente a mundividência medieval, a qual não categorizava essas diferenças que agora nos parecem claríssimas entre “mundos da vigília e “onírico”, “loucura e normalidade”, etc. (vide Foucault). A pintura de Bosch é reveladora de uma visão relativamente conservadora da moral – recordemo-nos de que o pintor não era seguidor das novas tendências, então “modernas”, da arte perseguida pelos seus compatriotas do sul, segundo as lições de Gombrich, instilando-lhe um certo “gosto antigo” -, mas que ainda assim revela algum fascínio pela sensualidade carnal e secular. Daí o visível parodoxo de forças morais nas suas pinturas mais famosas.

Parte dessa cultura está patente no livro de Ruijters, ainda que sejam necessárias algumas informações exteriores para compreender a sua importância. Por exemplo, o poder secular da ordem dos Dominicanos é mostrado ao longo da narrativa, mas se não nos recordarmos do papel particular dessa ordem no interior do Catolicismo (que poderíamos descrever como um dos seus ramos mais conservadores e moralistas, pela invenção da Inquisição, mas não só), e que estamos a alguns anos da Reforma que revolucionaria toda a Europa, criando divisões insanáveis não apenas no Cristianismo, como na organização de poderes e mesmo mentalidades, essa informação poderá não surgir tão eficaz como isso. A histórica informação de que Bosch pertencia a uma ordem religiosa de culto mariano também não parece ser alvo de atenção do livro, quiçá algo que poderá parecer “estranho” para um holandês contemporâneo laico, mas que o seria menos em relação a um português, mesmo laico. Ruijters providencia uma espécie de suplemento com anotações que nos ajudará a compreender uma mão-cheia de cenas, mas estamos sempre em crer que é a sua integração na própria textura da narrativa que deveria contar. Sabemos que esta é uma atitude algo superficial – um autor pode sempre estender a sua narrativa de banda desenhada através de outros recursos, mesmo extratextuais, nada o impede e isso apenas reforça a multidimensionalidade de uma obra -, mas ela justifica-se apenas num contexto desta espécie, em que há uma preocupação comunicacional e pedagógica clara.

É uma compreensão dessa mundividência, por exemplo, que nos deve fazer prevenir a ideia de que algumas das categorias de Bosch seriam “metáforas visuais”. Não o são, uma vez que pouco importa o modo de definição dessa categoria da arte, o autor holandês procurava uma simbolização concatenada, através de elementos visuais, de elementos legíveis pelos seus observadores históricos, naquilo que o famoso historiador de arte H. W. Janson chamou de “sermões visuais” ou “picturais”. Recordemo-nos de que Brueghel, o Velho, pintara os seus Provérbios, com pequenas anedotas, cada qual recuperando a expressão verbal, algumas das quais pouco penetráveis sem alguma dose hercúlea de investigação (já cumprida por historiadores da arte e cultura). Poder-se-ia dizer que Bosch apenas aumentara o grau de opacidade dessa tradução? As suas figuras são inéditas, mesmo comparadas com outras representações dos abismos infernais da sua época, e os seus demónios são bem distintos. A legibilidade das suas figuras lançam-nas para o campo da alegoria, a qual necessita de um código. O problema, já na superfície de Hieronymus, é que essa alegoria é domesticada, explicada, as arestas desbastadas, a força interrompida. Não é que Ruijters apresente uma “explicação”, mas colocando-o num mundo onde existem corpos deformados um pouco por todo o lado, uma sociedade de classes estratificada e inamovível, e vários graus de superstição fácil (tudo isso realidades históricas), a sua suposta diferença acaba diluída numa espécie de observação distorcida.

Com efeito, num contraste directo com outras obras do autor, sendo Inferno o exemplo mais imediato, Hieronymus não é apenas mais convencional, como alguma da força das obras anteriores se encontra diluído por razão dessas mesmas escolhas convencionais. Ruitjers lavra diálogos, cenas domésticas, uma economia em que Bosch surge como uma personagem dividida entre preocupações imediatas e materiais, uma sede de criação que o ultrapassa, e as obrigações que tem enquanto cidadão do seu mundo. Ou seja, Ruijters nem o transforma numa figura atormentada e trágica – se se fizesse transmutar as suas “visões pictorais” numa tradução de um psicodrama interno – mas tampouco numa figura romântica lutando contra interesses antagónicos (como sucede em relação a Rembrandt, como veremos, por exemplo). O fim da leitura, porém, poderá deixar uma espécie de gosto amargo, fazendo-nos perguntar não tanto, “quem é este homem?”, mas “quem é este homem para Ruijters?”

No entanto, há escolhas judiciosas do autor que apenas num contexto historicista poderiam ser contestadas. O pintor, de provável descendência germânica, e que assinaria algum do seu trabalho com a forma latina “Hieronymus”, seguido da forma abreviada da terra natal, nasceu na pequena cidade, do norte das Terras Baixas, de 's-Hertogenbosch (mesmo assim, com a apóstrofe no início), a qual não sendo um centro nevrálgico de comércio e arte, não deixava de ser um centro vivo de cultura. Mas Ruijters opta por representar essa cidade totalmente sob o domínio opressivo intelectual das classes mais altas dos nobres e dos eclesiásticos, de forma a criar, a um só tempo, uma espécie de insatisfação e uma certa resignação no pintor. Há uma cena em que ele quase acompanha o mestre arquitecto da catedral de Bosch na direcção da Flandres, mas acaba por desistir, por superstição e obscurantismo (a menos que queiramos interpretar essa cedência a um mais profundo temor, mas estaríamos a criar uma divisão psicológica que não existiria na época). Ou seja, na verdade, há uma tentativa, mas débil, em criar contornos de isolamento romântico e de contornos trágicos, mas somente à escala doméstica. O Bosch de Hieronymus é afinal um pater familias simples, humilde e trabalhador. Mas não genial. Todavia, talvez seja esse mesmo tratamento que seja revolucionário no autor de banda desenhada contemporâneo…

Duas características de Bosch, porém, aproximam-no de uma certa ideia da banda desenhada patente nos nossos dias. Em primeiro lugar, isso deve-se à sua capacidade de desenho, sendo esse um dos instrumentos centrais do seu trabalho, chegando mesmo a ter trabalhado nessa disciplina não enquanto mero caminho de pensamento, esboço e preparação para as pinturas, mas antes como território autónomo e fim em si mesmo. Ou seja, o uso do desenho enquanto meio de expressão e de laboratório de formas. Em segundo lugar, está a sua relação imediata com uma cultura popular, viva, corrente da sua época, que o aproxima das figuras monstruosas que pululam na catedral da sua terra (discutidas verbalmente, mas não “mostradas”), já para não falar daquela noção dos provérbios e da sua tradução pictural. Isto é, um autor cujas pinturas deveriam ser lidas, mais do que contempladas, aproximaria de forma complexa à noção contemporânea de “imagemtexto” que preside à banda desenhada.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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