11 de fevereiro de 2016

Yon & Mu. Junji Ito (Kodansha)

E agora, para algo completamente diferente.

Junji Ito é um autor que tentamos seguir com interesse, por criar das poucas bandas desenhadas de horror que no é de facto perturbante a um nível fisiológico. O modo como ele transforma os corpos humanos em palcos de transformações plásticas, sem jamais perder o fio à meada naturalista torna-o perfeito para certas emoções (como discutimos há pouco). Não foi sem alguma surpresa, portanto, que nos deparámos com um livro que parece dedicar-se a territórios totalmente distintos, e que pensávamos afastados do autor. (Mais) 

Como indica o supra-título do livro, Yon & Mu não é mais do que “o diário dos gatos de Junji Ito”. Associando-se a uma tradição vetusta de demasiadas pessoas, e sobretudo desde o advento da internet, a atenção para com os gatos próprios roça sempre a obsessão doentia, apenas comparável com aquela de que os pais se nutrem pensando sempre que os seus filhos são particularmente dotados para um qualquer talento que insistem em querer partilhar com os demais.

Na verdade, a história inicia-se com algum distanciamento e desconfiança mútua entre o autor e os seus gatos... Um primeiro ponto a assinalar é que este livro assume um carácter semi-autobiográfico, pois mesmo que o casal que se acaba de mudar para um apartamento responda, no interior das histórias, pelos nomes de J-kun e A-ko, eles são avatares claros do autor e da sua namorada-depois-mulher (cujo primeiro nome é Ayako). E os gatos Yun e Mu correspondem de facto aos gatos que tiveram na época, até tornados “documentais” pela inclusão de duas páginas que lhes são dedicadas, com uma colagem de fotografias caseiras várias (mesmo de má qualidade), revelando quer a exactidão da representação física quer de alguns comportamentos retratados. A namorada A-ko, ao mudar-se, traz um gato, cujo padrão no corpo se assemelha a uma “tête de mort” (nem a propósito, para um autor de horror), e a amizade entre gato e autor não se inicia de imediato. Porém, é de imediato no primeiro episódio que o homem se rende aos encantos do felino, de uma forma obsessiva, pateta e perfeitamente credível.

O livro é pequeníssimo, e divide-se numa mão-cheia de capítulos de uma dezena de páginas. Que foram sendo publicados numa revista periódica por pedido do editor de Ito, que acreditava este ser um exercício curioso de descontração para o autor das epopeias negras de Tomei e Uzumaki. Qualquer pessoa que convida com gatos encontrará aqui experiências similares, que – como as crianças, novamente – rondam sempre a admiração e a exasperação. Independentemente da suposta superioridade humana, vemos ambos os “donos” a transformarem toda a sua vida em nome do convívio com os seus gatos domésticos, numa espécie de novela burguesa, o que permite ao mesmo tempo dar a ver uma vida quotidiana, trivial e “normal” japonesa que costuma estar afastada da maior parte da mangá popular. Cada episódio foca uma crise doméstica, por vezes absolutamente banal, outras vezes mais crispada, mas que termina sempre por construir as personalidades de todas as personagens.

Não sendo de forma alguma um livro brilhante, e muito menos o mais conseguido do autor, ou sequer um bom livro sobre gatos – se se acreditar que isso é possível, e estamos em crer que sim, ao que retornaremos -, ainda assim Yun & Mu terão pequenos elementos que importarão conhecer, sobretudo aos fãs do autor. A justificação é o ponto curioso de que o autor não abandona de forma alguma as suas capacidades de desenho, e até mesmo “manias” de representação, para instilar alguns momentos de distorção plástica assustadoras mesmo em cenas que em nada teriam de horror. Ao mostrar A-ko de pupilas vazias, distorcendo os rostos dos humanos quando de uma expressão de emoção transbordante, ou dos animais para transmitir um movimento qualquer, preenchendo as vinhetas com linhas cinéticas, padrões ou ocupações gráficas para denotar uma qualquer emoção, dando corpo a uma breve alucinação ou erro de percepção, ou uma metáfora comportamental, Junji Ito transforma algo que deveria ser tranquilo numa sucessão de dramas cinéticos e hiperbólicos.

Uma possível comparação seria com um outro clássico da mangá sobre gatos, um “bom livro sobre gatos”: What's Michael, de Makoto Kobayashi. Longe das mediocridades usualmente protagonizadas por esses animais (Gardfield e companhia), a capacidade de observação cuidada e da sua expressão de Kobayashi, sobretudo do comportamento dos gatos, tornava-o quase uma espécie de naturalista cómico. Yun & Mu não tem essa intenção, mas tão-somente a de tecer curtas histórias divertidas com os “meus” gatos, da perspectiva de Ito.

Nota final: agradecimentos a M. T., pelo empréstimo do livro.  

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