10 de maio de 2016

Vários títulos. André Oliveira et al. (Kingpin/Polvo)

De certa forma, não será alheia a co-organização de uma pequena exposição dedicada a André Oliveira na Bedeteca da Amadora ao lavramento do presente texto. Se é certo que essa exposição, produzida pelo Festival da Amadora, não teve o nosso contributo, a sua re-integração num expectável ciclo dedicado a argumentistas – uma noção que foi tentada várias vezes junto a instituições, sempre incumpridas – deve-se a um entendimento que, sem querer de forma alguma colocar o trabalho e contributo absolutamente fulcral dos artistas em detrimento, a concentração no escritor poderá revelar características específicas não apenas ao trabalho da banda desenhada como à personalidade criativa destes autores, e à sua mundividência “completa” (contra a ideia de “autores completos” e “incompletos”). Ao abordarmos toda uma série de títulos que, até agora, ficaram sem leitura neste nosso espaço, não deixaremos de repetir o mesmo gesto. (Mais) 

Em termos gerais, Portugal não tem tratado da melhor maneira a sua memória da banda desenhada. Este é um problema que se estende a muitas outras áreas, é verdade, mas sendo esta a matéria que nos ocupa é aí que desejamos pensar (um tema que, aliás, foi abordado no último episódio do Verbd). Por vezes, há a sensação de que um autor, ao deixar de produzir um livro de dois em dois anos, passa ao esquecimento, e qualquer novo livro nos escaparates tenha de ser entendido como “o melhor” em termos absolutos. Nessa óptica, a escrita da banda desenhada tem sofrido ainda mais, uma vez que esse trabalho não é sempre “visível”. Dito isto, existem alguns autores contemporâneos que têm desenvolvido capacidades de escrita para a banda desenhada muito particulares, emergindo não apenas como personalidades próprias como capazes de experimentar várias dimensões dessa escrita conforme os projectos. Sendo possível arrolar outros nomes, estamos em crer que o destaque desse ciclo será equilibrado entre autores profícuos, diversos, maduros e culturalmente relevantes.

André Oliveira é, ou tem sido, uma surpresa em termos de produção, em primeiro lugar pelo ritmo e ética de entrega ao trabalho. Num espaço de uns três, quatro anos, André Oliveira não apenas criou um punhado de livros com alguma recepção crítica como dezenas de histórias curtas, cada qual com o seu artista específico, e experimentando as várias “áreas” a que a banda desenhada se pode prestar. Da autobiografia ao terror, passando pelo humor desabrido e a mais tradicional aventura, a fantasia e o slice of life, Oliveira coloca à disposição da sua pesquisa a capacidade de escrita. Já nos havíamos referido à “obra” de André Oliveira como pertencente aos “projectos narrativos ou literários coerentes” que têm alterado a paisagem contemporânea da banda desenhada portuguesa. Aqui temos um outro punhado de livro que, cada qual a seu modo, contribuem para a expansão dessa oferta, a variedade de trabalho e processos, e o aprofundamento dessa pesquisa.

Insistiremos neste vocábulo, uma vez que estamos em crer que André Oliveira, mais do que a típica frase feita de “querer contar histórias” (e em que ele próprio incorre), pretende tentar compreender o mundo através das histórias que cria. Sendo seres humanos, estamos aptos a várias disposições, humores, relações, máscaras sociais e até vontades, profundamente contraditórias para nós mesmos. Sem querer criar hierarquias insustentáveis nem reduções descritivas, diríamos que é André Oliveira o autor que maior leque de emoções e vontades tem apresentado ao longo da sua produção.

Comecemos, algo arbitrariamente, por Vil. A tragédia de Diogo Alves, desenhado por Xico Santos (e publicado pela Kingpin Books). As histórias de redenção exercem sempre um grande fascínio sobre nós. Mesmo que vejamos as personagens caírem num abismo cada vez mais negro, há algo que alimenta a esperança de ver o protagonista e, mesmo através de um acto sacrificial tremendo, ser capaz de escapar dele. É nesse sentido que Vil se aproxima de uma estrutura superficialmente próxima daquela que, por exemplo, e entre nós, David Soares explora: a da noite negra da alma mas da qual não há escapatória possível. O abismo a que Diogo Alves desce é superno e derradeiro, e acompanhamos a sua mente esboroando-se (repare-se como a legendagem das suas falas é diversa das demais, no trabalho de Mário Freitas). Mas André Oliveira, nessa mesma gestão, revela uma natureza bem diferente da de Soares. Aliás, Vil é o título, o pivot, que nos permite explorar a estrutura da escrita de Oliveira.

É necessário sublinhar com vigor algo que muitas vezes os leitores esquecem, a de que abordarmos a obra de um autor nada tem a ver com a pessoa em si, cuja personalidade e existência contingente é indiferente ao acto crítico. A razão deste excurso deve-se ao facto de que onde Soares escava o cinismo, Oliveira não o emprega.

A palavra “cínico” tem um poder filosófico muito forte, regressando a Diógenes, significando acima de tudo um despojamento de preocupações convencionais, até mesmo por vezes de necessidades básicas físicas, como se conhecem das anedotas do filósofo. Mas o cinismo é também optimista pela utilização de instrumentos de sarcasmo (daí que a comparação contemporânea com a escola zen seja muito apropriada nesse sentido, pois há um humor e desprendimento que, se oculto, não ajuda a compreender as lições), os quais apontam e atingem uma perspectiva alta sobre a racionalidade das acções humanas e um desprezo, esse já nietzschiano, de moralismos e armadilhas facilitistas.

André Oliveira não participa desse sarcasmo, então, mesmo numa história tão “negra” quanto a do famoso assassino do Aqueduto das Águas Livres em Lisboa, o último condenado à morte em Portugal. A visão do escritor é mais beatífica em relação à natureza humana. Os autores deixam claro numa nota final no livro de que não pretendem criar uma devolução histórica, que reconstruísse os elementos existentes da realidade documentada (de uma só fonte, diga-se). O galego Diogo Alves, no livro, portanto, termina o seu percurso no cadafalso, enforcado. Há, porém, uma estrutura de redenção permanente no livro, que se expressa sobretudo em dois aspectos. A primeira é a segunda, isto é, comecemos pelo mecanismo menor. A visão da criança morta. Alves matou um número elevado de pessoas, roubando-as e atirando-as das alturas abaixo. O seu espírito transtornado, que vemos mutar-se ao longo das páginas através da escala de emoções textualmente explícitas, e no torvelinho das relações e dificuldades sociais em que se encontra. Mas se não se pode falar em arrependimento propriamente dito, a aparente “visão” da queda da criança traz uma dimensão fantasmática aos seus crimes. Não é totalmente claro se este assassinato em concreto tem lugar ou não (independentemente do que lhe diz o irmão, no fim), colocando a narrativa no campo do fantástico como explicado por Todorov. Mas o efeito dessa pressão fantasmática é real sobre Alves, paradoxalmente revelando uma réstia de humanidade, ainda que sofrida. O outro aspecto pode até ser controverso, se explicado de maneira desequilibrada e erra: é que a culpa é deslocada para a figura feminina. Alves, no fundo, surge aqui como um homem de vontade débil, susceptível a certos graus de manipulação emotiva e até económica, e tudo isso é cumprido na figura da Gertrudes, que surge então como a “bruxa” da história. Dizíamos “controverso”, pois não acreditamos que esse seja necessariamente um desequilíbrio de representação na obra, que pede por estas figuras, mas havendo uma ausência generalizada de personagens femininas centrais no trabalho de André Oliveira (veremos que Milagreiro não pode contar como excepção), há outros desequilíbrios que não são corrigidos, digamos assim.

Se o desenho de Xico Santos tem algumas limitações no que diz respeito à manutenção de uam certa coerência estilística, as expressões das figuras humanas são complexas, multifacetadas e variadas, permitindo assim aos leitores compreenderem as reacções e paixões que os dominam ao longo da intriga. Estas figuras, algo esquálidas e construídas através de uma acumulação de linhas nervosas que mais parecem lançadas com furor, aproximam-se de uma escola que remete à gravura gótica e vitoriana, cujo emprego na banda desenhada tem em Eddie Campbell (sobretudo em From Hell, aproximável pela matéria e quadro cronológico) um modelo máximo. O emprego dos cinzentos digitais é sumário, mas asseguran um volume necessário a esta história que das sombras sai e nas sombras permanece.

Volta. O segredo do vale das sombras, desenhado por André Caetano (Polvo), é outro livro que também pretende explorar alguns aspectos negros da alma, mas que se aproxima mais do lado luminoso da redenção possível. Tecendo elementos misteriosos e fantasiosos (não é revelado quem é o protagonista, que é amnésico; não se compreendendo totalmente que tipo de mundo é aquele da vila – e mesmo sabendo que outros volumes se seguirão, estamos quase seguros que não se tratarão de “revelações esclarecedoras”, mantendo sempre o ar de mistério e ambiguidade), o livro faz-nos mergulhar imediatamente na questão das relações e valorizações que as pessoas fazem entre si. O ciclista que fica conhecido por “Campeão” é imediatamente colocado ao serviço de todo um rol de expectativas das várias personalidades da vila, e é com alguma flutuante vontade que ele acaba por “vestir a camisola” dessas mesmas expectativas.

Centrado em dois objectivos narrativos claros e clássicos – derrotar o monstro, conquistar a dama – Volta tem uma estrutura de aventura convencional, mas uma pátina de melancolia que não é comum, e que dá precisamente a mais-valia ao livro. Se bem que haja um final feliz e até promissor, as questões por resolver são feridas deixadas em aberto: a memória completa de Campeão, a sua relação com o pai, um hipotético “regresso” à sua vida anterior.
É discutível se a intriga com a irmandade secreta e controladora, a procissão, e até a estilização do ambiente, não recorre a mecanismos narrativos algo expectáveis (quase aproximável de uma bateria de referências famosas, de The Wicker Man, The Mist a The Village), todavia o livro é menos sobre a acção em si, que serve de espinha organziadora, do a libertação lenta e inacabada de Campeão.

Apresentado num formato oblongo, recordando certos projectos de uma banda desenhada antiga, André Caetano apresenta desenhos à linha (possivelmente lápis, caneta e pincel), acumulando técnicas e espessuras diferentes, de forma a fazer contrastar figuras humanas estilizadas mas individualizadas e capazes de expressar emoções complexas e cenários complexos e intricados, desde a apertada malha da natureza que circunda a vila aos interiores obscuros. O uso e abuso de linhas paralelas, de impacto e de velocidade são aparentadas por vezes à mangá, instilando nas cenas de acção uma dinâmica bem diversa das cenas tranquilas de diálogos, e assim incutindo vitalidade a todo o projecto.

Também Milagreiro (André Caetano, Filipe Andrade, Nuno Plati, Ricardo Cabral e Ricardo Tércio, com capa wraparound de Jorge Coelho e retratos das personagens por Ricardo Drumond; Polvo) se inscreve num género de aventura e fantasia, e até de um modo mais leve. Não apenas pela sua estrutura e tamanho, mas pela forma como se procura colocar todo ao serviço da acção, mais do que da exploração das personagens (muito mais mais plot centered do que character driven, como se costuma descrever), estamos perante um título mais “leve”. André Oliveira tira partido mais uma vez da estrutura em capítulos para explorar vários momentos das acções possíveis das suas personagens, iniciando com o que parece ser um homem que cria situações passíveis de serem interpretadas por milagres (Cyril), de forma a assegurar o poder da Igreja. Todavia, o aparente suicídio desta personagem faz desviar a centralidade da atenção para a sua irmã (Aya) que dará início a um processo de vingança e redenção de alta octanagem e com toda uma série de elementos clássicos destas fantasias (sociedades secretas, armas fantásticas, pseudo-ciências, etc.). Haveria talvez uma estranha combinação de humores – o início parece prometer um tom mais psicológico e interno que é desmentido pelas cenas de alta acção que se seguirão -, mas a velocidade e concentração do livro leva a pensar num conto rápido e, por isso, eficaz. A única protagonista feminina deste grupo de livros, Aya, mas também o seu irmão Cyril, são os mais desenraizados e atomizados dos livros restantes, mas mais uma vez isso deve-se à economia do género.

Milagreiro demonstra então que André Oliveira, mesmo que movido por uma força circunstancial, sabe tirar partido dos artistas de que se vê rodeado. Sendo possível que escreva por vezes sem a segurança de quem desenhará, ou que algumas das noções possam surgir ainda sem essa assinatura visual final garantida, há sempre um poder de adaptação que mereceria maior cuidado de leitura. E isso é ainda mais certo e verificado com Casulo (vários artistas, Kingpin). Trata-se este de um volume que colige as várias histórias de 2 a 4 pranchas que André Oliveira tem escrito para a revista Cais, com um verdadeiro batalhão de artistas. É impossível, naturalmente, pressionar ainda mais a paciência dos pouco leitores deste espaço com leituras individuais, mas convidamos aos re-leitores desse livro a que se apercebam da maneira como André Oliveira escreve para esses mesmos artistas. Sem abandonar a sua própria tarefa e vontade, é nítida a maneira como ele burila essa pesquisa procurando a vantagem de cada um dos seus colaboradores, as suas forças, os seus humores próprios, até mesmo alguns dos gostos e elementos recorrentes das suas obras alhures. Havendo aqui, como se espera, todo um rol de humores e valências, ainda assim pensamos que é possível identificar algumas características comuns da escrita de André Oliveira, um autor que acredita, no fundo, na bondade humana. Vejam-se as histórias desenhadas por P. Potier, J. Afonso, X. Santos, R. Venâncio, R. Cabral, C. Páscoa, S. Carvalhinhos, A. Caetano, I. Galo, M. Teives, R. Reis, J. Coelho, para compreender a forma como Oliveira pretende por vezes escavar mais as emoções humanas em que há uma pausa melancólica ou uma stasis que permite olhar à volta do que avançar uma “anedota”.

Finalmente, chegamos a Tormenta (com João Sequeira, Polvo). Esta é uma novela, sem palavras, a preto-e-branco, e sob os auspícios de uma tempestade negra de tinta e memórias. O protagonista (que apenas na apresentação tem nome), que toma conta de um farol, não vive só, mas a relação com a mulher não parece ser conducente à mais tranquila das felicidades. Apesar de estar num ponto fixo à terra e rodeado de mar, a verdade é que há muitos elementos que levam a pensar numa espécie de naufrágio. E não apenas por ruínas de objectos dando à costa, mas também aqueles que vêm dar à memória. Tal como no caso de Hawk, Volta, mesmo Vil, mas em diferentes configurações nas outras histórias mais longas (e algumas das curtas) de Oliveira, a relação com os progenitores (no caso de Tormenta, e como é explicado no epílogo, a figura dos avós é central) é sempre alvo de alguma tensão, um escolho na total liberdade dos filhos (ou netos), e é a resolução dessa crise – a qual, mesmo vista como influência positiva, ao estar ausente é raíz de tensão - que acaba por libertá-los a uma outra acção derradeira ou libertária. Como vemos, a bonança – tome ela as formas que tomar - está sempre no horizonte do escritor.

Os desenhos de Sequeira, neste caso, são contíguos ao que havia cumprido em Metamorfina, Psicose e F(r)icções, em que a camada de “ruído material” das tintas empregues leva a uma pressão sobre as personagens debuxadas de modo sumário e débil, mas há um reforço da abordagem de esboço rápido, despreocupado, como se se desejasse ser mais urgente na indicação dos objectos necessários do que à completação da imagem. Ora isso aumenta o grau de fragilidade destas personagens sob a tempestade, o que se coaduna perfeitamente com a incompletude sentida por elas… E ainda que Sequeira esteja afastado da Eisnerspritz, a famosa patina de chuva das histórias de The Spirit que lhe incutiam um ambiente soturno permanente, a sua contínua representação dos elementos em fúria cria igualmente uma permanente camada visual ocultadora às imagens. Mesmo quando não faz representar a chuva, há outros elementos gráficos ou objectuais que fazem o mesmo papel (cercas, tábuas,a vegetação cerrada ou as próprias linhas toscas que compõem as personagens). Apenas no fim há uma “abertura” ao branco correspondente à abertura do protagonista ávida que o rodeia e é imediata.

Para terminar, uma outra característica geral na escrita deste autor que nos parece recorrente é a relação dos personagens com o espaço. Sendo esta uma categoria inescapável, um a priori, na vida real ou na ficção, não é de surpreender que existam espaços determinados a ocuparem um papel preponderante nestes relatos (falaremos sobretudo dos mais longos). Mas é a força que exercem sobre os protagonistas que deve ser olhada com mais atenção. Alves gravita em torno do passadiço do aqueduto, sendo ele o lugar dos seus crimes e da sua descida, tal como o da emergência da sua loucura; Will (de Living Will) cria uma cartografia afectiva e de memória em torno de uma bateria de endereços das pessoas que deseja contactar; o ciclista “Campeão” encontra na vila Le reste du monde – como se os autores quisessem assumir totalmente os significados alegóricos possíveis e não procurassem iludir através de nomes mais opacos – não apenas um lugar de passagem, mas a “barriga da baleia” onde se transformará a si mesmo, e consequentemente a própria vila; o protagonista de Tormenta está plenamente ancorado no seu serviço ao farol, mas como o foco luminoso deste, é livre de iluminar para trás e para diante na sua vida, trazendo para a frente memórias e vivências que podem alterar o espaço presente. Esse é apenas outro traço que importaria aprofundar ao se ler, com olhos de ler, a contínua produção deste autor, o qual, como outros, deveria ser suficiente para derrotar de uma vez por todas aquela noção de “autor incompleto” quando se fala de argumentistas que exploram as várias facetas da existência humana na sua multifacetada obra.

Nota final: agradecimentos à Polvo, pela oferta dos seus títulos. 

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