13 de fevereiro de 2016

It Shouldn't Happen (To a Dog). Don Freeman (Dover)

A primeira vez que nos cruzámos com uma referência a este título foi no pequeníssimo mas delicioso guia Forty Cartoon Books of Interest, de Seth, o qual mencionáramos aqui. Desde então temos procurado obviar alguns dos títulos que nos eram desconhecidos, obtendo cópias dos livros ali indicados. O volume de Freeman, publicado originalmente em 1945, foi um deles, e a sua reedição pela Dover é sinal de que poderá integrar as discussões sobre a história da banda desenhada e do cartoonismo de uma maneira mais imediata. (Mais) 
De uma forma superficial, podemos dizer que It Shouldn't Happen (To a Dog) é um livro sobre um soldado norte-americano, Albert C. Bedlington Jr., acabadinho de chegar à recruta durante o período da 2ª Grande Guerra, e o seu mau tratamento, como soe dizer-se, “abaixo de cão”, ao ponto de o transformar literalmente num, e todas as peripécias e dificuldades inerentes a essa condição na sociedade. Não é que nos nossos dias haja grande diferença na recruta, mas existem especificidades históricas que tornam a vida militar da mais baixa patente nos anos 1940, nos Estados Unidos, como uma experiência muito particular. Até a gíria que lhe era própria parece confirmar isso: talvez o termo “dog tags” seja suficiente para explicar a metáfora. Porém, este é também um livro que se reveste de significados mais profundos, de cariz político, e que o torna interessante não apenas pela forma como pelo papel que terá tido no seu contexto.

Como escreve Seth, “Parece que a cada dez anos no início do século XX alguém inventava a graphic novel”. Com efeito, olhando para as características de muitos livros publicados nos Estados Unidos (e fiquemos enclausurados nesse espaço geográfico e político) unindo as imagens em sequências narrativas, e compreendendo o desenvolvimento desta disciplina de uma maneira mais orgânica e contínua, torna-se muito difícil aceitar sem reservas uma narrativa linear e límpida da “invenção” dessa forma material e comercial do nada e com apenas um gesto (as mais das vezes, A Contract with God, de Eisner). O facto de It Shouldn't Happen (assim como tantos outros livros, como os de Edward Gorey ou de Andrzej Klimowski) terem apenas uma imagem por página, e uma pequena legenda em baixo, ou nenhum texto, não pode ser factor de exclusão dessa hipotética história, uma vez que o percurso desta disciplina foi bem complexo em termos de estruturas e relações físicas entre matéria verbal e imagens, distribuição e composição, sequência e série, formatos e circulação comercial, relacionamento com outros meios expressivos e de comunicação, grau de envolvimento com outras culturas, etc.

Logo, o acesso facilitado a este título de franca importância histórica, ainda que nem ocupe o lugar de nota de rodapé na esmagadora maioria das histórias da banda desenhada, agora, poderá tornar-se, tal como aconteceu com os “romances em xilogravura” a que Beronä dedicou o seu livro, uma maneira de alargar esse entendimento histórico e conceptual da banda desenhada. Esperamos mesmo que esta edição – recordemo-nos de que a Dover é responsável por uma certa recuperação visual, tendo publicado vários volumes de James Reid e Lynd Ward, mas que também Manuel Caldas nos “devolveu” Ele foi mau pra ela, de Milt Gross - possa significar o relançamento de muitos outros títulos da mesma natureza, como East of Fifth de Alan Dunn, The New Sun de Taro Yashima, ou The Little Tailor ou Alay-Oop (este último que nunca lemos, pois difícil de capturar sem dispensar uma pequena fortuna) de William Gropper.

A importância do livro ganha contornos significativos se se fizer uma interpretação que torne a história do soldado Bedlington, que é branco, numa pouco velada metáfora do “lugar” dos negros nos Estados Unidos da época. Numa cena, o soldado-cão está a ler um livro num jardim, e uma mulher chega mesma a chamar a polícia por desconfiar da sua presença naquele lugar. Um polícia de giro intervém e revela-se que Bedlington estava a ler Lincoln… Muitas das cenas mostram-no com grandes dificuldades em ter dinheiro para comprar comida, um jornal, ou até um bilhete de cinema, ficando no “galinheiro”. Duas cenas, porém, são apontadas como liminares nessa interpretação. Numa viagem de comboio, ele fica a dormir num vagão, na cama de cima de um beliche e isso é chocante para toda a gente, chegando mesmo a ser debate à escala nacional. E numa outra cena, em que se senta num autocarro, o motorista exige que ele se sente nos bancos de trás, ou terá de sair do veículo. Estamos, recordemo-nos, a dez anos do acto de desafio de Rosa Parks. São, portanto, vários os elementos narrativos, mesmo que jamais explícitos, que permitiriam ler It Shouldn’t Happen como uma obra que se dirige a um tema, então, vivo na sociedade norte-americana.

Uma breve nota, todavia. O título original (ver a imagem, do interior, sem sobrecapa) não continha a parte parentética “(to a dog)”, acrescentada nesta edição, a nosso ver desnecessariamente e demasiado explicativa. Aliás, a força do título é diluída por esse acrescento, que até poderá ser interpretado de uma maneira negativa: ou, que os acontecimentos não deveriam acontecer sequer a um cão, mas que na verdade se passaram com seres humanos; ou, que este livro re-apresentado agora pode ser descontextualizado do seu tempo parapoder ser lido como uma fantasia…

Mas esse perigo não se verifica, pois esta nova edição, para além de alterar ligeiramente o formato e materialidade da edição original, que é um livro de capa cartonada, com sobrecapa – isto é, na sua época fazia parte de um mercado de livros ilustrados, colecções de cartoons, etc., similar ao dos “romances gráficos” dos nossos dias ainda que em rigor distinto (por questões sociais) -, contem um prefácio pelo historiador e biógrafo de Bill Mauldin, Todd DePastino. Este dá-nos a entender algum do contexto da sua edição original e a sua recepção, que oscilava entre a total incompreensão, lançando-o para a indiferença da “fantasia”, ou então transformando-o numa arma de arremesso reaccionária, uma vez que o tratamento do tema profundo é progressista. Com efeito, as breves palavras do prefácio são um estudo de excelência em termos de verdadeira contextualização político-histórica, e que impediria aquela reacção usual de “isto é próprio da época”, tratando todo e qualquer cidadão de um momento como pertencente a uma massa homogénea. DePastino cita os movimentos sociais progressistas dos anos 1930 que tentaram melhorar as condições de vida da parte da classe trabalhadora, inclusive emigrantes e particularmente os negros, mas que encontrariam no período da guerra uma “pausa”. Isto permite estilhaçar aquela ideia de que “na altura” era “normal” um qualquer comportamento, como se as sociedades pudessem ser vistas de modo homogéneo a partir das suas características mais salientes numa sua redução histórica. Não podem, e como sempre, as tensões entre perspectivas conservadoras e progressistas estavam em curso. O trabalho de Don Freeman estava ao serviço do primeiro campo. Tendo em conta esse contexto do pós-guerra, em que as “prioridades” eram o progresso económico (aliás, uma desculpa corrente e permanente da direit conservadora em adiar toda e qualquer discussão sobre questões culturais, sociais e civilizacionais em nome de um sempiterno esfomeado “desenvolvimento económico”). os herdeiros do que foi chamado a “segunda Renascença americana” em termos culturais não encontraria grande fortuna nos tempos conservadores que se seguiriam, o que torna o gesto de Freeman ainda mais significativo, e explica a “controvérsia” em que cairia este seu título.

É a atenção para com uma existência mais mundana, dos problemas das classes mais desprotegidas, ou até para com a existência de uma realidade social estratificada, que Freeman consegue atingir um significado politicamente mais relevante (o mesmo poderá ser dito de Gropper, Yashima e Masereel, todos eles identificáveis como socialistas, ou pelo menos com simpatia pelas lutas das classes trabalhadoras e um posicionamento anti-militarista) do que a esmagadora maioria dos seus colegas artistas. O trivial não significa apenas uma hipótese de humor, mas de reflexão social. Freeman não nutriria uma posição anti-militar, há até alguma admiração por alguns dos seus valores e funcionamento (dado o seu percurso profissional, explicado por DePastino) e na verdade perseguiria uma carreira de ilustrador para a infância algo acomodada, tornando It Shouldn't Happen quase numa “vez sem exemplo”.

Neste livro, o autor não cultiva o seu traço soberbo, elegante e cheio que lhe angariaria a alcunha de “Daumier de Nova Iorque”. Olhando para os desenhos que fez em torno da cidade em que vivia, uma imensa obra gráfica, encontraremos composições picturais magníficas, sobretudo sobre o quotidiano mais sofrido dessa urbe. It Shouldn't Happen – mostra figuras debuxadas com gestos rápidos, com o que parece ser um lápis grosso de grafite, próximo do esboço ou da assinatura. Uma linha curva é suficiente para demarcar o espaço, outros golpes rápidos constroem um edifício, a personagem principal é constituída com um número fechado de linhas certeiras. Mas é essa gestualidade que incute à história do soldado/cão a urgência premente que transmite. O facto de o livro seguir uma fórmula aparentemente inócua para depois levantar um espelho negro da situação da estratificação social ou mesmo racial dos Estados Unidos é o que o torna perturbador – seguimos, literalmente, um underdog em situações absolutamente abjectas em que outros o proíbem de ler num parque, deitar-se numa cama num comboio, sentar-se no autocarro, liderar uma patrulha, etc. - , progressista e como vimos, à época, “controverso” (as aspas devem-se a que é a reacção que deveria gerar controvérsia, não o gesto original). Essa assinatura gráfica esbater-se-ia então, de certo modo, nos trabalhos posteriores como os livros do ursinho Curdoroy... E se a maioria das composições nesta obra mostra as figuras em planos médios ocupando as páginas, há algumas cenas de planos mais abertos, sobre a paisagem urbana, que o inscrevem de imediato na linha da frente dos grandes artistas de Nova Iorque ou do que hoje se chamaria de “desenhadores do quotidiano” ou urban sketchers.

It Shouldn't Happen – , por várias razões, poderia bem ser um forte candidato a obra-prima de uma “história alternativa da banda desenhada”, no sentido de demonstrar um desenvolvimento de maturidade social e cultural desta arte que ainda não ocorreu totalmente, mas para o qual não faltaram gestos concretos nessa direcção, precisamente como este.

Nota final: imagens do “miolo” do livro retiradas da edição de 1945. 

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